Migalhas de Peso

A nova lei de improbidade administrativa e a interpretação de seu sistema como ''Direito Administrativo Sancionador''

A Nova Lei de Improbidade fez uma relevante alteração no tema prescrição.

14/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Em 25/10/21, foi publicada a lei 14.230/21, trazendo profundas alterações ao texto legal original (lei 8.429/92). O novo art 1 da Lei de Improbidade Administrativa possui a seguinte redação:

“Art. 1º. O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.

“§ 1º. Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.

“§ 2º. Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

“§ 3º. O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

“§ 4º. Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”. 

A primeira observação que se deve fazer, quanto a esta alteração, é que, antes mesmo da aprovação do novo diploma legal, o ministro Gilmar Mendes já vinha preconizando, nos julgados de sua lavra na Suprema Corte, que o Direito Administrativo Sancionador é um autêntico subsistema do Direito Penal. Vejamos:  

“A ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal. Neste sentido, considera-se a ‘lei de improbidade administrativa uma importante manifestação do direito administrativo sancionador no Brasil’ (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 190). 

"No ponto, desenvolve a doutrina:

“’A fim de poder julgar as demandas de violações aos direitos processuais a ele direcionadas, o TEDH (Tribunal Europeu de Direitos Humanos) firma um conceito unitário em matéria punitiva dos Estados, a fim de concretizar o conteúdo do que compreendia como matéria penal e poder, assim, decidir sobre as demandas que recebia. O Tribunal estabelece um conceito de direito penal em sentido amplo (...) o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 190).

“’Para além de refletir e buscar solucionar os complexos problemas dogmáticos trazidos pela aproximação entre direito penal e direito administrativo, é, também, preciso adotar um enfoque conjunto no campo da política sancionadora. Assim, seguindo a proposta de Rando Casermeiro, crê-se que uma política jurídica conjunta, que leve em conta os dois ramos sancionadores, é imprescindível para aportar um mínimo de racionalidade à questão’ (LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador, 2013, p. 122)” (STF, RCL 41557 MC / SP, Rel. Ministro Gilmar Mendes, com grifos nossos)1.

Outra observação que há de ser feita é que a nova lei trouxe de volta uma antiga classificação elaborada pela sistemática clássica do Direito Penal, acerca da voluntariedade, dolo e culpa; e também a distinção entre em dolo genérico e dolo específico, no item dolo:

Reza o art. 3 da Lei das Contravenções Penais:

“Decreto-Lei nº 3.688/41: Voluntariedade, Dolo e Culpa: Art. 3º. Para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária. Deve-se, todavia, ter em conta o dolo e a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico”. 

Conforme a Exposição de Motivos da LCP, datada de 8 de setembro de 1941: “O elemento moral das contravenções é a simples voluntariedade da ação ou omissão, isto é, para o reconhecimento do fato contravencional, prescinde se de dolo ou culpa”. 

Por outro lado, segundo A. J. DA COSTA E SILVA, “as duas formas de culpabilidade são o dolo e a culpa”2. Observação: hoje, o dolo e a culpa encontram-se no tipo subjetivo. 

O Prof. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, defensor da Sistemática Clássica até sua morte em 2015, citando BETTIOL, definiu dolo como sendo a “consciência (previsão) e vontade do fato conhecido como contrário ao dever”3. O mesmo autor prelecionava que “a culpa é a prática voluntária de uma conduta, sem a devida atenção ou cuidado, da qual deflui um resultado previsto na lei como crime, não desejado nem previsto, mas previsível”4. Ainda fazia importante diferenciação: “O dolo será genérico quando o agente deseja apenas o fato descrito na norma penal” e “o dolo específico pode ser considerado como a vontade excedente, que se aglutina no dolo genérico de base”5. Observação: hoje, a doutrina chama o dolo genérico de dolo natural e o dolo específico de elemento subjetivo do injusto.

Pois bem: com a redação dada pelo legislador aos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º, do art. 1º acima transcritos, a nova lei fulminou a culpa “stricto sensu” para a responsabilização por atos de improbidade administrativa, deixando claro que somente são imputáveis as condutas dolosas; e mais: somente aquelas praticadas com dolo específico (art. 1º, § 3º, do novo diploma legal). Apenas a título de exemplificação: 1) o aluno A coloca as respostas de sua prova em cima de sua carteira escolar, sem qualquer intenção ou descuido (trata-se de voluntariedade); 2) o aluno A deixa as respostas de sua prova em cima de sua carteira escolar, por descuido, e o aluno B cola suas respostas (cuida-se de culpa “stricto sensu”); 3) o aluno A deixa as respostas de sua prova em cima de sua carteira escolar, propositadamente, e o aluno B cola suas respostas (trata-se de dolo genérico); 4) o aluno A deixa as respostas de sua prova em cima de sua carteira escolar, propositadamente, e o aluno B cola suas respostas, porque o aluno A tem uma finalidade específica: a de ganhar algum dinheiro do aluno(trata-se de dolo específico).

Destarte, o elemento subjetivo exigido pela nova Lei de Improbidade Administrativa é o dolo específico, ficando afastadas eventuais condutas cometidas com dolo genérico ou culpa “stricto sensu”! De modo que não basta o enquadramento formal da ação ou omissão praticada pelo agente na moldura legal, mas o infrator deve ter em si a finalidade específica de enriquecimento ilícito, ou seja, de auferir qualquer vantagem patrimonial indevida, em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades protegidas pela lei (art. 9º do novel diploma legal); ou de causar lesão ao erário, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres integrantes do acervo patrimonial das entidades protegidas pela lei (art. 10 do novo texto legal); ou de atentar contra os   princípios da administração pública e assim violar os deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade (art. 11 da nova lei); em resumo: a consciência plena e o fim específico de violar a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções e a integridade do patrimônio público e social dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos municípios e do Distrito Federal, e ainda de dilapidar o patrimônio de entidades privadas que recebam subvenção, benefício ou incentivo de entes públicos ou governamentais (art. 1º, §§ 5º e 6º, do novel diploma legal) – sob pena de a conduta do agente ser atípica perante os tipos legais dos art. 9º, 10 e 11 da lei.

Outra observação a ser feita é que a nova Lei de Improbidade fez uma relevante alteração no tema prescrição: a antiga lei determinava que o direito de propor ação de improbidade prescrevia “em cinco anos após o término do exercício de mandato, cargo em comissão ou função de confiança” (art. 23, inciso I, da lei 8.429/92); já a nova lei prevê que a ação de improbidade prescreve “em oito anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência” (art. 23 “caput” da lei 14.230/21). Tal dispositivo há que ser aplicado a todos os casos ocorridos na lei anterior. 

Por fim, outra alteração que há de ser observada é que a lei nova, em seu art.12, § 1º, estatuiu o quanto segue, no tocante à penalidade de perda do cargo pelo agente: “§ 1º. A sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste art. (12), atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração”. Outro dispositivo benéfico aos réus de ações de improbidade, por atos cometidos sob a égide da antiga lei.

A exegese defendida pelo presente artigo: Como o Direito Administrativo Sancionador é um autêntico subsistema do Direito Penal, segundo o posicionamento do ínclito Ministro GILMAR MENDES, da Suprema Corte, aplica-se aos dispositivos da Nova Lei, acima tratados, o princípio penal previsto no artigo 5º, inciso XL, da CF/88, em sua totalidade: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, devendo tal primado reger todos os fatos ocorridos sob a égide da antiga lei, tratem-se de processos em andamento aguardando sentença, em que a sentença já tenha sido prolatada ou até mesmo em casos de decisões transitadas em julgado. No dizer de CEZAR ROBERTO BITENCOURT:

“Assim, pode-se resumir o conflito do direito intertemporal no seguinte princípio: o da retroatividade e ultratividade da lei mais benigna. A lei penal mais benéfica, repetindo, não só é retroativa, mas também ultrativa. A eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica, sob o império da qual foi praticado o fato delituoso, deve prevalecer sempre que, havendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legal anterior era mais benéfico ao agente. Esses efeitos retroativo e ultrativo, consagrados pela Constituição, que configurarem lei penal mais benigna, aplicam-se às normas de Direito Penal material, tais como nas hipóteses de reconhecimento de causas extintivas da punibilidade, tipificação de novas condutas, cominação de penas, alteração de regimes de cumprimento de penas, ou qualquer norma penal que, de qualquer modo, agrave a situação jurídico-penal do indiciado, réu ou condenado, conforme já reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal (Ag. 177.313/MG, Rel. Celso de Mello, RTJ 140/514)".6

Assim, questões como a tipicidade da conduta na qual deve estar patente o dolo e dolo específico, sob pena de exclusão do ilícito em si, a forma de calcular a prescrição e a perda do cargo do agente só se for da mesma qualidade e natureza daquele que o infrator detinha à época do cometimento do fato, hão que ser examinadas ou reexaminadas, “ex vi” do art 5º, inciso XL, da CF/88. E nem mesmo o trânsito em julgado pode oferecer barreira à retroatividade de lei mais benéfica7

Por fim, temos acompanhado diversos artigos de renomados juristas no site Migalhas, como A Retroatividade da Nova Lei de Improbidade Administrativa, do dr. FRANCISCO AUGUSTO ZARDO GUEDES, sócio e coordenador de Direito Administrativo do Escritório Professor René Dotti8, e Retroatividade da Norma Jurídica Favorável ao Acusado e a Coisa  Julgada, do dr. HERALDO GARCIA VITTA, Juiz Federal aposentado e ex-promotor de Justiça no Estado de São Paulo9, que nos levaram a profundas meditações sobre o tema.

_________

1 Observemos que o julgamento nesta zeclamação Constitucional, em que foi Relator o eminente Min. GILMAR MENDES, ocorreu em 15 de dezembro de 2020, portanto antes da promulgação e publicação da Nova Lei de Improbidade.

2 COSTA E SILVA, Antônio José da. Comentários ao Código Penal Brasileiro. São Paulo: Contasa, 1967, 2ª ed. rev. e atual., p. 84.

3 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito Penal – Curso Completo. São Paulo: Saraiva, 1999, 5ª ed. rev. e atual., p. 82.

4 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Idem, ibidem. 

5 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Idem, ibidem.

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 2018, 24ª ed., 2ª tiragem, p. 217-218.

7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013, 29ª ed. rev. e atual., p. 50/51.

8 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/357869/a-retroatividadeda-nova-lei-de-improbidade-administrativa.

9 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/361830/retroatividadeda-norma-juridica-ao-acusado-e-a-coisa-julgada.

Carlos Ernani Constantino
Advogado Militante. Promotor de Justiça Aposentado no Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal no curso de graduação da Faculdade de Direito de Franca-SP. Sócio-Coordenador do Escritório "Constantino Advogados". Mestre em Direito Público, pela Unifran-SP.

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