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Equipe brasileira chega às semifinais da maior competição em Direito do mundo

A participação do Brasil na edição de 2022 da Philip C. Jessup International Law Moot Court Competition levou o país a um novo patamar de destaque em competições internacionais de julgamento simulado.

26/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Entre 25/3 e 10/4 do presente ano, ocorreram as rodadas internacionais da Philip C. Jessup International Law Moot Court Competition, a maior e mais importante competição de julgamento simulado do mundo. As competições de julgamento simulado surgiram em 1960 com a primeira edição do próprio Jessup Moot, que consistia, à época, em uma competição interna da Universidade de Harvard. A iniciativa, então denominada International Law Moot, objetivava propiciar aos alunos a experiência de simular uma atuação no âmbito de uma corte internacional – no caso, a CIJ - Corte Internacional de Justiça. A competição, que hoje homenageia um dos mais célebres juízes da CIJ em seu nome, foi concebida pelo professor Richard Baxter em parceria com o professor Stephen Schwebel, que se tornaria Juiz da CIJ em 1981 (até 2000, com duas reeleições) e seu presidente de 1997 a 2000.  A competição foi aberta para equipes de universidades de fora dos Estados Unidos em 1968 e é realizada anualmente desde então, com sua última edição contando com a participação de mais de 700 equipes oriundas de cerca de 100 países.1

As atividades do Jessup são conduzidas no âmbito da ILSA - International Law Students Association, criada em 1962 para promover e estimular o estudo do direito internacional. A preparação das equipes das universidades participantes se inicia com a publicação pela ILSA do caso hipotético que pautará os debates entre as equipes, o que costuma ocorrer em setembro do ano anterior à competição. Trata-se de um documento que descreve, em detalhe, os motivos que levaram à instauração de uma disputa hipotética entre dois países perante a CIJ – tanto os Estados como o arcabouço fático são concebidos exclusivamente para a competição.

A cada ano, são selecionados temas dos mais variados campos do direito internacional para pautar a disputa. Este ano, o caso motivava os estudantes a discutirem temas como a interferência de Estados em eleições estrangeiras, os direitos humanos na internet, as implicações internacionais do roubo de dados, a secessão de Estados e a admissibilidade de evidências perante tribunais internacionais. Apesar do caráter hipotético do cenário desenvolvido, o caso do Jessup Moot costuma ser influenciado pelos temas de maior relevância na atualidade (como em 2021, em que tratou das obrigações dos Estados em um contexto de pandemia) e também os influencia ao estimular alunos de direito pelo mundo inteiro a se debruçarem e se interessarem pelos mesmos assuntos.

A partir do caso hipotético, as equipes formadas internamente pelas universidades participantes (compostas por até cinco estudantes e eventuais treinadores ou consultores) passam a pesquisar e preparar argumentos para ambas as partes envolvidas na disputa – o Estado peticionário (applicant) e o demandado (respondent) – que serão a base dos seus memoriais, as peças escritas submetidas pela equipe. Durante a elaboração dos memoriais, os estudantes exercitam competências essenciais para futuros operadores do direito, como a análise de fatos e identificação de conflitos, a solução de problemas, os métodos e fundamentos de pesquisas jurídicas, a escrita, o trabalho em equipe e habilidades de liderança.2

Após a entrega dos memoriais (o que costuma ocorrer no início de janeiro), as equipes passam a se preparar para as rodadas orais da competição. A prática necessária para tornar uma equipe verdadeiramente competitiva envolve o reforço do conhecimento já desenvolvido quando da escrita do memorial e envolve o aprendizado de técnicas de retórica e oratória. Assim, os estudantes desenvolvem habilidades de fala, exercitam a sua confiança e sua manutenção sob pressão, exercem grande profissionalismo e desenvolvem habilidades com o idioma inglês.3 Assim como ocorre na redação dos memoriais, a equipe deve desenvolver a arguição oral dos dois lados da disputa, mas, em cada enfrentamento com outras universidades, é definido um lado único pelo qual argumentarão.

Nos países com mais de uma universidade competindo, são realizadas rodadas nacionais qualificatórias para selecionar a(s) melhor(es) equipe(s) da jurisdição, que representarão seu país nas rodadas internacionais. Durante as rodadas orais, sejam elas nas rodadas nacionais ou nas internacionais, cada universidade possui 45 minutos para apresentar seus argumentos, com dois oradores se apresentando por equipe em cada rodada, dividindo seu tempo entre dois discursos principais e uma réplica (no caso do applicant) ou tréplica (no caso do respondent). Os argumentos são apresentados perante painéis compostos por pelo menos 3 juízes, simulando a CIJ. Cumpre destacar que as equipes são anonimizadas durante toda a competição, de forma que os juízes desconhecem sua universidade e nacionalidade.

As rodadas nacionais seguem, via de regra, uma estrutura semelhante às internacionais, que são compostas por uma fase preliminar e uma fase avançada. Na fase preliminar das rodadas internacionais, todas as equipes passam por quatro rodadas qualificatórias, obtendo uma nota composta pela atuação de seus dois oradores e pela avaliação do seu memorial. As 96 melhores equipes procedem para as rodadas avançadas, que começa com um enfrentamento entre universidades a partir do qual cada equipe recebe uma nova pontuação, que levará à seleção das 32 melhores. Das chamadas “Rodadas de 32”, metade das equipes avança para as “Rodadas de 16” (oitavas de final), e assim procedem até a rodada final, da qual emerge o campeão mundial da edição. Na banca julgadora da rodada final, costumam figurar magistrados da CIJ e de outros tribunais, bem como outras figuras ilustres do campo do direito internacional. Após a final da competição, são também distribuídos prêmios aos melhores oradores e às equipes que produziram os melhores memoriais.

Nas rodadas brasileiras deste ano, que ocorreram em fevereiro, foram selecionadas duas equipes para representar o Brasil: a USP - Universidade de São Paulo, a vencedora das rodadas nacionais, e a UFBA - Universidade Federal da Bahia, que ficou em segundo lugar. Nota-se que as rodadas nacionais brasileiras e as rodadas internacionais (que costumam ocorrem em Washington, nos EUA) ocorreram na modalidade on-line devido à pandemia do COVID-19. As duas equipes brasileiras demonstraram sua competente preparação e obtiveram sucesso nas rodadas preliminares, com ambas se qualificando para as rodadas avançadas. A campanha brasileira seguiu com a Universidade de São Paulo se qualificando para as rodadas de 32, nas quais enfrentaram e eliminaram a equipe da American University (EUA). Após vencer as oitavas de final contra a Universidade de Viena (Áustria) e as quartas de final contra a Hertie School (Alemanha), a equipe Universidade de São Paulo atingiu as semifinais, o recorde da participação brasileira no Jessup Moot. Na semifinal, a equipe brasileira arguiu contra a Universidade de Harvard, com a universidade dos EUA prosseguindo para a final contra a Singapore Management University (Singapura) e conquistando o título de campeã mundial.

A chegada do Brasil nas semifinais da edição de 2022 do Jessup Moot deve ser reconhecida como uma grande vitória para o país, em especial se contextualizada nas características e no histórico da competição. A campanha das equipes brasileiras é sempre dificultada por barreiras linguísticas e financeiras, bem como os obstáculos inerentes em se enfrentar equipes de países com tradição mais longeva de participação em competições de julgamento simulado. Nesse sentido, é importante destacar que, das 54 edições do Jessup Moot desde 1968 (ano em que equipes de fora dos EUA passaram a ser convidadas), apenas Austrália, Singapura, EUA e Canadá acumulam juntos 41 vitórias. Das edições restantes, apenas 11 foram vencidas por equipes de países nos quais o inglês não é a língua nacional principal, sendo que somente sete delas não vinham de Estados em que o inglês é língua oficial. Quando falamos de América Latina, o número é ainda mais reduzido, com apenas três equipes já tendo vencido a competição: a Universidad Catolica Andres Bello (Venezuela), a Universidad de Los Andes (Colômbia) e a Universidad de Buenos Aires (Argentina).

Feitas todas estas considerações, é evidente que as equipes de 2022 da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal da Bahia, bem como outras equipes brasileiras que competiram em rodadas de altíssimo nível na competição internacional, são merecedoras de sinceros elogios e profundo orgulho da comunidade jurídica nacional.

O formato desenvolvido pelo Jessup Moot influencia o funcionamento de várias outras competições de julgamento simulado, que hoje se tornaram uma metodologia de ensino em direito internacional muito reconhecida e valorizada. Atualmente, existem Moots sobre as mais diversas temáticas, com as com maior número de equipes participando (após o Jessup Moot) sendo: o Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot, o Nelson Mandela World Human Rights Moot, o Price Media Law Moot, o Red Cross International Humanitarian Law Moot, o European Human Rights Moot, International Criminal Court Moot e o WTO John Jackson Moot – todos estes já tendo contado com a participação de ao menos 100 equipes na mesma edição. O Brasil vem, cada vez mais, obtendo resultados de excelência nestas competições, o que notadamente contribui para a percepção do país como um polo de excelência no desenvolvimento de conhecimento e promoção do ensino jurídico.

___________

1 Mais informações sobre o Jessup Moot encontram-se disponíveis no site: https://www.ilsa.org. 

2 Cf. BIANCHINI, C. B.; HAERTEL, L. M. As Competições de Julgamento Simulado como Instrumento de Ensino Jurídico. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, n. 113, 2018, pp. 737–759.

3 Ibid.

Leticia Haertel
Advogada e mestranda em História pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Especialista em Direito Internacional, é mestra em Direito pela Ludwig Maximilian Universität (Munique) e graduada em Direito pela Universidade de São Paulo.

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