No filme Eles Vivem, de 1988, com direção e roteiro de John Carpenter, um trabalhador braçal, de nome João Nada, chega a Los Angeles e encontra trabalho em uma fábrica. Lá, durante uma situação inusitada, João Nada encontra uma caixa com alguns óculos escuros, aparentemente comuns mas, ao colocar um deles no rosto, descobre que, a partir de suas lentes, passa a enxergar a real face de algumas pessoas: são criaturas alienígenas disfarçadas de seres humanos. Além disso, João Nada passa também a enxergar mensagens subliminares, introduzidas por tais criaturas, contidas nas propagadas em outdoors, revistas, jornais e na televisão: são mensagens como “compre”, “obedeça as autoridades”, “assista televisão”, “nada de imaginação”, “trabalhe”. João Nada percebe, então, que os invasores já estão controlando todo o planeta e, juntamente com seu companheiro de trabalho, Frank, decide se engajar no movimento de resistência, distribuindo os óculos de visão especial para determinadas pessoas e espalhando a notícia.
Esse é o enredo de um filme produzido em 1988 que, no entanto, suscita debates e discussões extremamente atuais: os impactos do virtual ou do “invisível aos olhos” na sociedade. Desde o advento da internet, com o surgimento do ciberespaço e de uma nova realidade virtual, ocorreram diversas mudanças paradigmáticas, em diversos setores da existência humana, como, por exemplo, o acesso à informação – que se tornou bastante diversificado, dinâmico e veloz, em comparação a outras épocas da História – e a preservação da intimidade – que se tornou bastante complexa, ramificada e difícil.
Sabe-se que, atualmente, grande é a velocidade e a quantidade de informações que circulam a cada minuto por meio da internet. Uma guerra que eclode na Europa pode se tornar de conhecimento de todo o mundo em questão de horas, e não apenas de “ouvir falar”, mas através de imagens, vídeos ou mesmo de relatos ao vivo de pessoas que estão vivenciando momentos de terror no local da guerra, como é o caso da recente invasão russa à Ucrânia1, sobre a qual pode se encontrar os mais diversos tipos de informação na internet.
Espada de dois gumes. Ao mesmo tempo que a internet, nesse sentido, possibilita a rápida conexão entre pessoas de todo o mundo, a propagação de notícias importantes, o compartilhamento de ideias, descobrimentos e pesquisas, também permite a relativização do conceito de “intimidade”. Ao fechar as portas das casas, as pessoas não estão mais, como antigamente, protegidas e guardadas do que ocorre do lado de fora: os acontecimentos do mundo adentram nas residências por meio da televisão, dos celulares, dos computadores. Além disso, as informações que, antes guardadas em diários fechados com cadeados, baús de recordações, cofres e itens semelhantes, agora se encontram nas nuvens – território de não-se-sabe-quem –, “local” de cuja proteção e guarda a maioria dos indivíduos não tem controle ou conhecimento.
Nesse sentido é a discussão relacionada à necessidade de regulação do ciberespaço sem, no entanto, olvidar a proteção ao direito de liberdade, privacidade, intimidade e de acesso à informação. Sendo o Direito um objeto cultural, ou seja, criado pela experiência do homem, como processo de adaptação social, gerado pelas forças sociais com o objetivo de garantir ordem na sociedade, segundo os princípios da justiça2, nada mais justo do que o debate sobre a regulação do ciberespaço, na medida em que tal nova realidade virtual modificou a experiência humana, em diversos aspectos. A dinâmica da era da informação exige uma mudança mais profunda na própria forma como o Direito é exercido e pensado em sua prática cotidiana3.
Dessa maneira, entendem-se os desafios jurídicos do Direito Digital, que incluem a quebra de paradigmas, a descentralização, a dificuldade em definir limites territoriais e físicos, a velocidade com que as decisões devem ser tomadas e a crescente capacidade de resposta dos indivíduos4. O ciberespaço, como espaço de interação humana que é, necessita sim, de regulação, de um “contrato social próprio”. O desafio, no entanto, encontra-se na produção de uma legislação adequada à realidade virtual, ou seja, com conceitos, limites e definições próprias.
O conceito de “território”, em Geografia, não é o mesmo que na internet, posto que, nesta, não há fronteiras5. Esses são aspectos inerentes ao próprio ciberespaço, quais sejam, a ubiquidade, a atemporalidade e a transterritorialidade. Diante de tais características, portanto, necessária e adequada se entende a elaboração de Tratados e Convenções Internacionais, que regulem e, de certa forma, proponham a uniformização do tratamento das questões relacionadas a internet, cada vez mais globalizada e acessível. A globalização da economia e da sociedade exige a globalização do pensamento jurídico6.
1 MCCLUSKEY, Mitchell. Zelensky diz que forças russas estão “visivelmente” saindo do norte da Ucrânia: presidente ucraniano afirmou, entretanto, que a retirada das tropas está acontecendo “lentamente”. CNN Brasil, Internacional, 1 de abril de 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/zelensky-diz-que-forcas-russas-estao-visivelmente-saindo-do-norte-da-ucrania/ Acesso em: 2 abril, 2022.
2 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 36ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 96.
3 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 17.
4 Ibidem, p. 18.
5 LEWANDOWSKI, Ricardo. Territórios mapeados começam a competir com um novo espaço virtual. 11 de março de 2022. Acesso em: 2 abril, 2022.
6 Ibidem, p. 23.