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Entenda a inconstitucionalidade das majorações da alíquota feita pelos estados da federação

Deveria haver uma Procuradoria Geral da União competente para defender os direitos difusos dos contribuintes, para não suportarem cobranças inconstitucionais, através dos preços dos serviços e mercadorias.

22/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O STF, no julgamento do RE 7141391 – tema 745 – na sistemática da repercussão geral, considerou inconstitucional a instituição de alíquota de ICMS majorada para geração de energia elétrica e serviços de telecomunicações.

Na análise do tema, o Pleno da Corte reconheceu a inconstitucionalidade de norma tributária do Estado de Santa Catarina, que fixava alíquota de 25% (vinte e cinco por cento), a título de ICMS, contra uma alíquota geral de 17% (dezessete por cento) para os setores mencionados acima.

Os ministros entenderam que o Poder Constituinte Originário não permitiu que fossem fixadas alíquotas superiores para operações de energia elétrica e serviços de telecomunicações em patamar superior aos das operações em geral, em virtude da essencialidade dos bens e serviços.

Como o mérito do recurso foi apreciado sob a sistemática da repercussão geral - o que impõe a observância obrigatória dos juízes e dos tribunais, nos termos do artigo 9272 do Código de Processo Civil -, a decisão, além de vincular o Poder Judiciário, também acabou por demonstrar indiretamente a evidente inconstitucionalidade de diversas normais estaduais que também exigem alíquota de ICMS majorada para os mesmos fatos gerados objeto do recurso extraordinário - energia elétrica e serviços de telecomunicações.

Necessário frisar que a decisão adotada por meio da sistemática da repercussão geral não vincula o Poder Legislativo, em virtude do princípio da separação dos poderes, razão pela qual se faz necessário o ajuizamento de demandas específicas - via controle difuso ou via controle abstrato de constitucionalidade - para que se retire do ordenamento jurídico inúmeras normas estaduais incompatíveis com a Constituição Federal, nos termos do julgado.

Ademais, por razões de excepcional interesse social (grande impacto na arrecadação estadual), nos termos do artigo 927, § 2º, do CPC3, o STF “adequou” os efeitos da decisão proferida no RE 714139 para que só produza efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvando as demandas já ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito (5/2/21).

Tal modulação de efeitos gerou as seguintes consequências:

a) os contribuintes que exerceram seu direito de ação para questionar essa inconstitucionalidade até 5/2/21 têm direito a restituir os valores pagos a mais nos 05 (cinco) anos anteriores ao ajuizamento da ação;

b) diversas normas estaduais continuarão produzindo efeitos normalmente, aplicando a alíquota de ICMS majorada sobre energia elétrica e serviços de comunicação pelo menos até o final do exercício de 2023;

Dessa forma, o contribuinte que se enquadrar nas situações acima, ou seja, estiver obrigado a recolher ICMS com alíquota majorada incidente sobre energia elétrica e telecomunicações poderá buscar a obtenção de provimento judicial, inclusive com tutela provisória de urgência, para que não seja obrigado a recolher a referida exação tributária acima da alíquota permitida constitucionalmente, sob pena violação direta ao princípio da seletividade e à supremacia constitucional.

O princípio da seletividade, expresso no art. 155, § 2º, III, da CF/88 dispõe que devem ser aplicadas alíquotas menores sobre produtos e serviços considerados essenciais aos contribuintes, ou seja, o STF reconheceu expressamente que a energia elétrica e os serviços de telecomunicações são imprescindíveis para uma vida digna, quando do julgamento do RE 714139, como se observa da delimitação da tese fixada:

Tema 745: Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.

Não há dúvidas de que os serviços de energia elétrica e de telecomunicações desempenham papel fundamental para obtenção e manutenção de uma vida digna, ainda mais no mundo pós-pandemia da covid-19, onde diversas atividades passaram a ser desenvolvidas em ambiente virtual, ainda mais os diversos serviços essenciais que dependem diretamente dos referidos insumos.

Por outro lado, não se deve ignorar que grande parte – senão a maioria – do empreendedorismo brasileiro é constituído por micro e pequenas empresas, as quais, por vezes, não detêm capacidade contributiva proporcional à demanda de consumo sobre referidos insumos, no intuito de garantir a sobrevivência da atividade empresarial, cujas tarifas são geradas com base em alíquotas de ICMS majoradas, cuja inconstitucionalidade já foi reconhecida.

Inclusive, essa foi a razão que motivou o Procurador-Geral da República a ajuizar 254 (vinte cinco) ações diretas de inconstitucionalidade com pedido cautelar, para suspender a eficácia das leis estaduais que estão exigindo alíquota majorada de ICMS nas mesmas hipóteses do tema 745, quais sejam: ADIs 7108 (PE), 7109 (MS), 7110 (PR), 7111 (PA), 7112 (SP), 7113 (TO), 7114 (PB), 7115 (MA), 7116 (MG), 7117 (SC), 7118 (RR), 7119 (RO), 7120 (SE), 7121 (RN), 7122 (GO), 7123 (DF), 7124 (CE), 7125 (ES), 7126 (AP), 7127 (PI), 7128 (BA), 7129 (AM), 7130 (AL), 7131 (AC) e 7132 (RS).

Em relação à modulação dos efeitos da decisão, para que só produza efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, nota-se que mais uma vez o STF optou por acolher a chamada “técnica da inconstitucionalidade útil”. Tal técnica implica reconhecer que normas inconstitucionais são produzidas e têm vigência por extensos lapsos temporais, para atender às finalidades do órgão político que as editou, até virem a ser declaradas inconstitucionais pelo STF que, embora reconhecendo o vício que as macula desde à sua edição, modula os efeitos da decisão para que resguarde relações jurídicas já constituídas, mitigando “a inconstitucionalidade”.

Sob um aspecto político, essa produção de normas inconstitucionais acaba sendo útil e favorável aos integrantes da federação (União, Estados, DF e Municípios) e onerosa aos contribuintes, que suportam diretamente arrecadações inconstitucionais e, muitas vezes, não conseguem, sequer, obter a restituição/compensação do que já foi recolhido indevidamente.

Tal técnica jurídica é muito bem explicada e criticada pelo ex-ministro do STF Marco Aurélio de Melo:

“...Tenho votado sistematicamente contra a modulação dos efeitos de decisões declaratórias de inconstitucionalidade de Leis. Adotar essa providência de forma imoderada implica tornar a própria Constituição Federal flexível, não um documento rígido a ser observado por todos. Ante o princípio da supremacia da Lei Maior, a inconstitucionalidade é vício congênito, a Lei inconstitucional é natimorta. A prática continuada do Supremo de diferir no tempo a eficácia dos pronunciamentos estimula a inaceitável figura da inconstitucionalidade útil: governantes e legisladores não receiam editar leis inconstitucionais, porque fiam-se na futura modulação de efeitos...5

Portanto, a partir do momento em que o STF reconheceu a inconstitucionalidade da norma do Estado de Santa Catarina (RE 714.139), e consequentemente as demais normas estaduais que se enquadrem na mesma situação jurídica da norma declarada inconstitucional, não mais se justifica a manutenção de cobrança de alíquota de ICMS majorada para os serviços de energia elétrica e telecomunicações.

Não obstante, uma perspectiva temporal (modulação de efeitos) não pode estar acima da própria higidez da norma fundamental que embasa o estado democrático de direito, eis que as exações estaduais inconstitucionais continuarão afrontando o ordenamento jurídico vigente até o ano de 2024 e, consequentemente, a capacidade contributiva dos contribuintes, já que serão os únicos prejudicados pela mitigação dos efeitos da decisão ao suportarem a majoração inconstitucional de alíquota de tributo.

Nesse panorama, para que o contribuinte não permaneça vinculado a uma cobrança indevida, resta-lhe ou aguardar o decurso do prazo de mitigação dos efeitos da decisão, vale dizer, ano de 2024, aguardar o resultado das ações ajuizadas pelo PGR, ou se antecipar e ajuizar demanda visando à obtenção de tutela provisória de urgência no sentido de reconhecer a inexistência de relação jurídica com o os fiscos estaduais, em prol de recolher o ICMS sobre os setores de energia e telecomunicações com base na alíquota geral fixada constitucionalmente.

Por tais fundamentos, sempre sustentamos que deveria haver uma Procuradoria Geral da União competente para defender os direitos difusos dos contribuintes, para não suportarem cobranças inconstitucionais, através dos preços dos serviços e mercadorias, disponibilizados para a população em geral.

_________

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 714139/SC. Ministro Marco Aurélio e Ministro Dias Toffoli, acórdão publicado 15.03.2022

2 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105 de 16 de março de 2015

3 Idem.

4 BRASIL. http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-apresenta-25-acoes-diretas-de inconstitucionalidade-contra-aumento-de-icms-sobre-energia-e-comunicacoes - acesso 18.04.22

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 643.247/SP. Ministro Marco Aurélio, acórdão publicado 28.06.2019

Ronaldo Corrêa Martins
Fundador e CEO do escritório Ronaldo Martins & Advogados.

Jéssica Kelly de Araújo Oliva
Advogada Consultora Tributária do escritório Ronaldo Martins & Advogados.

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