Migalhas de Peso

Acordo de "não-perseguição" penal e a violação direitos fundamentais

Quando o acusado aceita realizar o ANPP, não está apenas aceitando as condições para não ir à prisão, estará trocando direitos e garantias constitucionais.

27/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Não é de hoje que o Poder Judiciário brasileiro é conhecido pela lentidão da tramitação processual. Em se tratando de processos penais, a situação é ainda mais grave uma vez que entra em cena o direito à liberdade constitucionalmente assegurado a todos.

Visando “acelerar” a marcha processual no poder judicante, e no afã de atender os anseios de uma sociedade cada vez mais punitivista, o nosso Poder Legislativo tem agido no sentido de adicionar às nossas leis um conjunto de mecanismos malogradamente conhecidos como “despenalizadores”.

Na sanha de reduzir “a qualquer custo” o número de processos nas estantes, agora nos HD’s, do Poder Judiciário, foi aprovada há três anos atrás a lei 13.964/19, vulgarmente conhecida pelo codinome de Pacote Anticrime.

O famigerado pacote, que se revelou um conjunto de medidas que visam endurecer as penas aplicadas no país, e diminuir as garantias processuais, trouxe em seu bojo a regulamentação acerca do Acordo de Não-Persecução Penal, ou ANPP. Esta foi uma das mais novas formas imaginadas pelos congressistas de diminuir os números de processos do Poder Judiciário.

Numa análise preliminar, o Acordo de Não-Persecução Penal pode parecer muito vantajoso para o acusado, uma vez que, aceitando os termos propostos pelo Parquet, livrar-se-á desde de qualquer possibilidade do cumprimento de uma pena na prisão. Olhando-se um pouco mais afundo, no entanto, a verdade que se revela é que o até então acusado não está apenas trocando uma possível pena a ser futuramente aplicada por uma medida alternativa, mas sim, trocará direitos e garantias constitucionais que lhes são asseguradas a troco de uma possível sanção penal.

É por demais óbvio que a Constituição Federal de 1988 adotou uma postura mais garantista, afinal, sucedeu um período ditatorial no qual direitos e garantias fundamentais foram solenemente violados.

No ano de 2017, através da resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, foi feita a introdução do Acordo de Não-Persecução Penal em nosso país.

Percebendo a lacuna, e ante a ineficiência do Judiciário em responder em tempo hábil ao crescente aumento das demandas penais, o Poder Legislativo entendeu por bem ratificar esta prática. O golpe forte na Constituição veio então com o famigerado Pacote Anticrime, que introduziu no Código de Processo Penal o artigo 28-a, que trouxe a previsão formal do Acordo de Não-Persecução Penal ao nosso ordenamento.

Para tratar do tema, vamos estabelecer as seguintes premissas:

1 – O Acordo de Não-Persecução Penal é um instrumento extrajudicial, ainda que dependa de homologação do juiz, estando, portanto, na esfera de competência do ilustre membro do Parquet – o qual também possui a atribuição de acusar o investigado;

2 – Para a formalização do acordo é necessária a admissão formal do acusado, sendo este um requisito indispensável para a validade dele;

3 – No caso de descumprimento das condições impostas no acordo, não há impedimento legal para que o membro do Ministério Público utilize a confissão do crime dada pelo acusado como substrato de prova no decorrer da instrução processual penal.

Analisando as premissas resta clara a problemática que gira em torno dessa medida despenalizadora. A despeito de todas as conquistas e avanços obtidos a duras penas pela nossa constituinte, o legislador derivado trouxe à tona a possibilidade de que o acusado renuncie aos princípios constitucionais que lhes são mais caros.

A primeira, e mais flagrante inconstitucionalidade, do instituto diz respeito à afronta ao princípio da presunção de inocência insculpido no art. 5º, LVII da Constituição1.

Pela lógica processual do comando do art. 28-A do Código de Processo Penal, o ANPP deve ser proposto antes da oferta da denúncia pelo membro do Ministério Público. Nessa etapa processual, temos uma fase mais centrada na investigação preliminar do delito ocorrido, caracterizado principalmente pelo forte teor inquisitorial.

O que se percebe, nesta construção feita acerca do instituto, é a tentativa de suprimir o direito constitucional à presunção de inocência. O que vemos é uma tentativa de assimilação do plea bargaining – de origem norte-americana.

Quando o acusado – no âmbito do processo penal norte-americano, aceita realizar o plea bargaining com o órgão acusador, ele não está apenas aceitando as condições impostos para não ir à prisão, eleestá trocando a dúvida de uma punição pela certeza de um acordo. O mesmo ocorre, guardadas as devidas proporções, no Brasil.

A Lei traz à baila apenas recomendações quanto às penas a serem aplicadas alternativamente à prisão, e mesmo nesse caso deixa margem para o membro daquele Órgão erigir por outra não prevista no rol exemplificativo do art. 28-A e seguintes do CPP.

Ao analisar essa sistemática, o que observamos é que o acusado, ao aceitar o Acordo de Não-Persecução Penal, estará, em verdade, trocando direitos e garantias constitucionais resguardadas no âmbito do processo penal – além de uma sentença dada por um julgador imparcial, pelo reconhecimento do crime e a consequente pena imposta justamente por aquele que que teria o papel de provar a sua culpa.

O princípio do devido processo legal está insculpido na Constituição Federal2, mais precisamente em seu artigo 5º, LIV3

O devido processo legal está assentado na garantia constitucional de que ninguém poderá ser preso, ou ter seus bens tomados, sem que antes ocorra um processo submetido à apreciação judicial. Mas tão somente a análise judicial do caso não é suficiente para validar a imposição de tais sanções.

Há um claro contrassenso, e também uma violação, ao princípio do devido processo legal quando a figura do acusador e a daquele que propõe a substituição da pena estão representados na figura da mesma pessoa.

O princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório é, sem sombra de dúvidas, um dos que possuem a maior gama de abrangência em nosso ordenamento jurídico.

Dentro do amplo espectro de atuação da ampla defesa e do contraditório está o conhecido direito à não autoincriminação. Ora, se a inocência do réu é constitucionalmente presumida, cabendo ao Parquet comprovar – sem deixar dúvidas – a culpa, mais certo ainda é que ele não pode ser obrigado a produzir provas que lhe incriminem.

Podemos concluir afirmando que o direito ao silêncio, aqui entendido não só como o não pronunciamento, mas também a não assunção de culpa, está intimamente relacionado com a nossa Constituição.

O ANPP é realizado ainda na fase do inquérito, antes da oferta da denúncia pelo Ministério Público. Essa fase do processo penal é reconhecidamente uma fase inquisitorial, onde o exercício do contraditório e da ampla defesa é realizado de forma diferida.

Ao se permitir a continuidade do instituto em nosso ordenamento, da maneira como se encontra, perpetraremos uma verdadeira inconstitucionalidade no âmbito do processo penal, capaz de colocar em risco todos os demais direitos e garantias fundamentais.

Muito embora a demora no julgamento dos processos seja um problema real e enorme do nosso país, ainda mais considerando que o princípio da celeridade foi incluído no art. 5º da Constituição, muito mais importante que ele é a manutenção dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados.

O simples fato dele somente ser viabilizado na etapa inquisitorial do processo, sem a participação ativa de um julgador imparcial, já revela – por si só, a tentativa de supressão de determinados direitos a pretexto de resolver os processos. Outro ponto a se destacar é a necessidade premente de confissão do delito, o que vai de encontro frontal e direto contra o direito de não autoincriminação.

Por qualquer que seja o ângulo que se veja o instituto abrasileirado pelo Congresso Nacional, não é possível vislumbrar qualquer possibilidade de existência dele no nosso atual ordenamento jurídico-constitucional.

O que o Acordo de Não-Persecução Penal pretende é subverter essa lógica, fazendo com que o acusado renuncie a suas garantias em troca de não ir para a prisão. O que estamos vendo acontecer bem à nossa frente nesses tempos nefastos é a subversão dessa lógica, de modo que caberá ao acusado não mais provar a sua inocência, mas sim afirmar a sua culpa.

Felizmente, a nossa constituinte originária concebeu uma constituição à luz dos direitos humanos. Felizmente, garantiu a todos aqueles em território nacional um mínimo de direitos e garantias que dessem a cada um de nós condições mínimas de dignidade.

Aceitar a modificação desse status quo, ainda que sob a justificativa de acelerar a prestação jurisdicional é um retrocesso humanitário impensável em tempos modernos. Devemos rechaçar medidas como essas, que buscam limitar direitos conquistados ao longo dos tempos a duras penas.

__________

1 Constituição Federal 1988. Artigo 5º, inciso LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

2 Constituição Federal

3 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira
Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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