Migalhas de Peso

Em defesa dos juros sobre o capital próprio

Embora os JCP tenham sido muito criticados internacionalmente, finalmente foi reconhecido o seu fundamento como instrumento de busca pela neutralidade fiscal, e não de mera benesse concedida pelo Estado ao contribuinte.

19/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Atualmente, existem duas formas de remuneração dos sócios – dividendos e os JCP - Juros sobre o Capital Próprio – que geram efeitos tributários bastantes distintos.  

Os dividendos são parcelas de lucros de uma empresa distribuídos aos acionistas como remuneração do capital investido. Vale observar que os lucros passíveis de distribuição são os líquidos de tributos incidentes sobre o lucro (IRPJ e CSLL) devidos depois de destinadas as parcelas para reservas específicas. Portanto, a distribuição de dividendos não afeta o resultado tributável, não gerando qualquer dedução fiscal. Os dividendos são isentos de tributação quando da distribuição para todo investidor.

Já os JCP são tidos como instrumento híbrido, uma forma de remuneração do acionista que gera dedução fiscal. Para fins tributários, os JCP possuem natureza de despesa financeira, possibilitando dedução nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL e, por outro lado, são tributados no beneficiário do rendimento.

É importante rememorar que os JCP foram instituídos no Brasil em 1995, na esteira da extinção da correção monetária de balanço patrimonial. Durante a vigência dessa indexação (1978 a 1995), as contas do ativo permanente e do patrimônio líquido das empresas eram submetidas à correção monetária. Quando o patrimônio líquido era superior ao ativo permanente, as empresas apuravam despesa de correção monetária, dedutíveis na determinação do IRPJ e CSLL. Quando, ao contrário, o patrimônio líquido era menor que o total das contas de AP, apurava-se saldo credor, cuja tributação podia ser diferida com base nas regras de lucro inflacionário.

Assim, nas discussões que antecederam a revogação da correção monetária, foi identificada uma iniquidade entre as empresas financiadas via capital e aquelas financiadas por meio de dívida. Enquanto as empresas financiadas com capital próprio não incorriam mais em despesas com a correção monetária do patrimônio líquido, as empresas financiadas por endividamento permaneciam se valendo da dedução fiscal da atualização monetária gerada pelos empréstimos.

Foi neste contexto que o legislador brasileiro, consciente desta desigualdade nascida com o fim da correção monetária, mas não podendo permitir qualquer forma de indexação de balanços no contexto do plano real, produziu a inovadora ideia de se instituir os JCP.

Dessa maneira, buscava-se com os JCP uma maior neutralidade fiscal na tributação da renda, na medida em que a decisão em se financiar as empresas via investimento dos sócios ou endividamento se basearia unicamente em estratégias empresariais e disponibilidade de capital, e não na busca de uma estrutura tributária mais vantajosa. Além disso, evitar-se-ia uma fuga de investimentos via capital próprio por motivos estritamente tributários.

Ocorre que, tratados como um instituto tipicamente brasileiro e sem referência similar no sistema tributário internacional, os JCP sempre foram objeto de críticas e incompreensões. No ano passado, o projeto lei 2.337/21, em uma tentativa de estabelecer uma reforma na tributação sobre a renda, pretendia revogar integralmente este instituto. Após muito alarde, foi aprovado pela Câmara dos Deputados e se encontra pendente de análise no Senado Federal.

Na contramão das discussões sobre a reforma tributária no Brasil, os países membros da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico estão cada vez mais adotando estruturas semelhantes aos JCP, também chamados de ACE - Allowance for Corporate Equity.

O relatório “Corporate Effective Tax Rates” emitido pela OCDE em 2018 constata que a indedutibilidade dos dividendos na apuração do imposto de renda corporativo induz as decisões de financiamento empresarial para a dívida e contra o financiamento de capital. Neste contexto, a criação da possibilidade de pagamento de ACEs pelas legislações dos países seria uma maneira de lidar com este potencial viés de dívida.

Em 2020, a OCDE emitiu uma segunda edição do relatório, no qual já constava uma lista de nove países que passaram a adotar ACEs em seus sistemas tributários, sendo eles Bélgica, Brasil, Chipre, Itália, Liechtenstein, Malta, Polônia, Portugal e Turquia.

Assim, a OCDE passou a incentivar a implementação de ACEs nos sistemas tributários dos países membros pelos mesmos motivos que levaram o Brasil a adotar pioneiramente os JCP. Embora os JCP tenham sido muito criticados pela comunidade internacional, finalmente foi reconhecido o seu fundamento como instrumento de busca pela neutralidade fiscal, e não de mera benesse concedida pelo Estado ao contribuinte.

Verifica-se, assim, que ao instituir a inovadora figura dos JCP, o Brasil agregou importante instrumento para o planejamento tributário corporativo, mitigando os problemas trazidos pela extinção da correção monetária dos balanços e estabelecendo nova (e mais vantajosa) forma de remuneração dos sócios.

Apesar de os JCP terem se mantido por mais de duas décadas sem referência semelhante no sistema tributário internacional, pôde-se observar, nos últimos anos, a adoção de estruturas comparáveis ao instituto que, anteriormente era, por assim dizer, inédito.

Nessa esteira, a eventual extinção dos JCP em razão da possível aprovação do projeto de lei 2.337/21 não somente prejudicaria o cenário tributário das empresas brasileiras, como desprivilegiaria instituto no qual o Brasil foi precursor, indo em sentido contrário à tendência atualmente observada em âmbito internacional em estruturas similares.

A insatisfação causada com a proposta de extinção dos JCP e com diversas outras alterações previstas no referido Projeto de Lei desacelerou a priorização da sua análise pelo Senado Federal, mas ainda não é suficiente para afastar a necessidade de acompanhamento da sua inclusão em pauta. 

Por fim, a possibilidade de extinção dos JCP, combinada com o momento em que a inflação volta com força no cenário brasileiro, demonstra ser totalmente impertinente e, acima de tudo, perversa, porque não permitirá às empresas utilizarem-se de uma estrutura que mitiga o impacto nefasto da correção monetária para as empresas capitalizadas e ainda continuar-se-á sem um mecanismo (o da correção monetária de balanço) que evita o recolhimento do IRPJ e CSLL sobre patrimônio (e não sobre a renda).

Heitor Cesar Ribeiro
Sócio do escritório e Gaia Silva Gaede Advogados e Especialista em Tributação Internacional.

Sandra Stocco de Siqueira
Sócia do Gaia Silva Gaede Advogados, no Rio de Janeiro.

Tayla Born Alves Andreis
Advogada da área de Contencioso Tributário do escritório Gaia Silva Gaede Advogados, em Curitiba.

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