Migalhas de Peso

Esporte, essencial para a execução penal

A execução penal deve cumprir seu objetivo com a reintegração social, e a prática esportiva, como também contribui para o respeito da dignidade da pessoa humana.

12/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Dia 06 de abril de 2022 comemoramos o dia internacional do esporte para o desenvolvimento e pela paz.

Mas o que isso tem a ver com a Criminologia e com o Direito Penal?

O Direito Penal, em sentido amplo e de maneira muito singela, tem o propósito de apurar fatos criminosos e apresentar resposta penal para o evento. Mas é na execução penal que o efeito “ressocializador” e de reintegração social ganha espaço (artigo 1º da LEP)1.

O esporte e a prática das mais diversas atividades físicas são importante papel do processo de cumprimento de pena, afinal, mantém os corpos normalmente inertes com um pouco de atividade, implementam as relações sociais, sobretudo nos esportes coletivos, que podem, no final das contas, reverter em remição de pena aos praticantes.

Além disso, a Organização das Nações Unidas, quando estabeleceu em 2013 o 6 de abril como dia Internacional do esporte, também ressaltou que sua prática, sobretudo a coletiva, é importante fator para a formação cívica do cidadão, sem contar na promoção de solidariedade e respeito advindo dessas práticas, fatores essenciais que fundamentam o principal objetivo da pena no Direito Contemporâneo: a “ressocialização”.

São muitos os esportes passíveis de serem praticados dentro do cárcere, tantos que não arriscamos mencionar. Os mais comuns certamente são futebol e a capoeira. A capoeira, de seu surgimento até os dias atuais, é uma verdadeira expressão cultural contrária ao poder dominante, afinal, é uma mistura de luta, dança e música, desenvolvida por escravos. Praticavam a luta até que seus algozes os notassem, e então “disfarçavam”, como se dança estivessem praticando, já que nosso Código Penal de 1830, em seu art. 402, tipificava a “capoeiragem” como crime (inclusive com pena em dobro aos “chefe ou cabeças” e considerando como agravante se “o capoeira pertencer a alguma banda ou malta”).

O futebol, não muito distante, é importante movimento social de luta de classes. Certamente dá voz às populações vulneráveis, além de, atualmente, grandes clubes e jogadores promoverem campanhas contra o racismo e homofobia (impossível se esquecer do “Poderia ter sido eu” do Observatório Racial do Esporte, campanha amplamente divulgada por clubes brasileiros na defesa de que é desnecessário um caso midiático para lutar contra o racismo – ressalta que o Brasil assassina uma pessoa preta a cada 23 minutos).

Nesse sentido, é inegável o que o esporte e suas entidades podem proporcionar.

São esportes passíveis de serem praticados com muito pouco ou nenhum investimento. Parte disso se justifica a popularidade dos esportes, inclusive entre os encarcerados.

Embora seja essa a nossa visão, custou até o Poder Judiciário enxergar a mudança. Custa muito, ainda, para o Poder Legislativo enxergar a necessidade dessas práticas.

As práticas esportivas podem somente ser praticadas em locais abertos, em razão da necessidade dos movimentos e espaço, sendo necessário que os aprisionados estejam no período do “banho de sol” ou que tenham autorização da unidade prisional para tanto.

Não raras são as vezes que nos deparamos com casos de unidades que restringem o banho de sol a uma ou meia hora diárias, medida que o STF já declarou inviável. Consoante HC 172.136/SP do STF, o mínimo aceitável consiste em 2 horas de banho de sol diários.2

Na contramão, o projeto de lei 10.825/183, de autoria do deputado delegado Waldir (PSL-GO), visava cercear o banho de sol às pessoas presas, de encontro ao entendimento que vêm sendo construído pelo STF consoante acima explanado e sobretudo às regras 14 e 23 das Regras Mínimas para Tratamento dos Presos no Brasil e Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela), respectivamente, que preveem o tempo mínimo de 1 hora de banho de sol diário aos reclusos.

O projeto de Lei sofreu mutação agora no ano de 2021 para permitir o banho de sol por até 2 horas àqueles que trabalham externamente; ao preso em RDD, o banho de sol por 1 hora, em grupos de até 4 pessoas, vedada comunicação; e, finalmente, para vedar práticas recreativas aos demais presos do sistema penitenciário. Este último é verdadeiramente absurdo e traz a seguinte redação: “O condenado permanecerá na cela o tempo todo, admitindo-se sua saída apenas para o trabalho ou para receber a assistência prevista no art. 11 desta Lei, vedadas as atividades recreativas”.

A despeito do punitivismo comum à prática legislativa, sobretudo advinda do partido que representa o deputado, o Poder Judiciário, pelo Conselho Nacional de Justiça, amplia as possibilidades e abre espaço para mais práticas esportivas.

A Resolução 391 de 10/05/21 do CNJ passou a permitir a concessão de remição de pena por meio de prática sociais educativas não-escolares, assim consideradas:

“atividades de socialização e de educação não-escolar, de autoaprendizagem ou de aprendizagem coletiva, assim entendidas aquelas que ampliam as possibilidades de educação para além das disciplinas escolares, tais como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, dentre outras, de participação voluntária, integradas ao projeto político-pedagógico (PPP) da unidade ou do sistema prisional e executadas por iniciativas autônomas, instituições de ensino públicas ou privadas e pessoas e instituições autorizadas ou conveniadas com o poder público para esse fim”.

Portanto, impulsiona a prática de esportes nas unidades prisionais, tornando possível que o esporte seja implementado nas unidades e que inclusive seja revertido em remição de pena.

Antes da resolução, importante mencionar, o STJ indeferiu pedido para remição de pena ao apenado que frequentou curso de capoeira por entender que não caracterizaria curso de ensino formal, e que não se trata de atividade intelectual.O julgado ocorreu em 2012 e não representa o atual cenário jurídico em relação à remição de pena, que tem se mostrado cada vez mais ampliativo, exatamente para fomentar práticas culturais, sociais, esportivas e intelectuais que auxiliem no processo de reintegração social.

Mais uma vez, cumpre anotar que a execução penal deve cumprir seu objetivo com a reintegração social, e a prática esportiva, como dito alhures, não só é um mecanismo que abraça o espírito coletivo de solidariedade (que, por sua vez, é um dos objetivos principais da execução penal), como também contribui para o respeito da dignidade da pessoa humana, haja vista que, a exemplo do futebol e da capoeira, trata-se de atividades quase que intrínsecas dos brasileiros.

_________

1 Ressalvas próprias da criminologia a respeito da mentalidade “re”, relativas à ressocialização e reintegração social. Sobre as chamas ideologias “re”, imprescindível a leitura de Vera Malaguti Batista e Alvino de Sá. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 45; SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 159.

2 Tema já abordado neste canal outrora. https://canalcienciascriminais.com.br/a-culpa-deve-ser-do-sol/

3 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01sc4d7m249g2z1agyel8k74si1719928.node0?codteor=2102978&filename=Parecer-CSPCCO-10-11-2021

4 CRIMINAL. HABEAS CORPUS. REMIÇÃO DA PENA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO ART. 126 DA LEI DE execução penal. FREQÜÊNCIA EM AULAS DE CURSO DE CAPOEIRA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA. 341/STJ. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE CURSO DE ENSINO FORMAL. INEXISTÊNCIA DE ATIVIDADE INTELECTUAL. ORDEM DENEGADA. I. A Lei de Execuções Penais previu a remição como maneira de abreviar, pelo trabalho, parte do tempo da condenação. II. A interpretação extensiva ou analógica do vocábulo "trabalho", para abarcar também o estudo, longe de afrontar o caput do art. 126 da Lei de execução penal, lhe deu, antes, correta aplicação, considerando-se a necessidade de se ampliar o sentido ou alcance da lei, uma vez que a atividade estudantil, tanto ou mais que a própria atividade laborativa, se adequa perfeitamente à finalidade do instituto. III. Na hipótese, a participação do ora paciente em aulas de capoeira, ainda que contribua para sua ressocialização, não pode ser interpretada como frequência em curso de ensino formal, tendo em vista tratar-se de prática esportiva e não de atividade intelectual, propriamente dita. IV. Ordem denegada. (HC 131.170/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 14/02/12, DJe 24/02/12)

José Flávio Ferrari
Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Pós-Graduando em Execução penal pelo CEI. Professor de Execução Penal. Assessor de Juiz do TJPR.

Caio César Domingues de Almeida
Advogado Criminalista. Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia pelo CEI. Professor de Direito Penal e Processo Penal.

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