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É possível a homologação, pelo STJ, de sentença arbitral estrangeira sem fundamentação?

O tema não foi apreciado pelo colegiado. Isso porque a Corte Especial do STJ, na forma do voto vencedor do Ministro Francisco Falcão, deixou de homologar a sentença arbitral forasteira, mas por outro motivo (qual seja, a ausência de compromisso arbitral), sem adentrar na discussão da validade da sentença desprovida de fundamentação.

20/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Tal e qual a sentença judicial, que possui seus elementos essenciais previstos no art. 489 do CPC, a sentença arbitral deve respeitar a forma escrita (art. 24) e, a teor do art. 26 da Lei de Arbitragem, deve ainda conter, obrigatoriamente: a) relatório; b) fundamentação; c) dispositivo; e d) data e lugar em que foi proferida.

O não atendimento dos requisitos indicados no art. 26 autoriza a nulificação da sentença arbitral, na forma do art. 32, III, da Lei de Arbitragem. A lei brasileira, como apregoado por Octávio Fragata Martins de Barros, “não admite renúncia dos requisitos formais por liberalidade das partes. Assim, os requisitos formais da sentença expostos no art. 26 da Lei de Arbitragem são obrigatórios, não cabendo nem às partes nem aos árbitros alterá-los de qualquer forma. A ausência de um desses requisitos é motivo para a nulidade da sentença arbitral”.

Nesse sentido, no direito brasileiro, a fundamentação é pressuposto de validade da sentença arbitral. É dela que se extrai a ratio das conclusões apresentadas no dispositivo. É a fundamentação que permite que as partes confirmem se suas alegações foram consideradas e se as provas apresentadas foram devidamente examinadas pelos árbitros, ainda que para descartá-las. Além disso, é a partir da fundamentação que as partes conseguem identificar eventuais vícios na sentença arbitral que possam justificar a apresentação de pedido de esclarecimentos (assim chamados os embargos de declaração da arbitragem) ou até mesmo a propositura de ação anulatória. Corolário do princípio do devido processo legal, a motivação das decisões arbitrais representa verdadeira garantia para as partes de um julgamento justo e isonômico.

Sobreleva notar, todavia, que, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a) fundamentação contrária aos interesses das partes não é ausência de fundamentação; b) o fato de a sentença ser concisa não significa, tampouco, ausência de fundamentação; e c) a ausência de menção a dispositivos legais não significa que o julgamento foi realizado por equidade.

Ainda assim, há que se ter muita cautela para não se flexibilizar, em excesso, a exigência de fundamentação das sentenças arbitrais. É lembrar que, em geral, diferentemente do processo judicial, a via arbitral não admite recurso. Logo, não há espaço para que um órgão, de hierarquia superior, possa revisitar a decisão, para corrigi-la. Não se pode ignorar, de mais a mais, que a arbitragem é exceção à solução do conflito pela justiça estatal, fruto de escolha contratualmente feita pelas partes, sob a premissa, precisamente, de que o tribunal arbitral (ou o árbitro único, se for o caso), composto por especialistas na temática controvertida, terá maior disponibilidade para examinar os argumentos das partes e a prova dos autos. Recai sobre os árbitros, por isso mesmo, um ônus mais rigoroso de fundamentação, do que aquele que incide sobre o juiz togado.

Registre-se, por relevante, que a fundamentação da sentença arbitral é exigência legal no Brasil, sem que se trate, contudo, de um princípio universal. É a forma exigida pelo art. 26, II, da Lei de Arbitragem. Opção legislativa, sem estatura constitucional.

O art. 1482 do Código de Processo Civil francês segue o modelo da lei brasileira, estabelecendo que a sentença arbitral deve ser motivada. Nada obstante, a legislação estrangeira é repleta de exemplos em que a motivação das sentenças arbitrais pode ser dispensada pelas partes, no campo da autonomia da vontade. A título exemplificativo, a lei modelo da UNCITRAL (art. 31[2]), a Lei de Arbitragem espanhola (art. 37[4]), a Lei de Arbitragem Voluntária portuguesa (art. 42[3]), a Lei de Arbitragem inglesa (Section 521), a Lei de Arbitragem da Índia (Section 31[3]) e a Lei de Arbitragem doméstica de Singapura (Section 38[2]) dispensam a fundamentação da sentença arbitral, se assim for convencionado pelas partes.

Isso se dá porque, na esfera estritamente privada, na seara dos direitos patrimoniais disponíveis, os contratantes podem renunciar livremente aos seus direitos, desde que as partes sejam capazes, o objeto seja lícito e a forma seja aquela prevista em lei. Assim, se a lei forasteira autorizar (ou não se opuser a) que a arbitragem seja encerrada por sentença desprovida de fundamentação, o julgado será válido, se assim for pactuado pelas partes. Escolha essa que pode ser feita, inclusive, para reduzir os custos com o procedimento.

Cabe perquirir, neste particular, se a sentença arbitral estrangeira, sem fundamentação, seria passível de homologação pelo STJ. No caso Newedge v. Manoelo Fernando Garcia, julgado em 2014, que tinha por objeto pedido de homologação de sentença prolatada nos Estados Unidos, com base na lei do Estado de Nova Iorque, orientou-se o STJ no sentido de que “a motivação adotada pela sentença arbitral e seus aspectos formais seguem os padrões do país em que foi proferida, não podendo sua concisão servir de pretexto para inibir a homologação do decisum”. Ali, perceba-se, a decisão era concisa e não sem fundamentação. Nada obstante, o substrato teórico subjacente ao julgado revela que há espaço no STJ para admitir a homologação de sentença arbitral estrangeira, ainda que sem qualquer motivação. Com efeito, se o regramento aplicável à sentença é o do país em que é proferida, há que se admitir a licitude de sentença arbitral estrangeira sem fundamentação, caso exista previsão na lei respectiva.

Essa possibilidade (de validade de sentença arbitral estrangeira sem fundamentação) foi expressamente ventilada no STJ, em voto vencido do Ministro Massami Uyeda, no caso Kanematsu. No referido voto, o Ministro reconheceu a validade de sentença estrangeira sem fundamentação, prolatada nos Estados Unidos, segundo o regulamento da American Arbitration Association - AAA. O tema, contudo, não foi apreciado pelo colegiado. Isso porque a Corte Especial do STJ, na forma do voto vencedor do Ministro Francisco Falcão, deixou de homologar a sentença arbitral forasteira, mas por outro motivo (qual seja, a ausência de compromisso arbitral), sem adentrar na discussão da validade da sentença desprovida de fundamentação.

Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

Daniel Brantes Ferreira
Doutor e mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ. Pós-doutor em Direito Processual pela UERJ. Vice-presidente de Assuntos Acadêmicos do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Professor da Universidade Cândido Mendes, da EMERJ e do Mestrado da Ambra University.

Rafael Carvalho Rezende Oliveira
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Professor. Ex-defensor Público Federal. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. Árbitro e consultor jurídico.

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