Muito se discute na doutrina e jurisprudência acerca da responsabilidade do parecerista em licitações e contratos da administração pública, mas pouco se encontra a respeito da responsabilidade dos demais servidores envolvidos nas outras etapas do procedimento.
O assunto é relevante vez que a aprovação de uma licitação não depende apenas da opinião emitida pela assessoria jurídica e/ou do ordenador de despesas. Ao revés, não seria possível concluir um processo licitatório, que possui muitas minúcias e complexidades, sem a existência de um setor requisitante, de servidores que realizem o planejamento, verificando a necessidade daquela determinada contratação e a justificando, agentes públicos que, em cooperação, estimem o custo (realizem a pesquisa de preços), verifiquem a disponibilidade orçamentária e aprovem a despesa, elaborem o termo de referência, deflagrem a licitação, elaborem a minuta do edital e façam a devida divulgação, sem mencionar as etapas externas.
Em suma, somente após todas essas etapas, elaborada a minuta do edital e antes da publicação, o processo é encaminhado à assessoria jurídica, que emitirá um parecer a respeito da possibilidade jurídica de realização de determinada contratação pública, cabendo à administração a discricionariedade da adoção ou não das orientações ali dispostas.
Ressalta-se que, o parecer não é uma peça hábil a sanar vícios proferidos por outros setores, especialmente quando envolve minúcias técnicas, imperceptíveis para o profissional do Direito. O fato do processo possuir manifestação jurídica, não isenta de forma alguma a responsabilidade do servidor público que atuou de forma culposa ou dolosa, prejudicando a administração.
A responsabilidade por atos praticados por pareceristas é um tema comumente abordado em doutrina e jurisprudência sem divergência considerável. O Tribunal de Contas da União tem entendido que advogados públicos podem ser responsabilizados em razão da existência de importante vício na peça produzida que deu origem a ato irregular, ou seja, se o parecer jurídico contiver erro grosseiro ou inescusável, pugnar desarrazoadamente pelo cometimento de ato danoso ao erário ou com grave ofensa à ordem jurídica, tendo relevância causal para a prática do ato, o autor deverá ser fiscalizado1.
Inclusive, no Mandado de Segurança 24.631/DF2, o Supremo Tribunal Federal assentou que “é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa.”
De outra sorte, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento3 claro de que não cabe ao procurador a mera repetição burocrática do entendimento proferido pelas Cortes de Contas, sendo este livre para criar teses que tragam oxigênio ao mundo jurídico e atendam ao interesse público.
Contudo, o presente artigo pretende trazer à reflexão a responsabilização dos demais agentes públicos envolvidos no processo licitatório, conforme outrora mencionado. Nessa toada, será abordada a responsabilidade da unidade demandante, comissão de licitação, pregoeiro e autoridade que homologa e adjudica o certame.
Não se pode deixar de destacar a responsabilidade da unidade requisitante, que tem por atribuição gerenciar, controlar e supervisionar a necessidade da administração. A unidade requisitante integra a primeira etapa interna do procedimento licitatório que se inicia com a formalização da demanda administrativa, onde deverão ser informados os dados básicos para a devida instrução do processo licitatório, indicando-se a necessidade da contratação e explicitando tanto a motivação quanto os resultados a serem alcançados4.
Aliás, com o auxílio do setor técnico especializado, o setor demandante delimita o objeto a ser contratado, procedendo também à realização dos estudos preliminares e à elaboração do termo de referência ou projeto básico.
Ora, é por meio dos estudos preliminares que se respalda, com base nos dados estatísticos e informações objetivas, a necessidade da contratação, com a devida delimitação das especificações e condições necessárias, sendo capaz de caracterizar o interesse público envolvido e a melhor solução ao problema a ser resolvido. Os estudos preliminares, na hipótese de conclusão pela viabilidade da contratação, também fundamentam o termo de referência5, que é o documento por meio do qual a administração pública explicita o objeto, o descrevendo de forma sistemática, detalhada e cabal6.
Ademais, a pesquisa de preços é também um importante componente da etapa inicial da licitação, por meio da qual devem ser levantados valores praticados no mercado em relação ao objeto licitado7, a fim de se obter um preço justo para a administração. O setor requisitante possui o dever de realizar uma análise crítica dos preços levantados, atentando-se a altas variações entre os valores apresentados, de modo que os critérios adotados para a desconsideração dos preços inexequíveis ou excessivamente elevados, sejam justificados de forma clara e objetiva no processo administrativo.
Assim, caso sejam identificadas irregularidades neste momento do procedimento, os agentes envolvidos devem ser responsabilizados. A exemplo disto, no acórdão 4.848/10 do TCU, ao tratar de possível responsabilização do pregoeiro por irregularidades cometidas na elaboração da pesquisa de preços, a Corte dispôs expressamente ser de responsabilidade dos setores ou pessoas envolvidas na aquisição do objeto a elaboração deste documento, o que nos faz concluir que este setor responde por eventuais irregularidades ocorridas nas atividades de sua incumbência, não sendo esta uma responsabilidade do pregoeiro.
Em relação à comissão permanente de licitação, é possível encontrar o seu tratamento no art. 6º, inciso XVI da lei 8.666/1993 (art. 6º, L da lei 14.133/21). Neste dispositivo, observa-se que a função da comissão é a de receber, examinar e julgar todos os documentos e procedimentos relativos ao cadastramento de licitantes.
Já no que tange à responsabilização dos membros da comissão, a disciplina encontra respaldo no § 3º do art. 51 da lei 8.666/93 (§ 2º do art. 8º da lei 14.133/21), que prevê a responsabilização solidária de tais agentes por todos os atos praticados, salvo se restar demonstrado que não agiram, ao menos, com culpa, ou se posição individual divergente, devidamente fundamentada, estiver registrada em ata da reunião em que a decisão tomada foi contraditada ou membro da comissão.
Em contrapartida, o pregoeiro e a equipe de apoio não respondem nos mesmos moldes da Comissão Permanente de Licitação, em caso de prática de ato irregular. Pelo fato de a competência de decidir ter sido atribuída ao pregoeiro individualmente8, não há, em regra, responsabilização solidária, ou seja, o pregoeiro decide sozinho, apesar de exercer o papel de coordenação dos trabalhos da equipe, sendo, portanto, responsável pelos seus próprios atos.
Destaque-se que a equipe de apoio é incumbida apenas da realização de atos materialmente necessários ao curso do processo de licitação, conduzido pelo próprio pregoeiro, de modo que estes agentes não possuem ingerência sobre as decisões por ele tomadas. Por esse motivo, os membros da equipe apenas devem ser responsabilizados em casos excepcionais, quando se omitem diante do conhecimento de atos manifestamente ilegais, a teor do que dispõe a regra geral contida no art. 116 da lei nº 8.112/90.
Ressalte-se ainda que nos casos em que há constatação de que a irregularidade cometida pelo pregoeiro tem nexo de causalidade com eventual dano causado aos cofres públicos, de acordo com a jurisprudência do TCU, deve-se responsabilizar o pregoeiro, condenando-o em débito solidariamente com os demais responsáveis, podendo, inclusive, ser apenado com a multa prevista no art. 57 da lei nº 8.443/92. Entretanto, caso a irregularidade cometida não tenha contribuído para o débito, mas constitua infração à norma legal ou regulamentar, ou, ainda, aos princípios que regem a administração pública, pode ser aplicada ao pregoeiro a multa prevista no art. 58 da Lei Orgânica do TCU9.
Importante mencionar também a responsabilidade dos agentes cuja atribuição se reserva à elaboração do edital de licitação. Em muitos casos a irregularidade parte de um momento inicial, no que tange a formulação do edital de licitação, podendo ser proveniente de especificação técnica equivocada presente no projeto básico ou no termo de referência, notadamente aquelas que restrinjam o caráter competitivo do procedimento (art. 3º, § 1º da Lei de Licitações correspondente ao art. 9º, I da lei 14.133/21) ou que simplesmente inviabilizam o cumprimento por qualquer empresa.
Normalmente não é apenas um agente público responsável pela elaboração do edital, de modo que se constatada a irregularidade, é fundamental identificar os responsáveis por cada uma das ocorrências apontadas, com vistas à correta responsabilização dos agentes envolvidos.
Não obstante, há também os agentes responsáveis pela homologação10 do certame licitatório e adjudicação do objeto licitado. Segundo Rafael Oliveira, “a homologação é o ato administrativo que atesta a validade do procedimento e confirma o interesse na contratação. É uma espécie de “despacho saneador” da licitação.” Já a adjudicação, nas suas palavras “é o ato final do procedimento de licitação por meio do qual a administração atribui ao licitante vencedor o objeto da licitação”.11
Neste caso, é de responsabilidade da autoridade competente pela homologação verificar a legalidade dos atos praticados na licitação, bem como avaliar a conveniência da contratação do objeto licitado pela administração, uma vez que a homologação equivale à aprovação do certame e no caso de ser constatado algum vício de ilegalidade, o processo deverá ser anulado ou saneado quando possível.12 Portanto, se for constatada a hipótese de erro grave por parte da autoridade competente pela homologação, a mesma deverá ser responsabilizada, eximindo-se apenas quanto aos vícios ocultos quando sejam de difícil percepção na análise procedida no momento da homologação13 ou dolo dos demais servidores envolvidos.
Cumpre mencionar também a responsabilidade do fiscal do contrato que é especialmente designado pela administração e possui um verdadeiro poder-dever. A sua atuação é de extrema importância para garantir que o processo licitatório seja eivado de qualidade e boa técnica. A jurisprudência do TCU entende que quando esses agentes atuam de forma dolosa, devem ser responsabilizados pelo prejuízo causado ao erário, solidariamente com a empresa contratada, bem como quando, sem intenção de causar danos ao erário, atua de forma negligente na fiscalização, também deve ser responsabilizado pelo prejuízo para o qual concorreu com sua conduta indevida.14
Resta evidente, portanto, conforme assentado pela jurisprudência do TCU e do STF, que somente deverá haver responsabilização dos advogados públicos, quando do exercício de suas prerrogativas, caso presentes dolo, culpa grave ou o erro evidente e inescusável. Sendo certo que, como vimos acima, há uma sequência de decisões e atos administrativos diversos que devem ser tomados durante todo o trâmite licitatório, de modo que se demonstra irrazoável uma análise superficial que responsabilize apenas o procurador ou ordenador de despesas.
Por esse ângulo, é preciso que uma análise cautelosa seja realizada, caso a caso, para que seja aplicada uma sanção proporcional e adequada ao verdadeiro causador do dano. A exemplo disto, é importante frisar que a assessoria jurídica não dispõe do poder de decisão na formação do ato administrativo da mesma forma que o administrador, mas tão somente, responde às demandas encaminhadas por este, emitindo pareceres de caráter eminentemente técnico-jurídico.
Inclusive, o parecerista tem o dever de conhecer a legislação aplicável aos casos da área em que atua, mas não é obrigado a entender das questões fáticas. Por isso, o advogado público depende dos demais servidores públicos para encaminhar a matéria de fato à sua apreciação, confiando que estes atuem com lisura e respeito às suas funções.
Portanto, é preciso levar em conta a falta de conhecimento técnico do advogado para adentrar em determinados assuntos, afinal “o advogado não sabe e não tem como saber – a não ser que lhe digam, valendo aí, ipsis litteris, a informação repassada – questões de fato”15. Além disso, é necessário considerar a assimetria informacional existente entre o administrador e o parecerista, devendo-se considerar que a imputação de responsabilidade deve ser proporcional ao poder de ingerência e decisão de cada agente público envolvido no procedimento.
É por esta razão que para haver a correta imputação da responsabilização é preciso ter uma visão global de todo o decorrer do procedimento que antecedeu o ato viciado, realizando aquilo que a doutrina denomina de “matriz de responsabilização”. Permitindo-se, assim, ultrapassar o velho conceito de culpabilidade limitado ao Ordenador de despesas e ao procurador.
Com isso, a matriz de responsabilização se apresenta como uma ferramenta eficaz, pois, por meio dela é possível determinar de maneira assertiva os responsáveis por irregularidades, especificando as condutas de todos os agentes envolvidos, principalmente porque o nexo de causalidade é revelado. Possibilitando, assim, a correta aferição da culpabilidade dos agentes, para que a sanção final adotada seja compatível e proporcional com o seu grau de ingerência sobre determinada decisão, recorrendo-se, para tanto, aos arts. 22, caput e § 1º, 24 e 28 da LINDB e à lei 13.655/201816.
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1 TCU, Acórdão n º 512/2003 – Plenário, Min. rel. Walton Alencar Rodrigues, julg. 14 de março de 2003.
2 STF, MS 24.631/DF, Tribunal Pleno, Min. rel. Joaquim Barbosa, julg. 09 de agosto de 2007.
3 Mandado de Segurança nº 35.196/2019. “Em primeiro lugar, o parecerista estaria menos propenso a trazer teses inovadoras, ainda que razoáveis, das quais poderia advir soluções mais adequadas ao interesse público em concreto. Em vez de viabilizar políticas públicas, o advogado público se tornaria um mero burocrata, atando-se a procedimentos mais longos, difíceis e custosos. Esse engessamento não acarreta retorno em moralidade pública, mas em ineficiência”
4 AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e contratos administrativos: teoria e jurisprudência; 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2020. Pág. 51.
5 Art. 3º, IV, Decreto nº 10.024/2019.
6 SANTANA, Jair Eduardo; CAMARÃO, Tatiana; CHRISPIM, Anna Carla Duarte. Termo de referência: o impacto da especificação do objeto e do termo de referência na eficácia das licitações e contratos. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, pág. 27
7 Arts. 7º, § 2º, II e 40, § 2º, II da Lei nº 8.666/1993 (Art. 18, IV da Lei 14.133/21) e art. 3º, III da Lei nº 10.520/2002.
8 Art. 3º, IV, da Lei nº 10.520/2002 e art. 9º do Anexo I do Decreto nº 3.555/2000.
9 Responsabilização de Agentes Segundo a Jurisprudência do TCU – Uma abordagem a partir de Licitações e Contratos. Responsabilidade de agentes em licitações. Instituto Serzedello Corrêa, Tribunal de Contas da União e Secretaria Geral da Presidência, 2013, pág. 18.
11 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9. ed., Rio de Janeiro: Forense, MÉTODO, 2021. págs. 772/773.
12 Responsabilização de Agentes Segundo a Jurisprudência do TCU – Uma abordagem a partir de Licitações e Contratos. Responsabilidade de agentes em licitações. Instituto Serzedello Corrêa, Tribunal de Contas da União e Secretaria Geral da Presidência, 2013, pág. 37.
13 TCU, 2300/2013 – Plenário, Min. Rel. Ana Arraes, julg. 28/08/2013.
14 Responsabilização de Agentes Segundo a Jurisprudência do TCU – Uma abordagem a partir de Licitações e Contratos. Responsabilidade de agentes em contratações. Instituto Serzedello Corrêa, Tribunal de Contas da União e Secretaria Geral da Presidência, 2013. Pág. 10.
15 MENDONÇA, José Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. Revista da AGU, vol. 9, n. 24, 2010. p. 17-19.
16 AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e contratos administrativos: teoria e jurisprudência; 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2020. pág. 74.