Migalhas de Peso

Da impossibilidade constitucional do semipresidencialismo: um diálogo com Marcelo Neves.

De todo modo, caberia concordar com a crítica final de Marcelo Neves à própria discussão atual sobre o semipresidencialismo.

20/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 13 de abril último, Marcelo Neves publicou um excelente artigo crítico a propósito da criação pelo presidente da Câmara dos Deputados de um grupo de trabalho1 para analisar e debater a introdução do semipresidencialismo no Brasil2. Segundo ele, semipresidencialismo nada mais seria do que um “eufemismo” para se discutir “a introdução de elementos do parlamentarismo na ordem constitucional brasileira”.

Embora Marcelo Neves e eu possamos estar em princípio de acordo quanto a considerar que o plebiscito ocorrido em 21/04/93 tenha encerrado a questão acerca da escolha do sistema de governo, nos termos do art. 2º do ADTC da Constituição da República (na redação que lhe foi dada pela EC 2/92), ele aventa em seu artigo a hipótese segundo a qual seria possível “ser mais flexíveis para admitir que aquela decisão popular direta possa ser superada por emenda à Constituição, mas desde que se exija consulta popular.”

No caso, tal proposta de consulta popular poderia ser outro plebiscito, uma consulta popular prévia, autorizativa de mudanças no sistema de governo?3 Se for isso, digamos que eu discorde concordando com Marcelo Neves. E explico as razões.

Mas para explicá-las, caberia primeiro perguntar o que seriam “elementos parlamentaristas”. A Constituição, por exemplo, admite que ministros de Estado sejam convocados perante as comissões do Congresso “para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada” (art. 50 da CR). Isso já seria um elemento parlamentarista no presidencialismo brasileiro? Um elemento parlamentarista já não seria atribuir poder de iniciativa de leis ao presidente, para além de matéria orçamentária (art. 61, § 1º)? Assim como seria a edição de medida provisória (art. 62 e parágrafos da CR)? Isso já está previsto na Constituição. O presidente dos EUA, por exemplo, não tem essas competências.

As constituições do chamado novo Constitucionalismo latino-americano, da Constituição venezuelana de 1999 até a Constituição boliviana de 2009, preveem a hipótese de “recall”. Isso é um elemento parlamentarista? E por quê? A Constituição equatoriana, por exemplo, prevê a hipótese de morte cruzada (art. 129 e 130) nos três primeiros anos de mandato4. Isso seria um “elemento parlamentarista”?

“Elementos parlamentaristas” é algo muito vago. Até porque o que caracteriza o sistema presidencialista é, sobretudo, mas não apenas!, o modo de participação do Chefe de Estado (e de Governo) – o Presidente da República - no processo legislativo5. Ou seja, a competência atribuída ao Presidente da República de sancionar e de “vetar” (rectus, de negar sanção) projetos de lei aprovados (e não de vetar leis, como no parlamentarismo) pelo Congresso (art. 84, IV e V, da CR), participando propriamente da fase constitutiva de elaboração das leis.

Por exemplo, a PEC 37/19, proposta pelo deputado Humberto Fontana (PT-RS) e outros, para alterar a Constituição, no sentido de que em caso de impedimento ou vacância do cargo de Presidente sejam convocadas eleições e de que o Vice-Presidente assume apenas provisoriamente e em nenhuma hipótese termina o tempo do mandato6, já não me parece ser introduzir um “elemento parlamentarista”. E radicalizar a proposta para que, no caso de impeachment, deveriam ser convocadas eleições gerais, inclusive para o Congresso, também não. Ou seria?

De qualquer forma, um plebiscito convocado para autorizar a introdução de “elementos parlamentaristas” no sistema presidencialista brasileiro não deixaria de dar “carta branca” para o Congresso fazer o que bem quiser e introduzir o que bem entender.

Se se admitir a possibilidade de nova consulta popular para tratar de alterações do presidencialismo, mesmo esgotada a previsão de plebiscito do art. 2º do ADCT, o correto não seria, então, um referendo? Porque aí sim seria aberta a possibilidade de se analisar uma propositura concreta, a não ser aprovada se fosse o caso.

O plebiscito de 21/4/93 encerra a escolha do sistema de governo7, mas não cria impedimento para se aperfeiçoar o sistema presidencialista, tornando-o ainda mais democrático. O que não é constitucionalmente possível é uma PEC tendente a abolir a separação de poderes tal como organizada no presidencialismo (art. 60, §4º, III, da CR, interpretado da perspectiva do resultado do plebiscito unicamente previsto pelo art. 2º do ADCT).

Mas, então, qual a diferença entre aperfeiçoar o presidencialismo e introduzir elementos parlamentaristas tendentes a abolir a separação de poderes tal como organizada no presidencialismo? Não será por certo um plebiscito autorizativo que possibilitará decidir isso. Até porque caso houvesse um plebiscito autorizativo, a palavra final, enfim, não poderia não ser nem do eleitorado, nem do Congresso, mas do STF. O STF, numa eventual ADI contra a EC, é que iria decidir sobre essa diferença. Isso seria realmente democrático?

Ora, de todo modo, caberia concordar com a crítica final de Marcelo Neves à própria discussão atual sobre o semipresidencialismo. Pois não estaríamos, exatamente, diante do “caráter casuístico que contorna o debate atual sobre o semipresidencialismo”, exatamente quando “se vislumbra que um candidato que não se adapta ao padrão político conservador de uma sociedade altamente desigual e excludente pode ganhar a próxima eleição presidencial”? E, mais ainda, não estaríamos diante da velha cultura “demofóbica” daqueles que, a pretexto de introduzirem “elementos parlamentaristas” no sistema presidencialista, talvez gostariam de poder governar sem povo, sem o voto direto para eleição da chefia de governo, ainda que a pretexto de se alcançar uma pretensa estabilidade política, jamais alcançada por meio da – espúria - experiência parlamentarista no Brasil8?

_____

1 Cf. https://www.camara.leg.br/noticias/859451-lira-institui-grupo-de-trabalho-para-discutir-semipresidencialismo/

2 NEVES, Marcelo. Semipresidencialismo é desastre constitucional. Introduzir elementos parlamentaristas sem consulta popular é inadmissível. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/04/semipresidencialismo-e-desastre-constitucional.shtml

3 Marcelo Neves afirma em seu artigo que “Uma emenda à Constituição que incorpore elementos parlamentaristas no sistema constitucional, sem consulta popular, viola manifestamente a opção procedimental originária da Constituinte de 1988 e a decisão do povo, constitucionalmente tomada mediante o respectivo procedimento.” Mas isso, justamente, já não foi feito em 1993? Uma vez que a Constituição previu um único plebiscito sobre tema, no art. 2º do ADCT, e esse plebiscito já ocorreu?

4 CF. BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Repensar o Presidencialismo Brasileiro desde o Sul: as instabilidades políticas, Novo Constitucionalismo Latino-Americano e a “morte cruzada”. In: BERCOVICI, Gilberto, SICSÚ, João, AGUIAR, Renan (orgs.). Utopias para reconstruir o Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 313-339

5 CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Beçlo Horizonte: Del Rey, 1992. Ver, também, BACHA E SILVA, Diogo; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; NUNES, Dierle José Coelho. Controle jurisdicional do processo legislativo: História e teoria constitucional brasileira. Belo Horizonte: Conhecimento, 2018, p. 61-82.

6 PEC 37/2019. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0y69fi9r7kire1rekk0azj1b6f9414281.node0?codteor=1724728&filename=PEC+37/19) 

7 No sentido de que o presidencialismo seria uma cláusula pétrea implícita, após o resultado do plebiscito de 1993, ver QUEIROZ, Luiz Viana. Semipresidencialismo é inconstitucional. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/364038/semipresidencialismo-e-inconstitucional

8 Estou me referindo ao parlamentarismo introduzido pela EC. 4/61 e que durou até a sua derrota no referendo de 6/1/63. Para uma ampla análise do contexto, cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. O governo João Goulart: As lutas sociais no Brasil – 1961-1964. 8 ed. São Paulo: UNESP, 2010; e FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Cabe, pois, levar a sério a advertência do Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, no artigo Adoção do semipresidencialismo no Brasil pode repetir história como farsa.
Considerar os comentários a respeito de MENEZES, Mauro de Azevedo e CARVALHO, Marco Aurélio de. A enganosa saída parlamentarista. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-enganosa-saida-parlamentarista/ e https://www.prerro.com.br/a-enganosa-saida-parlamentarista/

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Estágio pós-doutoral com bolsa da CAPES na Università degli Studi di Roma III. Bolsista de Produtividade do CNPq (1D).

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