Migalhas de Peso

A pressão eleitoral e as indicações ao STF

A norma de seleção ao STF permite que o chefe do Executivo se valha de seu poder de indicação para obter ganhos no processo eleitoral. Isso não é novidade, mas as declarações recentes do presidente e o ano eleitoral reavivam a discussão.

29/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A seleção dos ministros do STF será um dos principais temas a serem debatidos neste ano de eleições.

Justificarei minha assertiva ponto a ponto. A relevância atual do Supremo perpassa pelos campos jurídico, político e administrativo. Juridicamente, a Corte é o último grau recursal nas causas de matéria constitucional, hoje, quase ubíquas, e juízo ordinário em processos de conflitos de competência, litígios com Estados estrangeiros etc., v. art. 102 da CF/1988. Já administrativamente, os juízes constitucionais acumulam cargos em órgãos-chave do Judiciário, notadamente a presidência do CNJ e três cargos no TSE, inclusive sua chefia. Por fim, politicamente, decide o STF quanto ao timing e mérito de litígios nacionais com consequências tanto ao cidadão comum como aos políticos de alto escalão.

Da prisão após segunda instância à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e da competência das ações contra a covid-19 ao recente imbróglio com o Telegram, é difícil achar uma pauta no noticiário que não se relacione com uma decisão do Supremo. Nesse sentido, acertou Viera, 2008, em nomear tal cenário de “supremocracia”. E igual razão tiveram Arguelhes e Ribeiro, 2018, ao tratar o corolário disso como uma “ministrocracia”. É que as decisões do STF comumente não são colegiadas: muitos processos são guiados por liminares monocráticas de seus relatores1, ainda que ad referendum do plenário. Quando não relata, qualquer ministro pode pedir vista e paralisar o julgamento, pelo art. 134 do RISTF, até 60 dias, mas, na prática, o prazo é impróprio. Some-se a isso o poder de agendamento de pauta das presidências e as manifestações informais na mídia, capazes de sinalizar o rumo dos processos na Corte.

É fato que Corte Suprema é formada hoje por onze Ministros com “M maiúsculo”. Logo, seu processo de seleção também acaba inspirando “atenção”. Uma das classes a mais concordar com isso, por sinal, é a política.

Relembrarei alguns exemplos históricos do uso da indicação para atender a grupos com potencial eleitoral. No Governo Collor, é documentado que a indicação do Min. Ilmar Galvão visou suprir a falta de membros da região NE na Corte, v. Fontainha et al, 2016, p. 48 e 49. FHC, por sua vez, supriu o vazio feminino histórico na Corte ao ser o primeiro presidente a indicar uma mulher, a min. Ellen Gracie. Esse comportamento, aliás, foi imitado nos dois governos seguintes, v. Recondo e Weber, 2019, p. 185 e 147. No governo Lula, a indicação do min. Joaquim Barbosa foi classificada pelo ex-ministro da justiça Márcio Thomaz Bastos como estratégia de marketing político voltado à população negra, Recondo e Weber, 2019, p. 161 e 186. Por fim, no governo Bolsonaro, a indicação recente do min. André Mendonça visou atender ao eleitorado evangélico2.

Tais indicações não necessariamente significam que os ministros não possuem méritos próprios. O problema é outro: quando o apontamento presidencial é utilizado para satisfazer alguma pressão eleitoral, corrompe-se uma ferramenta de Estado para atender a interesses de governo. Assim, pouco importa o posicionamento ou aptidão do ministro sobre temas de direito; e sim o ganho ou perda política que a indicação trará ao indicante.

Certamente não era essa a razão de ser do sistema idealizado nos artigos Federalistas, posteriormente positivado na Constituição norte-americana e copiado pelas constituições brasileiras a partir da República. O argumento seminal de Hamilton, Madison e Jay, 1993, p. 470 e ss. fiava a escolha dos justices no interesse moral do presidente em indicar a pessoa mais apta à vaga na Scotus. A existência do órgão de controle, o Senate,  apenas seria uma garantia para evitar eventuais abusos. A Câmara Alta foi preferida à House of Representatives justamente por ser um órgão mais fechado aos ímpetos populares e, portanto, mais imparcial. A indicação ser decisão individual do presidente também evitaria possíveis imbróglios decorrentes dos interesses difusos inerentes a um órgão colegiado.

Da importação do modelo em 1891 às sucessivas mudanças constitucionais até 1988, a norma de seleção STF não mudou de modo significativo. A escolha sempre foi um ato administrativo complexo e discricionário. Hoje, serão ministros do STF os brasileiros natos que, possuindo notável saber jurídico e reputação ilibada, sejam indicados ao tempo de seus 35 a 65 anos pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, art. 101 da CF/1988. Os requisitos de idade e nacionalidade são indiscutíveis, é claro; mas não há lei que conceitue “notável saber jurídico” nem “reputação ilibada”. Eis aí a abertura para o uso político.

Com é a vagueza do texto positivado que permite aplicações indevidas, talvez seja o caso de uma solução justamente pela via normativa. Indo ao encontro desse pensamento, os congressistas já avolumaram, desde a promulgação da CF/1988, 80 propostas de Emenda à Constituição sobre o tema, para um detalhamento de cada proposta, v. Chilelli, 2022. De retificações simples a sistemas totalmente novos, por vezes bizarros, deputados e senadores são quase unânimes em reduzir a participação do Executivo no processo. Na academia também há críticas à inadequação do modelo, com proposições majoritariamente inspiradas no direito comparado. A principal conclusão ao se ler todas as propostas é que ainda há uma dispersão de ideias que não se aproxima de um consenso.

Enquanto isso, os discursos dos candidatos presidenciais mostram um enfoque cada vez maior no poder de indicação. Entre os últimos exemplos, a promessa de indicação do célebre juiz da Lava Jato, e hoje potencial pré-candidato à presidência, e já citada nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico”. Além disso, o atual Chefe de Estado afirmou, em fala recente, que “mais importante do que eleição para presidente são as duas vagas para o Supremo no ano que vem [i.e., 2023]”3. No extremo, isso pode atrair votos mais preocupados com o candidato ao STF do que com o do Planalto, em uma espécie de eleição indireta para o cargo de juiz constitucional.

Com essa ideia em mente, fecharei minha reflexão com os seguintes dados: nas próximas seis legislaturas, 2022 a 2050, os onze atuais ministros do STF se aposentarão compulsoriamente na seguinte escala: dois entre 2022 e 2026, Lewandowski e Weber, dois entre 2026 e 2030, Fux e Cármen Lúcia, três entre 2030 e 2034, Mendes, Barroso e Fachin; nenhum entre 2034 e 2038; nem entre 2038 e 2042; dois entre 2042 e 2046, Toffoli e Moraes, e dois entre 2046 e 2050, Marques e Mendonça.

É certo que as próximas indicações e as vacâncias por falecimento, impeachment ou até voluntárias podem alterar essa previsão, mas, a princípio, é a única com diagnóstico minimamente objetivo.

Quais usos os candidatos darão a essas vagas nos próximos 28 anos? Quais pressões eleitorais serão mais ou menos influentes nesse processo? Talvez o pleito presidencial não seja mais um momento para refletir apenas sobre o Executivo, mas também sobre o Judiciário. Meu entendimento é que, além de preocuparem-se sobre o próximo Presidente, os eleitores, especialistas e leigos, discutirão cada vez mais sobre “qual o será o próximo ministro do Supremo”.

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1 Como exemplo, no ano de 2020 foram 99.527 decisões do STF, entre as quais 81.318 monocráticas (81,7%) e apenas 18.209 colegiadas (18,3%) (Fonte: https://transparencia.stf.jus.br).

2 Conforme o próprio Presidente admitiu em recente: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2021/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-na-cerimonia-alusiva-ao-centenario-da-convencao-de-ministros-e-igrejas-assembleia-de-deus-no-para).

3 Para a íntegra da fala do Presidente, v., p. ex., a matéria publicada pelo Portal O Globo: https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-diz-que-indicacao-de-ministros-para-stf-em-2023-mais-importante-que-eleicoes-para-presidente-1-25380529

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ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: o Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. In Revista Novos Estudos, vol. 37, nº 44, p. 13 – 32, jan/abr – CEBRAP. São Paulo, 2018b.

CHILELLI, Victor Magarian. A Seleção dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: um estudo descritivo sobre suas normas, bastidores, críticas e proposições. Rio de Janeiro, 2022, 203p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientação: Prof. Dr. Adrian Sgarbi.

FONTAINHA, Fernando de Castro Fontainha et al (orgs.). História oral do Supremo (1988 – 2013), vol. 14: Ilmar Galvão. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2016

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John; apresentação Isaac Kramnick; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Os artigos federalistas: 1787 – 1788: edição integral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

VIEIRA, Oscar Vilhena.  Supremocracia. In Revista Direito GV, vol. 4, nº 2, p. 441 – 464, jul/dez – Fundação Getúlio Vargas (FGV). São Paulo, 2008.

Victor Magarian Chilelli
Bacharel (2019) e mestre (2022) em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista da pós-graduação pela CAPES (ênfase em Direito Constitucional).

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