A profusão de relações jurídicas, notadamente na última década, que passaram a se estabelecer também no plano digital facilitadas pela rede de intercomunicação de dados (internet), tem como um de seus efeitos a disrupção de uma sociedade acostumada, há séculos, a formalizar seus negócios jurídicos por suas partes frente a frente; ao uso do papel e caneta e na utilização de correio físico para se comunicar e transmitir informações.
Especificamente no processo civil, tradicionalmente a intimação dos atos processuais ocorria, em regra, de forma pessoal por carta. Contudo, a velocidade e a intensidade com a internet transformou e transforma diuturnamente a vida em sociedade, sobretudo a facilidade para troca de informações, também alterou as formas de comunicação e ciência dos atos processuais que hoje, após a Lei Federal 14.195/21 alterar o Código de Processo Civil, devem ocorrer preferencialmente por meio eletrônico (v. arts. 246 e 270 do CPC).
Fora do âmbito processual, já se tornou frequente, por exemplo, a troca entre dois pretendentes a contratantes de minutas do contrato por e-mail, o estabelecimento de conversa sobre condições de pagamento, o reconhecimento e confissão de dívidas por meio de aplicativos de trocas de mensagens, a venda de produtos em sites de venda entre particulares etc. Hoje tudo se opera de forma tão informal, a se fazer esquecer que lá estão presentes um negócio jurídico.
Nesse sentido, o impacto do inadimplemento dessas relações negociais e até o sofrimento de danos patrimoniais ou extrapatrimoniais aos envolvidos permitem a busca da tutela jurisdicional, seja no âmbito do Poder Judiciário, seja em Tribunal Arbitral.
Afinal, se é verdade que o direito é uma técnica de regulação das relações sociais e a sociedade vive um momento singular nas formas de se conectar e relacionar, só se pode dizer que se vive em uma realidade regida pelo direito se suas normas forem capazes de atender satisfatoriamente ao modo de existir dessa nova realidade multiconectada, a qual, entretanto, apresenta inegáveis desafios ao direito e seus operadores.
Do ponto de vista da legitimidade, quem deve ocupar o polo passivo de ação indenizatória de ato ilícito cometido em grupo de pessoas reunidas em aplicativo de troca de mensagens? Os famigerados “prints” de conversas estabelecidas nos aplicativos de troca de mensagens via internet ou outros sistemas podem ser reconhecidos como prova a influir na convicção judicial? Tais documentos, ainda que de maneira menos formal, são suficientes para fundamentar a propositura de ação monitória (art. 700 e seguintes do CPC)? Diante da facilidade de se tornar “anônimo” na internet, que tipo de ação deve ser proposta para se tomar conhecimento da identidade da autoria de quem praticou ato ilícito?
Todos esses questionamentos têm sido levados à apreciação do Poder Judiciário que, mal ou bem, tem cumprido a sua função de entregar a tutela jurisdicional às partes. Trata-se de realidade inegável que a sociedade do século XXI vive e com a qual o direito deve saber lidar, bem como estar permeado de leis que captem a realidade de seu tempo.
Dessa forma, a investigação de características da legislação processual civil, notadamente a lei 13.105/15 (Código de Processo Civil), fornece informações substanciais sobre como a nossa legislação processual está preparada para absorver e interagir com as inovações proporcionadas pelo uso da internet na sociedade contemporânea.
No entanto, uma das possibilidades verificadas por meio da internet, por alguns sites nela hospedados permitirem a criação de usuários, perfis, contas que, por vezes, não pretendem ter sua verdadeira identidade revelada, é o agir de forma anônima, mediante pseudônimos. Por vezes, esse anonimato vem seguido de um ato ilícito.
E a busca pela responsabilização desses usuários por seus ofendidos é dificultada, fazendo-se necessária a descoberta, por meio de ação judicial, da verdadeira identidade do usuário por trás daquele ato, direito assegurado, inclusive, pela Constituição Federal, no art. 50, IV que declara ser livre a manifestação do pensamento, conquanto seja vedado o anonimato.
Nesse ponto, Direito, Processo e Internet não andam juntos.
A facilidade sentida por alguns usuários em razão da diminuição de barreiras para se conectar a informações ou pessoas proporcionada pela internet é confundida, não raras vezes, com a falsa concessão de autorização para agir como bem entender, como se esse ambiente fosse "terra de ninguém", inclusive para cometer atos ilícitos, sob a crença de que o uso de pseudônimos impediria a sua identificação e consequente responsabilização.
A vedação ao anonimato, prevista no artigo 5º, IV, da CF, antecedida pela garantia à livre manifestação de pensamento, é ônus que se impõe àquele que se manifesta, consistindo na obrigatoriedade de sua identificação, já que algumas manifestações podem ter o condão de produzir efeitos jurídicos e, portanto, reclamam-se que se conheça sua autoria.
Como descobrir, então, a verdadeira identidade daquele que comete ato ilícito por meio da internet para fins de promoção de subsequente demanda indenizatória?
De início, deve-se acionar a pessoa jurídica, no caso o provedor de internet, que detenha as informações necessárias para a correta identificação desse usuário. Isso porque o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) prevê, no seu art. 15, que cabe ao provedor de internet o dever de manter os registros e os acessos, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.
Isso quer dizer que, se passado o prazo de 6 (seis) meses em que o ato ilícito foi cometido por meio de um usuário da internet, pode ser que os seus registros já não estejam mais disponíveis para que o ofendido possa tomar conhecimento da sua real identidade, dificultando, dessa forma, a promoção de ações de reparação de danos cíveis.
Talvez pelo legislador saber que tal prazo seja deveras exíguo para algumas situações, é previsto no § 2º do art. 15 da mesma lei, que “autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 13”.
Referido dispositivo, contudo, não menciona a possibilidade de o próprio particular ofendido solicitar que os dados sejam guardados por prazo superior caso se veja na situação de iminente vencimento do prazo de 6 (seis) meses, assegurando assim apenas aos representantes públicos o direito de postular a prorrogação do prazo anual, o que pode ter sido um equívoco do legislador. Isso porque nem sempre o conhecimento da ofensa cometida pela internet pelo ofendido será imediatamente notado por seu destinatário, dificultando a sua reação em razão do curto prazo assinalado na lei.
Não obstante, não se pode ignorar que existe toda uma racionalidade por trás da definição do prazo para que os dados dos usuários sejam guardados. Segundo afirma Victor Hugo Pereira: “a estipulação de um prazo definido para o recolhimento e guarda de dados é medida importante, pois impede à autoridade acumular informações indefinidamente sobre alguém, o que feriria o direito dos usuários à privacidade. Há sérias dúvidas se o prazo de seis meses também não seja excessivo à medida e não fere, com as práticas de gerenciamento de big data e a alta capacidade de processamento de dados, o direito à privacidade, à intimidade e à vida privada. Investigar por seis meses qualquer cidadão é medida por demais intrusiva e fora dos propósitos investigativos. A medida tem que ser de exceção e não de consolidação de um estado constante de vigilância”.
Sob essa perspectiva, imaginar que o provedor de internet tenha documentado todas as suas atividades nos últimos 6 (seis) meses é assustador, e, portanto, parece ser óbvia a razão para que esse prazo não seja mais dilatado. Todavia, entre o ônus de se ter as suas informações mantidas em um servidor de internet por mais tempo de forma sigilosa, como impõe a lei (art. 10, Marco Civil da Internet), e a possibilidade de, em eventual ato ilícito, ser possível solicitar ao provedor de internet que apresente as informações de seu autor passados 7/9/10 meses de sua prática, assegurando-lhe a possibilidade de obter reparação integral do dano sofrido, o segundo cenário parece ser preferível.
Deve-se ponderar, é verdade, que parece que a adoção de tal posicionamento pelo legislador sobre aludido prazo tenha levado mais em conta a necessidade de impedir que os provedores de internet mantenham por um longo período informações dos seus usuários, com o fito de se impedir que sejam monitorados por tanto tempo, esquecendo-se de que a manutenção de tais informações por igual período também pode ser fator decisivo para não se conseguir identificar a real identidade do autor de ato ilícito cometido na rede.
Partiu desse raciocínio o acórdão do Recurso Especial 1.398.985, de relatoria da Minª. Nancy Andrighi, proferido nos idos de 2013, em que se entendeu que, “Com relação ao tempo de conservação dessas informações, considerando que sua obtenção visa a possibilitar o exercício da pretensão de reparação civil por danos materiais e morais, deve-se fixar, como regra, o prazo de 03 anos previsto no art. 206, § 3º, V, do CC/02, contado do dia em que o usuário cancelar o serviço”.
Vale destacar, contudo, que o entendimento jurisprudencial que tem se formado é o de que, para as ações ajuizadas antes do Marco Civil da Internet, aplica-se o prazo de 3 (três) anos para que os servidores mantenham guardadas as informações dos usuários. No entanto, para os processos ajuizados após o Marco Civil da Internet, com pontuais dissensos, tem-se reconhecido o prazo de 6 (seis) meses previamente estipulado na lei.
Pensamos que não tardará que seja submetido à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, seja por meio da sistemática dos repetitivos (art. 1.036 e seguintes), seja por meio de embargos de divergência (art. 1.043) ou outro expediente processual voltado à promoção da pacificação de orientação jurisprudencial, o debate sobre os benefícios e prejuízos dos prazos estipulados para a guarda de dados previstos no Marco Civil da Internet, consoante as razões anteriormente expostas. Até que isso aconteça, certamente o dissenso jurisprudencial que se formar sobre o tema será importante para subsidiar debate mais maduro e definição sobre o tema. Mas isso só o tempo dirá.