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O acertado diálogo do STJ com os estandares interamericanos sobre a proteção das pessoas trans

O passo foi dado, e que os tribunais brasileiros agora possuem um precedente histórico em matéria de proteção de pessoas trans, coadunando-se com a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos.

13/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

A violência contra pessoas trans é um desafio a ser enfrentado e superado pelo Estado brasileiro, que tem índices alarmantes: segundo a ANTRA -  Associação Nacional de Travestis e Transexuais, no ano de 2021, foram ao menos 140 assassinatos de pessoas trans1, motivados pelo preconceito que impacta diretamente em direitos fundamentais como vida, liberdade, saúde, trabalho, dentre outras normas essenciais para a dignidade humana.

Ainda que a conjuntura nacional contemporânea esteja marcada pelas políticas excludentes de um governo transfóbico, recente decisão do STJ chamou a atenção pelo ineditismo do feito e o impacto positivo para transexuais que vivem num país machista como o Brasil: a aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans agredidas por seus companheiros.

No dia 5/4/22, a sexta turma do STJ entendeu que a lei contra a violência doméstica deveria ter sua interpretação estendida, de modo que passasse a se aplicar também a mulheres trans vítimas de seus familiares em caso de agressão. No caso em tela, a vítima era uma mulher trans que era recorrentemente agredida por seu pai, que não aceitava que esta se identificasse com gênero diverso de seu nascimento.

O fio condutor da decisão é que a racionalidade da Lei Maria da Penha se impõe contra a discriminação decorrente de gênero, que mulheres trans também vivenciam em sede de violência doméstica. Logo, entenderam os ministros plausível a interpretação abrangente, abarcando esta categoria como objeto de proteção da norma legal.

Cumpre destacar que tal decisão foi acertada, coadunando inclusive com os standards normativos estabelecidos pelo próprio sistema interamericano de direitos humanos, do qual o Brasil faz parte. Aliás, ressalta-se que o surgimento da Lei Maria da Penha encontra seu berço fundador no sistema interamericano, a partir das recomendações feitas ao Estado brasileiro pela CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Durante sua atuação, a CIDH tem alertado os países da região sobre a violência generalizada e focalizada na população LGBTQIA+, em decorrência de suas características como identidade de gênero e orientação sexual. Deste modo, recomendou amparos físico e psicológico para esta parcela da população, objetivando a proteção de sua dignidade e a criação de uma rede de fortalecimento em matéria de proteção de direitos da população em análise.

Em 2019, a CIDH emitiu um Relatório sobre direitos das pessoas LGBTI1 no qual destaca a importância da Lei Maria da Penha como mecanismo de proteção da mulher contra a violência doméstica, mas reconhecendo que tal legislação ainda é precária no tangente à inclusão da identidade de gênero como objeto de proteção da norma, tratando apenas a característica biológica como preponderante na aplicação da lei.

Ainda, no sistema interamericano destaca-se o caso Vicky Hernandez vs Honduras, julgado pela Corte IDH no qual o Estado hondurenho foi condenado por violar a identidade de gênero de Vicky. Restou claro o preconceito contra pessoas trans, apontando a violência como arma de discriminação utilizada pelo Estado. O caso serve como parâmetro normativo para os demais países da região, demonstrando que não é cabível este tipo de violência e que é dever dos Estados-parte a mudança normativa para a proteção de travestis e transexuais.

Destarte, com esta decisão, o STJ atende aos standarts interamericanos de proteção dos direitos humanos, tornando-se uma Corte aberta ao diálogo e demonstrando estar em consenso com os padrões interpretativos pró dignidade humana prolatados pela comissão interamericana. Trata-se de uma decisão acertada, haja vista que os dados apontam que a violência contra pessoas trans, em âmbitos familiares, persiste e é algo a ser combatido, seja por meio da conscientização ou da punição. O STJ passa esta mensagem ao trazer decisão desafiadora em um cenário de preconceitos do Estado brasileiro.

O fato é que o passo foi dado, e que os tribunais brasileiros agora possuem um precedente histórico em matéria de proteção de pessoas trans, coadunando-se com a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos. Todavia, é importante deixar claro que as lutas ainda necessitam avançar, de modo que a população trans seja garantida, de fato, a sua dignidade.

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Relatório disponível em http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/LGBTI-ReconocimientoDerechos2019.pdf

Melina Girardi Fachin
Advogada e professora adjunta dos cursos de graduação e pós graduação da UFPR.

Dilermando Aparecido Borges Martins
Bacharel em Direito e Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG/PR. Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Advogado e Professor de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito Administrativo nas Faculdades FatiFajar e UNOPAR - Ponta Grossa.

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