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O transporte aéreo internacional de carga, a convenção de Montreal, a declaração de valor e o ressarcimento: novo paradigma

''Na espécie, em que pese entendimento em sentido contrário, não há que se falar em limitação do valor da indenização ao estabelecido no art. 22, item 3, da Convenção de Montreal.''

18/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Há muito tempo defendo que toda carga tem seu valor declarado nos documentos de transporte, independentemente do frete ad valorem.

Nunca considerei justo o dono da carga pagar algo a mais para ver respeitado seu direito à indenização integral em caso de dano, inadimplemento da obrigação de transporte.

A reparação civil integral é, mais do que princípio-vetor e regra legal, um marco civilizatório. Daí a oposição veemente ao frete ad valorem.

Pagar algo a mais para ver respeitado seu direito não é algo que se alinha ao Direito contemporâneo. Cabe ao transportador indenizar integralmente o dono da carga ainda que tenha recebido o frete normal.

Ao prestador de serviços, devedor de obrigação de resultado, a reparação civil integral é o mínimo que se espera, até mesmo em nome das boas práticas empresariais.

Em que pese minha oposição, a norma é a norma e ela diz que o transportador aéreo responderá de forma integral se houver a declaração especial de valor (com o consequente pagamento de frete maior).

Por isso, considerando que a Convenção de Montreal é a fonte normativa dos casos de transportes aéreos internacionais de cargas, passei a defender que o valor é sempre declarado nos documentos que informam a transação comercial e o transporte, propriamente dito.

Em outras palavras, o transportador sabe o valor da carga que lhe é confiada, sendo irrelevante a declaração especial e, portanto, indevido o recebimento de quantia maior pelo frete.

Situação que ganha outra dimensão quando se considera que a maioria dos pleitos de reparação civil é protagonizada por seguradores sub-rogados.

Normalmente, o dono da carga é protegido por apólice de seguro de transporte. Ocorrido o dano, regulado o sinistro, o segurador o indeniza e, sub-rogado (art. 786 do Código Civil1 e súmula 188 do STF2), busca o ressarcimento em regresso contra o transportador.

Fazendo-o, defende os direitos e interesses do mútuo, isto é, do colégio de segurados, garante a saúde do contrato de seguro, atende parte de sua função social e evita que o causador do dano se veja impune de sua conduta.

Esse segurador não é parte do contrato de transporte e não tem qualquer ingerência em sua dinâmica, sendo-lhe absolutamente alheia a questão do pagamento ou não do frete maior, da declaração especial de valor.

Até se pode dizer que o segurador conhece o fato, porém nada pode fazer. Eventual exigência de sua parte ao segurado configuraria dirigismo contratual (relativa ao seguro de transporte) e, portanto, conduta abusiva.

Também por isso, a importância de se considerar, como a declaração de valor especial, o conteúdo dos documentos que são obrigatoriamente apresentados quando da contratação do transporte.

Muitos desses documentos apresentam o valor de cada carga entregue ao transportador, sendo irrazoável, para se dizer o mínimo, a exigência de algo mais.

A declaração especial que ora se critica não deixa de ser apenas um meio, marcado pelo selo normativo, de se conseguir uma vantagem – que ouso chamar de desordenada – inegavelmente indevida.

Essa declaração especial, desnecessária pela ontologia documental, nada mais do que se exigir do credor da obrigação um substancial tanto a mais de pagamento para que o devedor cumpra o que é básico e fundamental: reparar integralmente o dano causado.

Considerando-se a especial condição do segurador sub-rogado, que sequer pode optar pelo pagamento ou não desse tanto a mais, a tal declaração especial não só é, repita-se, irrazoável como impraticável, impossível mesmo.

Por isso a defesa obstinada do argumento de que a declaração especial, a despeito do pagamento a mais, é evidenciada por todos os documentos que compõem o processo de formalização de transporte aéreo internacional.

Argumento que se mostra ainda mais fortalecido quando o interessado é o segurador sub-rogado.

Para indisfarçada satisfação, a Justiça começa assim a entender.

Resentíssima decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo autoriza ânimo em relação à capilaridade da tese.

A ementa do acórdão proferido pela 24ª Câmara de Direito Privado, na apelação civil nº 1119123-68.2020.8.26.0100, relatoria do Des. Salles Vieira, já é mais do que suficiente para entusiasmar:

“SEGURADORA TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL EXTRAVIO DE MERCADORIAS CONVENÇÃO DE MONTREAL LIMITAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO I- Sentença de parcial procedência Apelo da autora II- Nos termos do entendimento firmado pelo STF, no julgamento do RE nº 636.331/RJ, com repercussão geral, devem ser aplicadas as regras previstas nas Convenções de Varsóvia e Montreal em demandas relativas ao transporte aéreo internacional, seja este de pessoas, bagagens ou carga, que se referem às indenizações por danos materiais Precedente do STJ III - Impossibilidade, na espécie, de limitação do valor da indenização àquele estabelecido no art. 22, item 3, da Convenção de Montreal, uma vez que houve declaração de valor da mercadoria Indenização que deve corresponder ao valor efetivamente pago pela seguradora autora a sua segurada Sentença parcialmente reformada Ação procedente Ônus sucumbenciais carreados à ré, incluídos os honorários recursais - Apelo da autora provido.”

Entusiasma porque, primeiro, reconhece que os documentos do processo de transporte bastam para a configuração da declaração especial, e, depois, porque destaca a condição diferenciada do segurador sub-rogado.

Destaca-se algumas de suas partes:

Prescreve o art. 22, item 3, da Convenção de Montreal:

“Artigo 22 Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga

(...)

3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.”.

Na espécie, em que pese entendimento em sentido contrário, não há que se falar em limitação do valor da indenização ao estabelecido no art. 22, item 3, da Convenção de Montreal.

Isto porque, consoante se extrai dos documentos acostados aos autos, houve declaração de valor da mercadoria, como exigido pelo artigo supratranscrito, uma vez que no documento emitido pelo expedidor ao transportador, denominado “Shipper's Letter of Instruction”, há expressa declaração do valor embarcado.

No referido documento há, ainda, a indicação de que as faturas comerciais, as quais têm valor expresso dos bens transportados, estão a ele anexadas.

A corroborar com tal entendimento estão os artigos 4 e 11 da Convenção de Montreal, a seguir transcritos:

“Artigo 4 Carga

1. No transporte de carga, será expedido um conhecimento aéreo.

2. Qualquer outro meio no qual constem as informações relativas ao transporte que deva ser executado poderá substituir a emissão do conhecimento aéreo. Se outros meios forem utilizados, o transportador entregará ao expedidor, se este último o solicitar, um recibo da carga, que permita a identificação da remessa e o acesso à informação registrada por esses outros meios.

(...)

Artigo 11 Valor Probatório dos Documentos

1. Tanto o conhecimento aéreo como o recibo de carga constituem presunção, salvo prova em contrário, da celebração do contrato, da aceitação da carga e das condições de transporte que contenham.

2. As declarações do conhecimento aéreo ou do recibo de carga relativas ao peso, dimensões e embalagem da carga, assim como ao número de volumes, constituem presunção, salvo prova em contrário, dos dados declarados; as indicações relativas à quantidade, volume e estado da carga não constituem prova contra o transportador, salvo quando este as haja comprovado na presença do expedidor e haja feito constar no conhecimento aéreo ou no recibo de carga, ou que se trate de indicações relativas ao estado aparente da carga.”.

(...)

Assim, a indenização deve corresponder ao valor efetivamente pago pela seguradora autora a sua segurada.”

Objetivamente, o acórdão dispõe antigo anseio de todos aqueles que defendem a razoabilidade, a proporcionalidade e a reparação civil integral, princípios fundamentais e que se conectam com o próprio exercício da cidadania (que também se faz presente nas relações empresariais) e a busca da justiça por meio do Direito.

A decisão em estudo entusiasma, ainda, porque seus fundamentos remetem à outras decisões, indicando possível tendência jurisprudencial. Uma das decisões reproduzidas é esta (ementa):

Recurso – Apelação – Ação de ressarcimento de danos por sub-rogação' Insurgência contra a r. sentença que julgou improcedente a demanda Admissibilidade Hipótese em que restou incontroversa a existência de relação jurídica entre a apelante e a empresa segurada, bem como a contratação da apelada EXPEDITORS para o transporte internacional de cargas, que foram efetivamente transportadas pela apelada CARGO - Improcedência da ação afastada Aplicação das normas da Convenção de Montreal Inteligência do RExtra nº 636331, com repercussão geral, que deu ensejo ao TEMA 210 do STF Apeladas que detém legitimidade para figurar no polo passivo da demanda Pedido de denunciação da lide indeferido Inaplicabilidade dos prazos decadenciais previstos no artigo 754 do CC e artigo 31 da Convenção de Montreal Incontroversa realização do transporte aéreo internacional de cargas, com a participação de ambas as apeladas. Apeladas que possuem responsabilidade objetiva e solidária, na forma dos artigos 749 e 756, ambos do Código Civil e artigo 18 da Convenção de Montreal. Comprovada existência de avarias nas cargas transportadas, que foram indenizadas pela Seguradora apelante que se sub-roga nos direitos da segurada, nos termos do artigo 786 do CC. Inteligência da Súmula 188 do STF Inaplicabilidade das limitações previstas no Pacto de Montreal ante a existência de declaração do valor das mercadorias transportadas Indenização que deve corresponder ao valor comprovadamente pago à segurada, a ser atualizado à partir do efetivo desembolso, e acrescido de juros de mora à partir da citação Sentença reformada para julgar totalmente procedente a ação, nos termos do artigo 487, inciso I, do CPC Condenação das apeladas ao pagamento das verbas sucumbenciais Preliminares arguidas em contestações rejeitadas Recurso provido.” (TJSP; 18ª Câmara de Direito Privado; Apelação Cível nº 1035217-91.2017.8.26.0002; Rel. Roque Antonio Mesquita de Oliveira; julgado em 21/05/2019).

Importante dizer que a decisão também é recente e já inserida no contexto do tema 210 de repercussão geral, cujo Distinguishing tem sido reiteradamente aplicado, de tal modo que aos seus temos não se submetem os transportes de cargas e os seguradores sub-rogados [e, sobre ele, aqui não irei me alongar para não mudar o foco da abordagem e porque já escrevi bastante a respeito, embora certamente ainda mais escreverei em breve].

Pelo teor da decisão reportada, tem-se também devidamente tratados o ressarcimento em regresso integral, o papel diferenciado do segurador sub-rogado, a melhor interpretação da norma da declaração de valor e outros importantes assuntos que colocam em comunicação o Direito do Seguro e o Direito dos Transportes.

Ressalta-se que não se nega em momento algum a incidência da Convenção de Montreal nem seu artigo que dispõe sobre a declaração de valor. Dá-se apenas um sentido maior, mais justo, efetivo, razoável e proporcional, ao conceito de declaração especial, aceitando-se, corretamente, sua presença por meio dos documentos que informam o negócio de transporte.

Sobre a condição especial do segurador sub-rogado, destaco, com letras de fogo, a afirmação veraz do Ilustre Relator, Des. Salles Vieira: Assim, a indenização deve corresponder ao valor efetivamente pago pela seguradora autora a sua segurada.

Em poucas palavras, disse muito. Protegeu a saúde do contrato de seguro e reconheceu sua absoluta autonomia ao de transporte; aplicou o princípio, que também é regra, da reparação civil integral; homenageou o princípio do mutualismo e impôs a cada um o que é seu ao obrigar o causador do dano a reparar integralmente o prejuízo decorrente.

Até porque o direito de regresso do segurador sub-rogado não nasce do contrato de transporte inadimplido, mas do pagamento da indenização à vítima do dano, injusto e terrível que fosse obrigado a se submeter ao que lhe é estranho. Interpretar a afirmação normativa da declaração especial de forma mais ampla é forma inteligente de não prejudicar a busca do reembolso.

É, em últimas palavras, impedir a injustiça da limitação de responsabilidade prevista da Convenção de Montreal com seus próprios termos e normas. Essa Convenção, que bisou a anterior, de Varsóvia é em muitas medidas anacrônica, sem sentido no mundo atual.

Hoje, fala-se em sociedade de riscos, direito a não ser danado e em reparação civil ampla e integral como a mais eficiente proteção às gentes. Diante disso tudo não há mais que se proteger o setor da aviação, como nos primeiros tempos de sua implementação, lá no início do século passado, mas o chamar ao cumprimento de suas responsabilidades. Um setor vigoroso, forte, não pode ser tratado como outro, hipossuficiente. Também por isso é de se aplaudir a decisão.

A primazia da integralidade do ressarcimento é algo que não interessa apenas ao titular de um direito, vítima de um dano, credor insatisfeito, mas à sociedade em geral. Afirmo isso porque acredito que é por meio dele que os causadores de danos são obrigados à reformulação dos seus procedimentos e protocolos de segurança e eficiência. E é também por eles que as vítimas não ficam reféns dos artifícios legais ou do formalismo pelo formalismo.

Limitar o dever de reparação do causador do dano é prejudicar a vítima duas vezes!

_______________

1 Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

2 Enunciado: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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