A individualização do crime, por si só, já é algo que daria uma grande obra, pois sabemos que o direito penal, mesmo sendo direcionado a condutas pessoais, possui um público específico1.
Os próprios objetivos do direito penal já seriam suficientes para demonstrar que, mesmo antes dessa tentativa de racionalização dos processos, já existia uma pasteurização do direito penal com a escolha de bens jurídicos específicos que seriam agasalhados pela proteção estatal.
Como explica Juarez Cirino dos Santos2 existe uma diferença gritante entre os objetivos oficiais (declarados) e reais do direito penal. Enquanto o discurso oficial trata os bens jurídicos como aqueles definidos por critérios fundados na constituição, sabemos que as escolhas são feitas pela política-criminal, que muitas vezes se vale de preceitos constitucionais, mas dá pesos e medidas diversos, se atentando a interesses e privilégios de grupos sociais hegemônicos, muitas vezes fundados sob a força econômica.
Essa divergência política, natural em sociedades democráticas, suscetível por conta de lobbys e grupos de pressão, fazem destacar, ainda mais, a subsidiariedade e fragmentariedade em nosso sistema penal.
A condução ideológica da política-criminal dos últimos anos fez com que nosso sistema penal se tornasse um terrível monstrengo, sem nenhum tipo de padrão ou fundamento racional.
A postura do combate as drogas, a busca incessante por “megaoperações contra a corrupção” e o famigerado combate à impunidade (justificativa para todo o tipo de exasperação penal), deu vez a uma hipertrofia criminal totalmente desfigurada, que ignora a proporcionalidade e inverte a lógica da ultima ratio, fazendo com que a primeira iniciativa seja a criação de novas figuras de sanção penal ou, não satisfeitos, o enrijecimento das leis já existentes
Já a fragmentariedade é evidente quando analisamos, dentro desse universo interminável de leis penais incriminadoras que passaram a ser a principal ferramenta de política criminal, quais são as condutas efetivamente investigadas e punidas pelo poder estatal.
Segundo dados do CNJ, quase 80% dos presos estão cumprindo pena pelos crimes de roubo, tráfico de drogas, homicídio, furto e porte/posse de arma de fogo3, mostrando que, apesar de um leque gigantesco de crimes, todas as prisões são concentradas em apenas 5 ilícitos penais.
Ou seja, se fossem extintos todos os tipos penais deixando vigentes apenas as 5 tipificações citadas acima, somente pouco mais de 20% dos presos seriam beneficiados, o que deixa claro a indiferença que a cultura de apologia a criação de tipos penais faz na prática.
Dito tudo isso, fica evidente que o processo penal brasileiro é um monstrengo sem nenhum tipo de lógica, pois, de um lado apregoa, como direito fundamental, a individualização do julgamento e da pena e de outro vem alimentando um sistema de rotulação criminal, agora potencializado por uma lógica de “racionalização” dos processos.
O resultado dessa contradição é um sistema de precedentes mambembe, onde as teses se retroalimentam nas cortes superiores e criam uma bola de neve.
Para ficar em um único exemplo, basta uma análise do HC 681.680/SP, onde a 6ª turma do STJ, em 2021, voltou a julgar um caso de um homem que foi condenado a 7 anos e 3 meses de prisão, com regime inicial fechado, após ser flagrado com 0,4 gramas de crack4, mostrando que a busca por racionalizar e “limitar” o número, cada vez maior, de habeas corpus é algo impossível de se imaginar em sistemas processuais que não conseguem firmar teses “simples” como o princípio da insignificância.
Mas não são só questões de “absolvição ou condenação” que carecem desse tipo de vício, também há uma extrema dificuldade em uniformizar o próprio processo penal, enquanto meio para aplicação de uma pena, e as investigações policiais ou realizadas pelo Ministério Público.
Nesse sentido basta ver a dificuldade em criar balizas claras de limites processuais, como a incessante tentativa de se fazer cumprir o artigo 226 do Código de Processo Penal, que explica, taxativamente, como deverá proceder o reconhecimento pessoal.
Já são quase uma centena de decisões proferidas pelo STJ5 no sentido de que a inobservância do artigo 226 do Código de Processo Penal invalida o reconhecimento do acusado feito na polícia, não podendo servir de base para a sua condenação, nem mesmo se for confirmado em fase judicial, ainda assim, são diversas as decisões de primeiro grau e de tribunais de justiça que ignoram o precedente da corte, forçando com que a matéria seja apreciada em grau recursal, muitas vezes em recursos excepcionais, como o Especial e o Extraordinário.
A grande questão é que estamos falando de pessoas presas, que vem cumprindo pena relacionadas a processos em que a decisão é divergente de entendimento de cortes superiores, ou seja, contra o próprio sistema de racionalização que querem adotar.
Não é razoável que essas pessoas sejam submetidas a prisões absolutamente ilegais enquanto aguardam as apreciações recursais ordinárias que, infelizmente, demoram anos.
Assim, resta o Habeas Corpus, meio autônomo de impugnação, como única válvula de escape que corrija as ilegalidades e aplique a lei ou jurisprudência de forma imediata.
Ocorre, que as críticas passaram a ser constantes, chegando a ponto de transformar o Habeas Corpus em uma espécie de “agravo geral”6 cabível contra qualquer decisão interlocutória proferida em processo penal, fazendo com que o remédio heroico, muitas vezes, seja tão moroso quanto um recurso ordinário.
O pior é que a solução encontrada pelos tribunais, ao invés de resolver o problema, cria barreiras, como a súmula 691 do STF7, que trata o habeas corpus como o problema da assimetria legal e jurisprudencial ao redor do processo penal.
E não é só, fica cada vez mais comum o uso de algo que é totalmente estranho a teoria processual, que são os casos em que são negados os Habeas Corpus e, ao mesmo tempo, concedidos de ofício, nos termos levantados pela defesa.
Ou seja, criamos um sistema totalmente inseguro e que deixa margem para uma seletividade e discricionariedade por parte dos tribunais que julgam aquilo que entendem como “evidente violação de direitos” e submete todos os outros temas ao filtro da “racionalidade”.
Relembrando que muitas vezes o ingresso do habeas é, justamente, para questionar o não cumprimento de precedentes por juízes ou tribunais, ou seja, ao questionar a racionalidade do sistema, somos barrados pela racionalidade do sistema. É uma verdadeira conversa de surdo e mudo.
Em resumo: adotamos um sistema de individualização de processos, onde cada pessoa tem o direito de ser julgado por seus atos e ter uma sentença de acordo com o fato que lhe é imputado, porém, para racionalizar o sistema, buscamos implementar um sistema de precedentes, que cria alguns critérios objetivos e gerais para o processo penal, porém (2), muitas vezes esse sistema não é cumprido por juízes e tribunais, que insistem em discutir teses pacíficas, fazendo com que as partes todos os dias precise ir até as cortes superiores para buscar seu direito, porém (3) o acesso as cortes superiores é barrado pela racionalidade do sistema, que vem tentando limitar a ‘banalização do habeas corpus’, porém (4), é possível que a corte ‘negue o seguimento banalizado do habeas’ e conceda ordens de ofício, nos termos do banal remédio constitucional.
Enfim, esse é o processo e seus porém(s), se ficou confuso, peço desculpas, pois é assim que funciona o processo penal.
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1 Com bem lembra Zaffaroni: “se cada cidadão fizesse um rápido exame de consciência, comprovaria que várias vezes em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado, levou a toalha de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido etc. Em sã consciência, cada um de nós tem um “volumoso prontuário”. Os juízes incrementam-no diariamente, ao subscrever falsamente declarações como aquelas prestadas em sua presença e nas quais jamais estão presentes. Os serventuários da justiça certificam diariamente várias destas falsidades ideológicas. (Manual de Direito Penal Brasileiro – Ed. 2021; Eugênio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. Revista dos Tribunais.).
2 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral
3 Dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões; BNMP 2.0
4 HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DESQUALIFICAÇÃO PARA A CONDUTA DE PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA CONSUMO PRÓPRIO. POSSIBILIDADE. EXCEPCIONALIDADE DO CASO DOS AUTOS. ORDEM CONCEDIDA. 1. No processo penal brasileiro, em razão do sistema de persuasão racional, o juiz forma sua convicção “pela livre apreciação da prova” (art. 155 do CPP), o que autoriza a, observadas limitações processuais e éticas que informam o sistema de justiça criminal, decidir livremente a causa e todas as questões a ela relativas, mediante a devida e suficiente fundamentação. 2. A Lei n. 11.343/2006 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e da do pequeno, médio ou grande traficante, questão essa, aliás, que já era a problemática da lei anterior (n. 6.368/1976). 3. O alargamento da consideração sobre quem deve ser considerado traficante acaba levando à indevida inclusão, nesse conceito, de cessões altruístas, de consumo compartilhado, de aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio e, por vezes, até de administração de substâncias entorpecentes para fins medicinais. 4. Na espécie em julgamento, em que pese a existência de condenações, antigas no tempo, pela prática de delitos da mesma natureza em desfavor do acusado, em nenhum momento foi ele surpreendido comercializando, expondo à venda, entregando ou fornecendo drogas a consumo de terceiros. Também não há nenhuma referência a prévio monitoramento de suas atividades, a fim de eventualmente comprovar a alegação do Ministério Público de que “estava comercializando entorpecentes na Praça Jardim Oriente, local amplamente conhecido como ponto de venda de entorpecentes”. 5. Considerada a ínfima quantidade de droga apreendida (0,4 g de crack) e a afirmação do réu, em juízo, de que a substância apreendida seria para seu próprio consumo, opera-se a desclassificação da conduta a ele imputada, em respeito à regra de juízo, basilar ao processo moderno e derivada do princípio do favor rei e da presunção de inocência de que a dúvida relevante em um processo penal resolve-se a favor do imputado. 6. Ao funcionar como regra que disciplina a atividade probatória, a presunção de não culpabilidade preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera probabilidade, determinando que somente a certeza, além de qualquer dúvida razoável (beyond a reasonable doubt), pode lastrear uma condenação. A presunção de inocência, sob tal perspectiva, impõe ao titular da ação penal todo o ônus de provar a acusação, quer a parte objecti, quer a parte subjecti. Não basta, portanto, atribuir a alguém conduta cuja compreensão e subsunção jurídico-normativa decorra de avaliação pessoal de agentes de Estado, e não dos fatos e das circunstâncias objetivamente demonstradas. 7. Por tal motivo, não se pode transferir ao acusado a prova daquilo que o Ministério Público afirma na imputação original e, no ponto, não se depreender a prática de crime mais grave de tráfico de drogas tão somente a partir da apreensão da droga em poder do acusado ou de seu passado criminógeno. Salvo em casos de quantidades mais expressivas, ou quando afastada peremptoriamente a possibilidade de que a droga seja usada para consumo próprio do agente e a instância de origem não afastou essa hipótese, cumpre ao titular da ação penal comprovar, mediante o contraditório judicial, os fatos articulados na inicial acusatória, o que, no entanto, não ocorreu, como se depreende da leitura da sentença e do acórdão. 8. É de considerar-se, outrossim, que do Ministério público, instituição que, acima de tudo, se caracteriza pela função fiscalizatória do direito (custos iuris), espera-se mormente ante a necessidade de direcionar seus limitados recursos e esforços institucionais com equilibrada ponderação uma atuação funcional imbuída da percepção de que o Direito Penal é o meio mais contundente de que dispõe o Estado para manter um grau de controle sobre o desvio do comportamento humano, e que, por isso mesmo, deve incidir apenas nos estritos limites de sua necessidade, não se mostrando, portanto, racionalidade defensável que a complexidade do atual perfil de atribuições “converta os agentes de execução do Ministério Público em simples ‘despachantes criminais’, ocupados de pleitear meramente o emprego do rigor sistemático de dogmática jurídico-penal, ademais de meros fiscais da aplicação sistemática e anódina da pena “(Paulo César Busato, O papel do Ministério Público no futuro Direito Penal Brasileiro. In: Revista de Estudos Criminais. Doutrina Nacional. V. 2, n. 5, p. 105-124). 9. Ordem concedida para cessar o acórdão impugnado e, por conseguinte, restabelecer sentença que, desclassificando a imputação original, condenou o paciente pela prática do crime previsto no art. 28, caput, da Lei n. 11.,343/2006.
5 STJ. Informativo 684. Destaque: “O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na faze do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.”.
6 Nesse sentido, Gustavo Badaró, Manual dos Recursos Penais.