Migalhas de Peso

O status quo digital: reafirmação de paradigmas constitucionais pelas plataformas digitais.

Como a iminente votação do PL 2630/20, as recentes decisões judiciais, bem como a promulgação da PEC 17/19, impactam as relações regulatórias entre plataformas digitais, seus usuários, o Poder Público e direitos fundamentais, à luz do constitucionalismo digital.

28/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em recente decisão, já revogada, proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, o STF suspendeu as atividades da plataforma digital Telegram, sob o argumento de reiterados descumprimentos de ordens judiciais do ente privado. Promulgada pelo presidente do Senado Federal, o senador Rodrigo Pacheco, a Emenda Constitucional 115 incluiu a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República, em seu art. 5º1, bem como atribuiu à União Federal as competências de legislar, organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento destes dados, em seus arts. 212 e 223. A necessidade regulatória das plataformas digitais ensejou o PL 2630/20, comumente chamado de “PL das Fake News”, ainda pendente de votação na Câmara dos Deputados, com o intuito de criar regras básicas para a moderação de conteúdo nas redes sociais no tocante à discursos dissimulados.

O que essas mudanças e posicionamentos, efetivamente, representam para o conceito de constitucionalismo digital? Como afetam as relações entre plataformas digitais, seus usuários e a proteção de direitos fundamentais? Neste breve texto, discutimos alguns interessantes pontos sobre como a vanguarda da inovação na internet, as plataformas digitais, devem recepcionar esses importantes movimentos e a dicotomia entre o controle externo e interno de moderação, em sentido amplo, de conteúdo.

A mais moderna doutrina constitucional vem reafirmando o ideal do professor Nelson Saldanha no tocante à mudança constitucional e o conceito do “poder reconstituinte”, ideia da existência da necessidade de correção/atualização de dispositivos específicos constitucionais, a fim de reafirmar a autoridade normativa da Constituição no transcorrer do tempo. O que há, em verdade, nas palavras do professor Egon Bockmann Moreira, é “a concepção de que a Carta Maior seja um organismo vivo, de modo que necessita de alterações formais internas, alternativas, para que se enfrentem instabilidades futuras constitucionais”4.

As novas tecnologias atreladas ao desenvolvimento exponencial de empresas de base tecnológica, formam um novo paradigma a ser estudado, com a devida destreza, pelo sistema constitucional tradicional. Nesse contexto, o tema do “presente-futuro” que surge das discussões doutrinárias, mudanças legislativas e decisões judiciais é a proteção a direitos fundamentais na era da justiça digital, os direitos digitais, digital rigths.5

Adentrando o âmbito das plataformas digitais, é certo afirmar que, resumidamente, os provedores de aplicação de internet possuem diretrizes que são pactuadas contratualmente entre eles e os potenciais usuários/titulares de dados pessoais que almejam vincular-se a determinado ecossistema virtual. Esses termos são exemplificados como “orientações, com a consequente vinculação de seus usuários, são contratos, e, por conseguinte, devem ser regulados pela autonomia da vontade das partes, bem como pela liberdade contratual, princípios contratuais fundamentais.6

Por óbvio, essas regras têm origem em princípios e valores inerentes a políticas de entidades privadas. Ora, caso o usuário adote comportamento que, em eventuais casos análogos, aos olhos do Poder Público, não configure hipotética conduta delitiva, em determinado ecossistema pode afrontar políticas e regras de condutas pré-estabelecidas. Da mesma forma, praticando a dialética inversa, podemos vivenciar, também, comportamentos que, sob os olhos do Poder Público não sejam tão palpáveis quanto o juízo de valor realizado pelas plataformas. A título de exemplo, temos o categórico caso da promotora Marya Olímpia Ribeiro Pacheco, que, em meados de 2016, publicou uma série de símbolos nazistas, sem realizar apologia direta ao regime. Neste caso, o Facebook somente moderou os conteúdos cinco anos após as publicações7.

Todas as decisões sobre moderação de conteúdo e código de conduta, no ecossistema de determinada plataforma, são tomadas de forma independente e unilateral. Aproveitando o gancho do Facebook, temos a criação do Facebook Oversight Board, comitê de supervisão criado pela rede social para tomar decisões8 que podem, inclusive, reformar moderações aplicadas em “1ª instância” pela plataforma.

A gritante dicotomia entre controle e regulação exacerbou-se quando um interessante fenômeno passou a vigorar nas contendas das plataformas digitais: a mudança do poder legislativo, vigilante e punitivo da esfera pública para a esfera privada. Mais e mais entes privados ditam as regras do jogo e aplicam, severa e objetivamente, sanções a seus usuários. Uma verdadeira releitura da separação dos poderes de Montesquieu e do sistema de freios e contrapesos de Madison.

Em outras palavras, as particularidades desse modelo de governança utilizam a descentralização da ideia de soberania estatal no critério de tradicional de jurisdição9. A capacidade de criação de normas jurídicas saem do eixo Estatal com destino aos entes de natureza não governamental, que, por seu turno, não estão presos a eventuais amarras convencionais da esfera pública, podendo estipular suas próprias regras e diretrizes. Uma drástica ruptura aos mais saudosistas.

Contudo, quais os limites quando se fala de ditames acerca de proteção de direitos fundamentais, que repousam sob o seio constitucional? O constitucionalismo digital envolve a aplicação igualitária e respeitosa de regras e estabilização do direito, exigindo, por seu turno “um certo grau de racionalidade, previsibilidade, certeza e boa-fé.”.10 Em outros termos, para além da observância das regras específicas, deve existir, por óbvio, sua estabilização com as leis da sociedade.

Um de seus pressupostos de aplicabilidade é, justamente, o limite imposto ao Poder Público no tocante à governança e participação civil na internet. Todavia, não se pode afastar que as atividades do Poder Público devem voltar-se, dentre outras obrigações, à tutela dos direitos fundamentais. Entre a discricionariedade de aplicação de regras e termos das plataformas sociais/digitais, os preceitos constitucionais devem servir como balizas regulamentadoras.

No caso da recente decisão que já não surte mais efeitos, sua fundamentação abarcou a não cooperação da plataforma em investigações acerca de movimentos prejudiciais a liberdade de informação, pautada no disparo de fake news por alguns usuários. Conquanto o animus do Poder Público resta evidente, aos olhos da plataforma digital, a atuação de seus usuários tem respaldo na liberdade de expressão.

O limite desta liberdade, inclusive, é pauta palpitante do PL das fake news que, dentre outras características, impõe regras mínimas para que as plataformas digitais exerceram o controle de conteúdos considerados inapropriados, ilegais e/ou dissimulados, sopesando a privacidade do usuário11.

No tocante à Emenda Constitucional 115, eventual incidente no bojo de proteção de dados pessoais deverá, para além dos mecanismos internos do ecossistema, obedecer a regulação externa do Poder Público.

A título exemplificativo, o Marco Civil da Internet, em seu art. 11, já preceitua a óbvia necessidade de que os provedores de conexão e aplicação de internet deverão, obrigatoriamente, respeitar a legislação brasileira atinente à proteção de dados pessoais12. Contudo, ao legitimar a União Federal, e por conseguinte o Estado, em apurar, organizar e fiscalizar a proteção de dados pessoais, a EC/115 passa a bola, novamente, ao poder público sobre a legislação e execução no âmbito digital, em decorrência da outrora atribuição de funções públicas a atores privados13.

Continuando, em recentíssimo caso análogo, a 4ª turma do c. STJ, sob a capitania do Ilmo. Ministro Antonio Carlos Ferreira, decidiu pela inaplicabilidade solo do art. 19 do Marco Civil da Internet, sendo de extrema importância para a configuração da responsabilidade civil de provedores de internet não somente o descumprimento de ordem judicial, mas, também, o desrespeito a Constituição Federal.14

Dito de outra forma, a eficácia horizontal e vertical dos direitos fundamentais e o controle judicial de constitucionalidade é assunto que deve ser visitado e pensado quando da prolação de regras e diretrizes nas plataformas digitais. Em se tratando de proteção de dados pessoais, se antes a LGPD tentava pegar, se ficar a Constituição Federal, agora, come.

Portanto, muito embora o fato de as plataformas deterem indiscutível autonomia para regular suas atividades internas, através de seu poder interno legislador, regulador e sancionador, a partir de ideais oriundas do conceito de constitucionalismo digital e jurisdição nacional, quando tais diretrizes respingam na seara dos direitos fundamentais, observamos o movimento de regulação descolar do ente privado voltando, novamente, para o ente público.

___________________

1 Art. 5º, Constituição Federal de 1988: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes: LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.

2 Art. 21, Constituição Federal de 1988: Compete à União: XXVI – organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei.

3 Art. 22, Constituição Federal de 1988: Compete privativamente à União legislar sobre: XXX – proteção e tratamento de dados pessoais.

4 BOCKMANN, Egon. Aula de Amanhã; Ep. 76: Emenda Constitucional 115: direito fundamental à proteção de dados. Disponível em: https://open.spotify.com/show/3ah263d29UPMnirwim6r4K?si=pBbh3j7QTcS4wvADZmMkTg. Acesso em: 15.02.22.

5 KARPINEN, Kari; PUKKO, Outi. Four Discourses of Digital Rights: Promises and Problems of Rights-Based Politics. Journal of Information Policy, Vol. 10, p. 304-328, 2020.

6 BECKER, Daniel. ACCETTA, Felippo. Para sua (des)informação. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/fake-news-06112021. Acesso em: 15.02.22.

7 Disponível em: https://revistaforum.com.br/redes-sociais/2021/9/23/apos-cinco-anos-facebook-retira-postagens-nazistas-de-promotora-bolsonarista-103717.html . Acesso em 22.04.22.

8 Disponível em: https://oversightboard.com/. Acesso em: 14.02.22.

9 MENDES, Gilmar. Constitucionalismo Digital e Jurisdição Constitucional. Justiça do Direito. V. 34, P. 30/31. 2020. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rjd/article/view/11038/114115429. Acesso em: 17.02.22

10 ARCHEGAS, João Victor. Constitucionalismo Digital. Plural Curitiba. Disponível em: https://www.plural.jor.br/artigos/constitucionalismo-digital/. Acesso em: 14.02.22.

11 Art. 1º, PL 2360/20: Esta lei estabelece normas, diretrizes e mecanismos de transparência de redes sociais e de serviços de mensageria privada através da internet, para desestimular o seu abuso ou manipulação com potencial de dar causa a danos individuais ou coletivos (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet)

12 Art. 11, Marco Civil da Internet: Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

13 BROUSSEAU, Eric; MARZOUKI, Meryem; MÉADEL, Cécile. Governance, regulations and power on the internet. Nova Iorque: Cambridge University Press, p. 34/42. 2012.

14 REsp 1783269/MG, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 18/02/2022.

Daniel Becker
Sócio do Lima = Feigelson Advogados e Diretor de Novas Tecnologias no CBMA. Advogado de resolução de disputas com foco em litígios contratuais oriundos de setores regulados. Professor convidado de diversas instituições, palestrante frequente e autor de diversos artigos publicados em livros e revistas nacionais e internacionais sobre os temas de arbitragem, processo civil, regulação e tecnologia. Organizador dos livros "O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao Professor Richard Susskind", "O fim dos advogados? Estudos em Homenagem ao Professor Richard Susskind, vol. II", "Regulação 4.0, vol. I", "Regulação 4.0, vol. II", "Litigation 4.0", "Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados", todos publicados pela Revista dos Tribunais.

Felippo Accetta
Advogado (UFF/RJ) no Becker Bruzzi Lameirão Advogados. LL.M. Direito e Tecnologia na FGV/RJ. Pesquisador de Online Dispute Resolution e Processo Civil na PUC/RJ.

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