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Acórdão do TJ/SP aplica e dá efetividade ao artigo 3ª-a do CPP, referendando definitivamente o sistema acusatório

De acordo com o precedente jurisprudencial do TJ/SP, a decisão do min. Luiz Fux que suspendeu a eficácia dos art. 3ªA a 3º-F do Código de Processo Penal em nada se relaciona com a imediata implementação do modelo acusatório no sistema processual brasileiro, estabelecido desde 1988 pela Constituição Federal.

22/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

É incontroverso que a Constituição Federal de 1988 trouxe para o processo penal características próprias de um sistema acusatório, no qual a função de acusar é privativa do Ministério Público (artigo 129, I), a advocacia é essencial à administração da justiça (artigo 133) e os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, previstos no artigo 5º, LV e LIV, são consagrados como cláusulas pétreas.

Ocorre que a inovadora estrutura democrática estabelecida pela Constituição Federal não se compatibiliza com os preceitos inquisitivos então previstos no nosso Código de Processo Penal, editado em 1941, sob forte influência do modelo processual fascista italiano, ou Código de Rocco, da década de 30.

Por isso, estabeleceu-se na doutrina que “os dispositivos do Código de Processo Penal (..) devem ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941”1

Com o objetivo de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal foi promulgada a lei ordinária 13.964/19, também conhecida como “pacote anticrime”, na qual acertadamente há expressa previsão de que o processo penal terá uma estrutura acusatória, sendo “vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação” (artigo 3ª-A do CPP).

A referida lei também trouxe entre as suas inovações a figura do juiz de garantias, que deverá atuar exclusivamente na fase de investigação de um crime (artigo 3º-B a 3º-F). Sob esta nova perspectiva, um novo juiz deverá ser nomeado após o recebimento da denúncia, a fim de presidir a instrução processual e eventualmente sentenciar o réu.

Ocorre que a vigência dos artigos 3º-A a 3ºF do Código de Processo Penal, acrescidos pela lei 13.964/19, foi suspensa por decisão liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux nos autos das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, em trâmite perante o STF.

Na visão do il. ministro Fux, “os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria” (art. 96 da Constituição) e a ausência de prévia dotação orçamentária para implementação do juiz de garantias violaria diretamente o artigo 169 da Constituição e prejudicaria a autonomia financeira do Poder Judiciário, assegurada pelo artigo 99 da Carta Magna.

Todavia, a mudança legislativa inserida no artigo 3º-A do Código de Processo Penal – implementação do sistema acusatório no bojo do processo penal – não acarreta mudanças estruturais no Poder Judiciário com gastos que vão além do seu poder orçamentário.

Muito pelo contrário, eis que a lei ordinária 13.964/19 – ao positivar regra que há mais de 30 anos está em vigor no ordenamento brasileiro - adequou a norma processual à ordem constitucional vigente.

Foi exatamente com base nessas premissas que o col. Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da sua 13ª Câmara de Direito Criminal, decidiu no último dia 07 de fevereiro decretar a ilicitude da prova produzida de ofício pelo juiz, haja vista a revogação tácita do artigo 156 do Código de Processo Penal pelo artigo 3ª-A do mesmo diploma legal (Habeas Corpus Criminal 2200070-67.2021.8.26.0000- publicação em 17.02.22).

De acordo com a referida decisão:  

“a decisão liminar do min. Fux não visou afastar esse reforço ao sistema acusatório, mas à suspensão da ‘implementação do juiz das garantias e seus consectários’, eis que tal figura, na visão do ministro, geraria mudanças estruturais no Poder Judiciário, cujos impactos demandariam maior reflexão.

Assim, não houve pelo min. Fux a suspensão da eficácia da norma no que concerne ao reforço dado pelo art. 3º-A ao sistema acusatório, o que afasta a aplicação do art. 156, do CPP, que já antes se incompatibilizava com a Constituição da República, e ora expressamente, com a legislação processual penal infraconstitucional”.

Embora se trate de decisão proferida em um caso específico, o precedente adotado é de extrema importância e merece repercutir em diversas outras situações em que o sistema acusatório é frontalmente violado.

É o caso, por exemplo, das previsões que autorizam o juiz a requisitar de ofício instauração de inquérito policial (artigo 5º, II, do CPP); solicitar diligências à Autoridade Policial no curso da investigação (artigo 13 do CPP); determinar a oitiva de testemunha não arrolada pelas partes (artigo 209 do CPP); providenciar a juntada de documentos independentemente de requerimento das partes (artigo 234 do CPP); dar qualificação jurídica diversa da outorgada pela acusação, mesmo que o imputado dela não tenha se defendido (artigo 383 do CPP); iniciar a inquirição de testemunha no plenário do júri (artigo 473 do CPP); - recorrer, de ofício, mesmo que a acusação não tenha interposto recurso cabível (artigos 574 e 746 do CPP).

Ainda, merece destaque a regra estampada no artigo 385 do CPP, que permite ao magistrado condenar o réu mesmo diante de um pedido de absolvição do Estado-Acusador. Com o devido respeito, se após toda a instrução processual o órgão acusatório entender pela inocorrência do crime, pela falta de provas para condenação ou pela atipicidade da conduta, não cabe ao Magistrado sentenciante condenar o acusado.

Logo, a manutenção do dispositivo referido não se coaduna com o ordenamento jurídico pátrio e, pior, representa verdadeiro retrocesso do processo penal, pois, após a promulgação da lei 13.964/19, não é mais tolerável iniciativa probatória por parte do julgador.

Desse modo, importantíssimo que a atual jurisprudência continue reconhecendo a revogação tácita de artigos do Código de Processo Penal de cunho eminentemente inquisitório, na linha do posicionamento adotado pela 13ª Câmara Criminal do TJ/SP no que se refere ao artigo 156 do diploma em questão.

___________

1 LOPES, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica- São Paulo: Saraiva, 2015. p. 33/34

Pedro Luiz Cunha Alves de Oliveira
Sócio do escritório Alves de Oliveira e Salles Vanni advogados e Diretor de Prerrogativas do Movimento de Defesa da Advocacia - MDA.

Janaina Frazão
Associada ao escritório Alves de Oliveira e Salles Vanni advogados.

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