Migalhas de Peso

A graça do presidente de 21/4/22

O decreto de graça do chefe do Executivo não pode ser arbitrário e voluntarista, nem violar princípios constitucionais. Como ato estatal é obviamente fiscalizável pelo STF. Ainda há-se-nos um Estado democrático constitucional.

26/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Apenas a punibilidade

Pontes de Miranda1, grande jurista brasileiro, cunhou uma frase há 50 anos, sobre quem se beneficia com um decreto de graça do presidente da República: ‘É um delinquente, perdoado mas delinquente.’

Como sempre, Pontes de Miranda estava ‘insuportavelmente’ correto, já que a graça é apenas modo de extinção da punibilidade, que, como se sabe, não é elemento integrador do crime2 ao lado dos atuais 4 fatores conceptivos do delito: ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, conforme Juarez Tavares3.

Ou seja, a graça retira a prisão do condenado, mas não apaga o crime nem os outros efeitos da condenação. O STJ tantas vezes decidiu neste sentido que chegou à Súmula 631: ‘O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais’.

Assim, não se pode querer que quem conceda graça tenha poderes para também conceder perdão ao restante da condenação. Não por outra razão o Código Penal, artigo 107, II, classifica expressamente a graça no Título VIII – Da Extinção da punibilidade.

Mirabete e Fabrini4 fecham o baú, no Direito Penal, no sentido de que a graça destina-se não ao fato, não ao crime, mas à pessoa do criminoso. Graça não é reconhecimento de que o crime não ocorreu e não equivale à absolvição nem discute o delito em si.

2. Direito privativo não é direito absoluto

A graça, ou indulgência soberana – indulgentia principis-, possibilidade de o chefe do Executivo, por meio de decreto, extinguir a punibilidade, é estudada no Direito brasileiro, e no internacional, desde sempre. Zaffaroni e Pierangeli5 ensinam provir a graça ‘das antigas atribuições do monarca, exercidas em nome da piedade real’. Já Cretella Junior6 mostra que o gênero indultum aparece no Código Teodosiano 3, 10, 1. Ou seja, um instituto conhecido desde 438 d. C.

Sobre o velho conceito, então, vê-se que há no Direito toda uma evolução jurídica sedimentada, com princípios que não podem ser violados.

Daí, uma primeira grande questão: será que o presidente no decreto de graça pode ser juridicamente desproporcional; juridicamente irrazoável; juridicamente desfundamentado; ou mesmo inconstitucional? A qualificadora epistemológica ‘juridicamente’ é repetida aí precisamente para se perceber que os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, fundamentação e constitucionalidade, não existem ao sabor subjetivista de uma percepção leiga, mas circunscritos a construções de interpretação sistêmica comum à ciência do Direito, cuja violação os imprestabiliza.

Também, sabendo-se que inexistem ‘direitos absolutos’ no Direito, a graça, presente nas Constituições brasileiras desde 1891, conquanto um direito expressamente privativo do presidente da República, nunca foi um direito absoluto. Ser a graça um direito discricionário do presidente não quer dizer que possa ser arbitrária, ilegal ou inconstitucional.

A doutrina e o STF têm, desde sempre, balizas especificamente próprias sobre esta temática. Não cabe ao Judiciário aferir o juízo de conveniência e oportunidade do decreto de graça, entretanto o decreto se submete, obviamente como qualquer ato estatal, ao controle da constitucionalidade, não podendo violar princípios constitucionais, conforme antigas já ações Habeas Corpus 84.829/2005 e 96.431-1/2009, no próprio STF.

Assim, o Ministério Público e a OAB, por exemplo, são legitimados à ação direta de inconstitucionalidade – como foi precisamente o caso verificado na ação 5.874/2017, proposta pela Procuradoria-Geral da República-, para questionar a constitucionalidade de um decreto presidencial de graça.

No necessário controle da constitucionalidade de um decreto de graça, chegam-se a 10 princípios/parâmetros que jamais podem ser violados7 como: 1) da separação de poderes; 2) individualização da pena; 3) vedação constitucional do Executivo para legislar sobre direito penal; 4) vedação de proteção insuficiente; 5) proporcionalidade; 6) separação dos Poderes; 7) efetividade mínima do direito penal; 8) dever de proteção do Estado quanto à segurança, justiça, probidade administrativa e direitos fundamentais dos cidadãos; 9) moralidade administrativa por desvio de finalidade; 10) respeito que ao Poder Executivo é imposto no tocante à natureza e finalidade do instituto conforme instituídos pela própria Constituição, em consonância à principiologia balizadora da administração pública.

Haverá quem ‘queira’ que o decreto de graça, numa leitura literal – e primária- da Constituição da República possa ser absoluto, totalitário, ao talante voluntarista do chefe do Executivo, mas, como adverte Eros Grau8, ‘a interpretação da Constituição é dominada pela força dos princípios’, e todo e qualquer decreto não pode ser ilegal ou inconstitucional. Sobre a interpretação da Constituição, remeto o leitor ao artigo que publiquei no Migalhas9, ‘Ler a Constituição é tão Simples’.

3. O deputado cometeu crime?

Alguns andam imaginando que o deputado Daniel Silveira não tenha cometido crime por sua imunidade material, de parlamentar, a mesma imunidade que foi concedida a advogados pela Constituição da República, artigo 53, caput, conforme nota de Damásio de Jesus10 no artigo 142 do Código Penal. Mas, de novo, a leitura literal do artigo 53 – e de artigo nenhum de Lei ou Constituição- nunca se sustentou.  Reproduzo aqui 7 parágrafos de um outro artigo meu11, sobre o tema, publicado em 22/2/21.

Diz o artigo 53 da Constituição: ‘Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.’

Celso de Melo, em voto RTJ 155/399 considera ‘A imunidade parlamentar material só protege o congressista nos atos, palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do ofício congressual.’ No exercício do ofício congressual.

Sepúlveda Pertence em decisão 7-8-02, Informativo STF 276, inserindo epistemologia ligeiramente diversa, mas especializada, registra ‘Estão excluídas as manifestações que não guardem pertinência temática com o exercício do mandato parlamentar.” Tematicidade e exercício do mandato.

O Pleno do STF – RTJ 133/90 também já considerou que a imunidade material ‘protege o parlamentar em todas as suas manifestações que guardem relação com o exercício do mandato.’ De novo, exercício do mandato.

Cretella Júnior em seus Comentários à Constituição de 1988 abre capítulo próprio intitulado ‘Atos Praticados Fora do Recinto do Congresso’, ensinando igualmente não existir para os congressistas imunidade para atos estranhos ao exercício do mandato.

Pontes de Miranda, comentando o artigo 32 da Constituição anterior, sintetiza: ‘Só os atos praticados em exercício de função de deputado ou de senador, escapam aos princípios que regem a criminalidade e a responsabilidade civil.’ Vê-se que o assunto não tem nada de ‘novo’ no Direito.

Por fim, o próprio Alexandre de Moraes em seu famoso livro Direito Constitucional, desde sempre (4ª ed., 1998, p. 330; 8ª ed., 2000, p. 386; 15ª ed., 2004 p. 413 etc.) é uníssono com a interpretação jurídica unânime e correta, que restringe a imunidade parlamentar ao exercício do mandato.

Os 7 parágrafos acima mostram, sem qualquer equivocidade, que o Direito e o STF, desde sempre, são contestes com a interpretação de que sim, parlamentares podem cometer crimes se suas falas e situações e locais não disserem respeito ao exercício do mandato, ficando vencidas opiniões totalitárias e ditatoriais sobre a esdruxularia da leitura literal do artigo 53 da Carta.

4. Decretos absurdos podem?

Se para o leigo o conceito de ‘absurdo’ possa ser axiológico e variável ao entendimento de pessoa, para um ato estatal deverá ser um fator obrigatoriamente nulificante.

Assim, não bastará um decreto descrever ou informar formalmente em sua redação que visa à proteção da separação de Poderes ou à garantia da liberdade de expressão etc.; aliás, essas materialidades temáticas são írritas, vez que a graça não se dedica à análise do delito, mas ao criminoso. O certo é que, se numa análise jurídica houver qualquer violação a um dos princípios ou parâmetros arrolados acima, como todo e qualquer ato estatal que jamais pode ser nulo, o decreto terá que ser imprestabilizado pelo STF. Isso não é vingança, perseguição ou qualquer outra fofoca ideológica repetida popularmente, do STF, mas mera exigência legal de atendimento a um instituto jurídico classificado como ‘questão de ordem pública’ gerador de nulidade absoluta.

Assim, percebe-se que o presidente da República, com o decreto de graça, não pode ser desproporcional, irrazoável, desfundamentado e inconstitucional, pelo simples fato de que nenhuma manifestação do Estado pode conter tais vícios, sob pena de atrair necessária sanação. Igualmente, não pode estar, o decreto, contaminado com uma ‘quantidade’ de voluntarismo, estupidez ou discrionariedade que adentre numa análise de nulidade jurídica, o que certamente acabará contaminando o ato estatal.

Não por outra razão, ninguém menos que José Frederico Marques12, já desde a década de 1950 ensinava que ‘O indulto e a graça em sentido estrito são providências de ordem administrativa, deixadas a relativo poder discricionário do Presidente da República, para extinguir ou comutar penas.’ Repare-se, ‘relativo poder’. Nunca foi poder absoluto, já que essa bobagem inexiste no Direito. E na mesma passagem cita Pontes de Miranda: ‘O poder de perdoar, atualmente, tem limites.’

A graça, renúncia do Estado ao direito de punir, não extingue o crime, ele permanece existente; cessa apenas a particularidade do direito de punir, e assim mesmo no campo penal, tanto que se a sentença transitou em julgado o decreto de graça não a atinge, atuando como condição resolutiva e ex nunc, ou seja, o criminoso não vai para a cadeia, mas sofre as outras consequências da sentença. Conforme a citada Súmula 631 do STJ.

Meritoriamente, a graça, conforme Frederico Marques13 ‘tem seu fundamento na equidade, no justo objetivo, como providência destinada a temperar os rigores da justiça (supplementum justitiae).’ Percebe-se que um decreto que não vise a todos estes enquadramentos funcionais poderá e deverá ter sua constitucionalidade – e nulidade ínsita- discutidas no STF.

E por temperança na pena, leiam-se penas atrozes, como, por exemplo, as existentes à época da promiscuidade administrativa entre Estado e religião, barbaria que levou Beccaria, desde o século 18 – conjuntamente com muitos juristas até da atualidade, a condenar a graça, vez que no Direito moderno, sem mais cabimento para penas atrozes, não mais se justificaria o casuístico instituto da graça.

Frederico Marques em artigo memorável publicado no Estadão em 8/5/1955, transcrito em seu livro citado, a páginas 455, mostrava: ‘É necessário, que a aplicação do instituto não fique desvirtuada, e que não se faça da indulgência soberana um instrumento de supercontrole que atinja o que há de específico e próprio na atividade jurisdicional dos órgãos estatais do Poder Judiciário. A graça existe, não para que o Executivo mantenha sob incompreensível poder revisional, as decisões da Justiça Penal.’ Até parece que o autor teria avançado no tempo para conhecer a esdruxularia deste decreto aí, tão conformes suas críticas.

Também, um decreto de graça não pode ser o ato jurídico de má-fé, outro nulificador legal de qualquer relação jurídica no território brasileiro-, no sentido de representar um ‘te peguei!’ episódico e malandro a uma decisão do Judiciário, como se o chefe do Executivo possuísse um controle epocal e aposterístico sobre o Judiciário, ou, como se o presidente pudesse exercer seu voluntarismo idiossincrático e a seu talante, e isso não gerasse repercussões jurídicas que demandassem controle desses atos então arbitrários.

À atual praga da moda – há-se rir- de mensagens reenviadas de Whatsapp e vídeos de Yotube, com crédulos afirmando que o STF fez ‘tudo’, investigou, denunciou e julgou o caso Daniel Silveira, recomenda-se conheçam a investigação policial, a denúncia e o processo. Nada menos que duas entidades constitucionais, Judiciário e Ministério Público, e um órgão do próprio Executivo, o Departamento de Polícia Federal, intervieram ordinariamente no caso. Mas se o bobo do momento, seja ele senador da República de plantão ou motorista de trator, quiser continuar repetindo que todo concerto musical só teve um único maestro e músico ao mesmo tempo, o Supremo, que sinta-se inteiramente à vontade. O filósofo Marco Casanova14 é didático: ‘cada povo tem a estupidez que merece’.

Conclusões

1. A graça é instituto constitucional e como todo e qualquer conceito jurídico constitucional em todos os países democráticos, não prescinde de interpretação jurídica, não valendo, para fins técnicos, uma leitura literal ou primária da lei, da Constituição e muito menos dum decreto de graça.

2. Com um decreto de graça, só ficam extintos os efeitos primários da condenação, ou seja, a pretensão executória, não somem o crime nem a qualificação de criminoso, apenas o beneficiário da graça deixará de ir para a cadeia, continuando exposto, conforme Súmula 631 do STJ, aos efeitos secundários penais e extrapenais.

3. A graça não é um ato pessoal de ordem privada do presidente da República, mas um decreto que, como qualquer ato do Estado, demanda a normal fiscalização jurídica e constitucional, reafirmando-se que não existem direitos absolutos, nem atos presidenciais que possam ser arbitrários, cabendo, exclusivamente ao STF, a averiguação da higidez jurídica de qualquer decreto.

4. Um Estado Democrático de Direito impõe a todos os habitantes de um país, inclusive ao presidente do Executivo, submissão plena à Constituição, sabendo-se que esta submissão se traduz, em última análise, pela interpretação jurídica que o STF conclui da Carta, como em toda e qualquer democracia constitucional do planeta.

5. Qualquer vício existente num decreto de graça deve ser fiscalizado pelo STF, por provocação de qualquer das entidades competentes para a verificação. Aqui não se há confundir, como muitos ‘querem’, a instauração de um mero inquérito policial com a abertura de um processo judicial, coisas totalmente diferentes.

6. Toda e qualquer condenação penal pelo STF – vez que o Poder Judiciário é inerte- é uma mera resposta a uma ação proposta com exclusividade pelo Ministério Público, o titular exclusivo da ação penal pública. Eventual, excepcional e episódico início ou requisição de inquérito policial – mero procedimento administrativo- pelo STF, não afasta a necessidade de o réu ter que ser denunciado exclusivamente pelo MP, o que efetivamente ocorreu relativamente ao objeto do decreto de graça de 21/4/22.

 ___________

1 MIRANDA, Pontes. Comentários à constituição de 1967, t. III. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 846.

2 Já não era desde Beling, 1906, na estrutura tripartida do delito: ação típica, antijurídica e culpável, in Welzel, Derecho penal aleman, 2ª ed. Chile, 1976, p. 79.

3 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p 121.

4 MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal. 1. 35ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 388.

5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal – parte geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999, p. 749.

6 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição brasileira de 1988. V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 2910.

7 ENGELMANN, Wilson; LEAL, Daniela Weber S. in CANOTILHO, J. J. Gomes [et all]. Comentários à constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 1342.

8 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 167.

10 JESUS, Damásio. Código penal anotado. 23 ed. São Paulo: Saraiva. 2016, p. 622.

11 https://observatoriogeral.com/2021/02/22/a-imunidade-parlamentar-e-o-tal-daniel-silveira/

12 MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 433-4.

13 MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 431.

14 CASANOVA, Marco. A persistência da burrice. Rio de Janeiro: Via Verita, 2020, p.20.

Jean Menezes de Aguiar
Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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