Muito ao contrário do que pensam alguns tributaristas há uma estreita relação entre o direito tributário e o direito civil. Não é possível estudar o direito tributário sem conhecer as principais categorias jurídicas de direito civil, porque o legislador utiliza-se dos institutos de direito privado para definir ou inibir competências tributárias, hipótese em que os conceitos de direito privado passam a ser vinculantes dentro do direito tributário. É o que dispôs o art. 110 do CTN:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
Quando a lei tributária dispõe que imposto predial recai sobre a propriedade imóvel, a posse o domínio útil, ou sobre a transmissão de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, o tributarista deve buscar no direito privado o conceito de propriedade imóvel, de posse, de domínio útil, bem como, discernir quais são os direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) compreendendo o conceito de cada umas dessas categorias de direito privado. Quando a lei inclui o fideicomisso na definição de fato gerador do ITCMD é preciso buscar o seu conceito no direito civil. Impõe-se, outrossim, no estudo do ITCMD examinar o conceito de transmissão de bem imóvel que se opera com o registro do título de transferência no registro de imóveis competente (art. 1.245 do CC), ao contrário da transmissão de bem móvel que se opera com a tradição. O desconhecimento desse fato pelo legislador municipal leva a dispor sobre tributação do compromisso de compra e venda sem a formalidade do registro público.
Mas, o tema do artigo versa sobre a substituição fideicomissária como fato gerador do ITCMD.
Dispõe o art. 2º da lei 10.705/00 que instituiu o ITCMD no Estado de São Paulo:
“Artigo 2º - O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
I - por sucessão legitima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória;
II- por doação.
§ 1º - Nas transmissões referidas neste artigo, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários.
§ 2º - Compreende-se no inciso I deste artigo a transmissão de bem ou direito por qualquer titulo sucessório, inclusive o fideicomisso.”
O § 2º refere-se à transmissão por fideicomisso. O que é fideicomisso?
O fideicomisso outra coisa não é senão uma forma de substituição testamentária mediante a qual o testador (fideicomitente) dispõe que um determinado bem de sua herança, por ocasião de sua morte, se transmita a um dos herdeiros ou legatários (fiduciário), mas por morte deste, ou a certo tempo ou sob certa condição, se transmita a outro herdeiro ou legatário (fideicomissário) que o receberá livre de ônus ou gravame. A substituição é sinônima de sucessão.
Outro conceito que melhor explicita a substituição fideicomissária diz respeito àquela em que o testador impõe a herdeiro ou legatário, chamado fiduciário, a obrigação por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição, transmitir a outro, que se qualifica como fideicomissário, herança ou legado. O testador deixa seus bens ao fiduciário que deles se torna senhor por ocasião da abertura da sucessão. O fiduciário não precisa ser necessariamente herdeiro ou legatário do testador. Pode ser alguém de sua confiança.
Silvio de Salvo Venosa, escrevendo à luz do Código Civil de 1.916, afirma que “no fideicomisso há transmissão concomitante e sucessiva a duas pessoas. Transmite-se a propriedade da coisa a um primeiro beneficiário (o fiduciário), propriedade resolúvel, com a obrigação de que esse fiduciário a transfira para um segundo aquinhoado (o fideicomissário). Nessa modalidade, o testador institui dois sucessores, sucessivamente; há uma dupla transmissão. Fiduciário e fideicomissário são ambos sucessores do de cujus. [...] “Tanto o fiduciário, quanto o fideicomissário recebem os bens diretamente do fideicomitente (o testador)”[1]. No mesmo sentido é a lição de Washington de Barros Monteiro, igualmente, escrevendo à luz do Código Civil antecedente, para quem “a transmissão é uma só, embora desdobrada em duas fases: do fideicomitente para o fiduciário e do fideicomitente para o fideicomissário”[2].
A respeito dispõe o Código Civil de 2002:
“Art. 1.951. Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário.”
“Art. 1.952. A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador.
Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário.”
Como se verifica do art. 1.951 do CC há envolvimento de três diferentes pessoas, ou uma relação tripartite: a) a do testador, denominado fideicomitente; b) a da pessoa escolhida para conservar em benefício de outrem a herança ou legado, denominada fiduciário; e c) o beneficiário final que é o fideicomissário (ver art. 1.952 do CC).
O art. 1.952 do Código Civil vigente estabeleceu uma restrição ao fideicomisso dispondo que a substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. Dispõe seu parágrafo único que se ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, este adquirirá a nua propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário.
Essa restrição trazida pelo Código Civil de 2002 é criticada pela doutrina em geral, porque querer beneficiar prole eventual significa que não quer beneficiar alguém com quem convive no momento, o fiduciário, que vem de fidúcia, pessoa de confiança.
Essa matéria pode parecer complicada para um tributarista não afeito às questões de família. Um exemplo hipotético ajudará na compreensão do que seja substituição fideicomissária:
Um avô, fideicomitente, poderá contemplar seu futuro neto ainda não concebido por sua filha única, por ocasião da abertura da sucessão (fideicomissário), nomeando um hrdeiro ou um amigo seu para conservar determinados legados ou herança (fiduciário) para oportuna transmissão ao fideicomissário.
Contudo, se, ao tempo da abertura da sucessão houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a nua propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário pelo tempo previsto no testamento.
É importante atentar que o imposto é sobre transmissão de bens ou direitos de sorte que a instituição do fideicomisso, por si só, não gera a obrigação tributária, mas apenas a transmissão decorrente do fideicomisso, pelo que, de rigor, a situação descrita nesse § 2º já está contida no caput.
Entretanto, há dúvida acerca da dupla incidência do ITCMD: do feideicomitente (testador) para o fiduciário (herdeiro, legatário ou terceira pessoa de confiança do testador); e do fiduciário para o fideicomissário (destinatário final do benefício instituído pelo testador.
Como vimos, Silvio de Salvo Venosa sustenta a existência de dupla transmissão concomitante e sucessiva a duas pessoas: fiduciário e fideicomissário ambos são sucessores do de cujus. No mesmo sentido ensina Whashington de Barros Monteiro, como vimos.
Da leitura do art. 1.951 do CC transparece de forma nítida a transmissão do bem do testador para o fiduciário por ocasião de sua morte, como se verifica da expressão “a herança ou o legado se transmita ao fiduciário”. No caso, o bem sai do patrimônio do de cujus para integrar o patrimônio do “herdeiro fiduciário” por expressa disposição testamentária, ainda que sob condição resolutiva.
Indiscutível que a transmissão do bem se dá por causa mortis, ensejando a incidência do ITCMD.
Na segunda hipótese, a transmissão do fiduciário para o fideicomissário não se vislumbra com nitidez o fato gerador do ITCMD, aliás, no nosso entender não há ocorrência do fato gerador, como veremos. Na lição dos dois mestres citados, no caso, não há transmissão em sentido jurídico, mas apenas do ponto de vista econômico.
De conformidade com o art. 1.951 do CC essa segunda transmissão ocorre em três situações distintas:
a) em razão da morte do fiduciário;
b) em certo tempo, ou
c) sob certa condição.
Analisemos a hipótese a
Diz o art. 1.951 do CC que o direito do fiduciário resolve-se com a sua morte, ou seja, fica extinto o seu direito. Portanto, estamos diante de uma condição resolutiva.
Os artigos 127 e 128 do CC regulam a condição resolutiva nos seguintes termos:
“Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.”
“Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé.”
Dos textos legais transcritos verifica-se que os negócios sob condição resolutiva, enquanto esta não sobrevier têm o seu curso normal. Sobrevindo a condição resolutiva, desfaz-se o negócio jurídico, ressalvados os atos já praticados em se tratando de negócio de execução continuada.
Todavia, em termos de direito tributário a condição resolutiva é irrelevante para deflagrar o fato gerador da obrigação tributária. Uma vez ocorrido o fato gerador com a prática do ato ou de celebração do negócio, a obrigação tributária surge de forma irreversível. Ulterior desfazimento do negócio, por vício formal ou qualquer outra razão é absolutamente irrelevante, persistindo a obrigação tributária, porque a interpretação do fato gerador é feita com total abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelo contribuinte, bem como da natureza do seu objeto ou dos efeitos, conforme preceitua o art. 118 do CTN:
“Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:
I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;
II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”.
Indubitável que houve transmissão. Só que para a ocorrência do fato gerador do ITCMD é preciso que essa transmissão decorra do evento morte (transmissão causa mortis) , ou que decorra de uma doação, transmissão graciosa.
No caso sob exame, substituição fideicomissária, não houve transmissão causa mortis que outra coisa não é senão a transmissão do patrimônio do de cujus para seus herdeiros ou legatários. Isso não acontece na substituição fideicomissária, porque o testador (fideicomitente) pode designar como fiduciário pessoa sem qualquer vínculo de parentesco, bem como nomear como fideicomitente pessoa que não tenha qualquer vínculo com o fiduciário. No caso, com a morte do fiduciário, o fideicomissário, apesar de não ser herdeiro legítimo ou testamentário dos bens do fiduciário receberá o bem fideicometido que lhe foi destinado pelo fideicomitente (testador). Logo, a transmissão no caso não ocorre causa mortis, mas, por expressa disposição testamentária em que foi instituído o fideicomisso. Se por ventura, o fideicomissário for herdeiro de fiduciário nada altera essa situação, pois, o fideicomissário não recebe o bem fideicometido a título de herança, mas por expressa disposição do fideicomisso instituído pelo testador, de sorte que ele receberia esse bem independentemente de ser herdeiro ou não do fiduciário. Não há, pois no caso a incidência do ITCMD.
Também, não se sustenta, à luz da ordem jurídica vigente, a tese defendida por Silvio de Salvio Venosa e Washington de Barros Monteiro no sentido de que o fideicomissário recebe o bem do testador em virtude de seu falecimento. Sem dúvida a leitura dos artigos 1.955 e 1.957 do CC ao se referirem ao fideicomissário falam em “herança ou a legado”:
“Art. 1.955. O fideicomissário pode renunciar a herança ou o legado, e, neste caso, o fideicomisso caduca, deixando de ser resolúvel a propriedade do fiduciário, se não houver disposição contrária do testador.”
“Art. 1.957. Ao sobrevir a sucessão, o fideicomissário responde pelos encargos da herança que ainda restarem.”
O fato de o fideicomissário receber o bem fideicometido que o Código denomina de herança não permite concluir que essa herança advém da transmissão causa mortis, se interpretados os dispositivos legais de forma global e interligada.
Não há como o fideicomissário receber bens do testador (fideicomitente).
Primeiramente, porque quando o testador faleceu ele já transferiu o bem fideicometido ao fiduciário, herdeiro ou não, sob condição resolutiva de eventual transmissão ulterior ao fideicomissário. Resta claro, portanto, que a transmissão que se opera é a do fiduciário para o fideicomissário, nunca do fideicomitente, pois o bem fideicometido não estava mais no patrimônio do Espolio do testador.
Em segundo lugar, ainda que essa segunda transmissão do fiduciário para o fideicomessário decorra da disposição de vontade do testador não se vislumbra no caso a relação herança/herdeiro. Para que alguém herde é preciso que esse alguém exista ou ao menos tenha sido concebido por ocasião da abertura da sucessão, nos termos do art. 1.798 do CC:
“Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.
Ora, nos termos do art. 1.952 do CC a substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. Se o fideicomissário tiver nascido ou tiver sido concebido ao tempo da morte do testador não haverá fideicomisso, mas simples relação de usufruto para o fiduciário e de nu-proprietário para o fideicomissário.
Daí a impossibilidade jurídica de o fideicomissário ser herdeiro direto do fideicomitente, autor da herança. Não há como o testador, por ocasião de sua morte transferir herança a quem não existe, nem tenha sido concebido. Disso resulta que o fideicomissário recebe o bem fideicometido por transmissão do fiduciário e não do autor da herança. Mas, já vimos que essa transferência não decorre de causa mortis, a ensejar a incidência do imposto.
Resta analisar as hipótese b e c
Nessas hipóteses a transmissão ocorre por decurso de certo tempo (hipótese b) ou por certa condição (hipótese c). Em ambos os casos pressupõe transmissão inter vivos.
No primeiro caso o testador pode ter disposto que ao cabo de cinco anos de posse do bem fideicometido, o fiduciário deva transmitir o referido bem ao fideicomissário. Com implemento da condição far-se-á a transferência se, evidentemente, se o fideicomisário já tiver nascido. Pergunta-se, essa transferência qualifica-se como doação a atrair a incidência do ITCMD?
A doação é um contrato definido no art. 538 do CC:
“Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”
O elemento essencial da doação é a liberalidade que não se confunde com simples gratuidade. Liberalidade significa vontade livre e consciente do doador de transferir seus bens ou direitos a outrem de forma não onerosa. Sem esse elemento volitivo não há doação.
Ora, na transmissão que o fiduciário faz ao fideicomissário não está presente a vontade livre e consciente de transferir o bem fideicometido de forma graciosa. Há isto sim, o cumprimento de uma condição prevista na disposição de última vontade do testador.
Por conseguinte, não há, nessa hipótese, a incidência do ITCMD.
Na hipótese c, se o testador dispôs que o bem fediecometido deva ser transferido pelo fiduciário quando o fideicomissário completar, por exemplo, 10 anos de idade, igualmente, essa transferência não se subsume à figura da doação, mas, à hipótese de mero cumprimento de disposição testamentária, pelo que, também, não há ocorrência do fato gerador do ITCMD.
A tese da transmissão única como sustentada pelo Venosa e Barros Monteiro, conquanto que engenhosa, data vênia, não se sustenta se examinada a questão sob a interpretação de diversos textos legais interligados.
De fato, para que o fiduciário transmita o bem ao fideicomissário é preciso que aquele bem tenha antes integrado no seu patrimônio (primeira transferência). Dizer que o fideicomissário recebe diretamente o bem do fideicomitente (testador) esbarra na impossibilidade jurídica de o Espólio do testador transmitir algo que já saiu de seu patrimônio, transmitido que foi para o fiduciário sob condição resolutiva (ver art. 1.951 do CC). Ainda que o bem fideicometido tenha retornado ao patrimônio do testador pelo implemento da condição resolutiva, este não tem como transmitir esse mesmo bem à pessoa inexistente, nem concebida. De fato, o testador não pode designar como fideicomissário pessoa existente ou já concebida ao tempo de sua morte. De outra banda, somente pessoa nascida ou concebida pode suceder por ocasião da abertura da sucessão (art. 1.798 do CC).
Conclusão, no fideicomisso há duas transmissões: a) a primeira do fideicomitente para o fiduciário que decorre de causa mortis, susceptível de tributação pelo ITCMS[3]; b) segunda transmissão (substituição fideicomissária) do fiduciário para o fideicomissário que pode decorrer de atos inter vivos (a certo tempo ou sob certa condição), ou de morte, mas, que neste último caso a transmissão não se qualifica como sendo causa mortis, porque o bem fideicometido não se qualifica como herança a ser partilhado pelos herdeiros legítimos ou testamentários do fiduciário, por estar predestinado ao fideicomissário por expressa disposição testamentária. Outrossim, as transmissões a certo tempo e sob certa condição não configuram doação, pelo que não ocorre o fato gerador do ITCMD.
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1 Direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2001, p. 211-214.
3 Ulterior resolução é irrelevante para o direito tributário, ainda que pela direito civil o bem transmitido retorne para a propriedade do testador ou seu Espólio.