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Decadência e aposentadoria por incapacidade

O que teremos será o abuso do Poder Público tentando contornar a dificuldade imposta por uma decadência que ele próprio permitiu se consumasse.

11/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo procura responder à seguinte questão: o aposentado por incapacidade, não tendo sido convocado para exames médicos por décadas, pode alegar decadência do direito de a administração pública realizar uma convocação após a promulgação da EC 103/19?

Com a Emenda 103, o artigo 40, § 1º, inciso I, da Constituição passou a ter a seguinte redação:

Art. 40

§ 1º O servidor abrangido por regime próprio de previdência social será aposentado:

I  -  por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que estiver investido, quando insuscetível de readaptação, hipótese em que será obrigatória a realização de avaliações periódicas para verificação da continuidade das condições que ensejaram a concessão da aposentadoria, na forma de Lei do respectivo ente federativo.

Na ocasião em que foi apresentada a PEC 06/2019, que deu origem à Emenda 103, a equipe econômica do Governo esclareceu que a razão de estar incluindo essa obrigatoriedade no texto constitucional se devia ao fato de que o Poder Público efetivamente não convocava servidores aposentados para realização de exames, apesar da previsão em Lei. Diante dessa constatação da inércia da administração pública, cabe indagar: o aposentado por invalidez (na terminologia passada) que ficou vários anos (possivelmente várias décadas) sem ser convocado para reavaliações médicas, ainda estará sujeito a futuras convocações após a vigência da Emenda 103? Ou poderá invocar em seu favor o instituto jurídico da decadência?

Nossa resposta é afirmativa: é cabível a invocação da decadência. É o que passamos a sustentar.

Primeiramente, cumpre esclarecer que a obrigatoriedade de realização de avaliações periódicas se dirige ao Poder Público. É este que não poderá permanecer inerte, como tem ocorrido. Essa obrigatoriedade não significa, de modo algum, que não haja hipóteses em que o aposentado esteja desobrigado de se submeter às avaliações. Podemos citar o exemplo do aposentado que já atingiu o limite etário para a aposentadoria compulsória: não cabe submeter a exame médico um aposentado por incapacidade que já não pode ter sua aposentadoria revertida, inclusive por mandamento constitucional (artigo 40, § 1º, inciso II). Outro possível exemplo: a obrigatoriedade imposta no texto constitucional não significa que a legislação infraconstitucional não possa conceder isenção, tal como ocorre no Regime Geral de Previdência Social (artigo 101, § 1º, da lei 8.213/91), pois, ao contrário das imunidades, que devem estar expressas na Constituição, a concessão de isenções é própria da Lei ordinária, faculdade que não precisa ser expressamente ressalvada no texto constitucional.

Além disso, o STF tem jurisprudência firme no sentido de que a prescritibilidade é a regra, sendo excepcional a imprescritibilidade (por todos: Recurso Extraordinário 852475, relator ministro Alexandre de Moraes). E quando se afirma que a prescritibilidade é a regra, o termo é empregado em sentido genérico, abrangendo a decadência. Portanto, os institutos jurídicos da decadência e da prescrição somente não incidem onde a própria Constituição repele. Não há na Constituição nenhuma norma que assegure a imprescritibilidade do direito de o Poder Público convocar aposentados para exames médicos, sendo certo que a legislação infraconstitucional previdenciária é expressa quanto à prescrição de todas as pretensões do INSS em relação aos segurados (artigo 103-A da lei 8.213/91), o que sempre foi considerado constitucional. Se o direito é prescritível, pode também estar sujeito a decadência.

Alguém poderá pensar que o artigo 188, § 5º, da lei 8.112/90 estabelece uma “imprescritibilidade infraconstitucional” do direito de o Poder Público convocar aposentados para exames médicos quando bem lhe aprouver. Mas não! Não mesmo! Vamos à redação do dispositivo:

        “Art. 188.

     § 5ºA critério da Administração, o servidor em licença para tratamento de saúde ou aposentado por invalidez poderá ser convocado a qualquer momento, para avaliação das condições que ensejaram o afastamento ou a         aposentadoria.” 

A expressão grifada “a qualquer momento” não significa imprescritibilidade! Não significa que o aposentado por invalidez, que jamais foi convocado em 10, 20 ou 30 anos, possa de repente ser chamado pelo Poder Público. Tal interpretação, além de ser flagrantemente contrária à segurança jurídica, inerente ao Estado Democrático de Direito (Constituição, artigo 1º, caput), fere a dignidade humana, colocando o cidadão à mercê de tiranetes que vez ou outra despontam na administração pública.

Deve-se interpretar aquela expressão com uma ressalva implícita, mas decorrente do sistema jurídico: a Administração pode convocar “a qualquer momento”, desde que não verificada a decadência desse direito. Não pode o Poder Público simplesmente cruzar os braços e, após décadas (talvez vinte ou trinta anos!), invocando uma certa “supremacia do interesse público”, sujeitar o indivíduo à vontade arbitrária dos momentâneos detentores do poder.

Tratando de tema diverso (atos nulos), mas com a mesma expressão aqui examinada, sustenta Edmir Netto de Araújo o seguinte:

… afirmar serem os atos nulos invalidáveis a qualquer tempo, como ocorre na doutrina estrangeira, significa ‘a qualquer tempo’, mas enquanto não prescritas as vias impugnativas internas e externas (o direito positivo superando o princípio geral), ‘pois se os atos já se tornaram inatacáveis pela Administração e pelo Judiciário, não há como pronunciar-se sua nulidade.

(Curso de Direito Administrativo, 8ª ed., 2018. Saraiva. Página 572.)

Outra não é a lição de Marçal Justen Filho, numa passagem nitidamente influenciada pelo jurista italiano Santi Romano (embora não mencionado no texto):

As competências atribuídas à administração pública não são vinculadas a um prazo determinado. Não seria incorreto afirmar que os poderes e direitos da  administração pública são imprescritíveis, utilizando-se a expressão num senso vulgar indicativo de que o decurso do tempo não reduz nem exaure as competências administrativas.

No entanto, os poderes e direitos relacionados a situações concretas e determinadas podem exaurir-se em virtude do tempo. Poder-se-ia estabelecer uma distinção entre competência em abstrato e em concreto.

A competência em abstrato para punir os servidores é inerente à administração pública, mas a ausência de seu exercício, durante o período de tempo determinado em lei, pode conduzir à extinção do poder de promover a punição do agente que praticou alguma irregularidade.

Por isso, a referência à extinção de direito e poderes da administração pública em virtude do decurso do tempo sempre indicará o desaparecimento da possibilidade de exercício da competência no caso concreto, relativamente a uma situação específica e determinada.  (Curso de Direito Administrativo. 12ª edição. 2016. Editora Revista dos Tribunais. Página 1255.)

Se assim é para atos nulos e para punição de infrações disciplinares, com muito maior razão devemos distinguir entre poder em abstrato e exercício desse poder em concreto, também em relação a convocações para exames médicos previdenciários. O poder em abstrato é imprescritível; o exercício desse poder em caso concreto é prescritível, está sujeito a decadência. E o prazo de decadência, a contar do primeiro recebimento do benefício previdenciário por incapacidade, é de dez anos, devendo-se aplicar não o prazo de cinco anos para anulação de atos administrativos (lei 9784/99, artigo 54) mas sim o prazo do Regime Geral previdenciário (lei 8.213/91, artigo 103-A), à falta de um prazo específico no Regime Próprio, por aplicação do artigo 40, § 12, da Constituição. Passados dez anos sem que jamais tenha havido convocação para exames médicos, a Administração não perde o poder abstrato de realizar convocações, porque não o perde em tempo algum; mas não mais poderá exercê-lo em relação àqueles aposentados abrangidos pela decadência (“em concreto”). Se a decadência já se consumou, nada mais resta ao Poder Público senão curvar-se diante de sua própria inércia. Que trate de realizar avaliações médicas nos aposentados que ainda não foram beneficiados por tão longo decurso de tempo.

Vamos agora examinar três possíveis objeções ao que se afirmou até aqui.

A primeira possível objeção se refere à invocação de direito adquirido contra a Constituição. Uma vez que a obrigatoriedade de exames médicos periódicos foi constitucionalizada, ainda é possível falar em direito adquirido? A resposta é simples: claro que é possível! Trata-se de poder constituinte derivado, não originário. Emendas Constitucionais não podem ferir direitos adquiridos, tampouco desconsiderar situações jurídicas já consolidadas, como é o caso de decadência já consumada (Constituição, artigo 60, § 4º, inciso IV). Além disso, a Emenda 103 é expressa quanto à observância do direito adquirido (artigo 3º).

Uma segunda possível objeção: a decadência decorrente da inércia do órgão público de origem pode prejudicar a Unidade Gestora que está sendo criada? Afinal, a inércia não foi da unidade gestora. A resposta é óbvia: a criação de um novo órgão para gerir o sistema previdenciário não pode desrespeitar aquilo que já foi constituído segundo a legislação anterior. Em tal caso, o Poder Público deve ser visto como um só. A nova Unidade Gestora receberá os direitos a serem geridos na forma como já se encontram. Se a decadência já se consumou, cumpre à Unidade Gestora respeitar o direito consolidado. Ela poderá convocar para exames médicos todos os aposentados por incapacidade que ainda não foram beneficiados pela decadência decorrente de inércia do próprio Poder Público.

E uma última possível objeção: a Unidade Gestora nada poderá fazer nos casos de fraudes, comumente noticiadas na imprensa? Por exemplo: um servidor público se aposentou há mais de dez anos por grave doença cardíaca; depois desse longo período de tempo, sem jamais ter sido convocado para reavaliação médica, é flagrado participando de uma prova esportiva, e ainda dá “tchauzinho” para as câmeras. Neste caso não se trata de uma objeção ao que estamos discutindo. O artigo 40 transcrito logo no início deste texto cuida de avaliações “para verificação da continuidade das condições que ensejaram a concessão da aposentadoria” (verificar recuperação da saúde para reversão da aposentadoria). O dispositivo não cuida de fraude previdenciária. Fraude implica em má-fé, o que em princípio afasta a prescritibilidade, como está expresso no artigo 54 da lei 9784/99. O que se busca no artigo 40 da Constituição não é a nulidade do ato de aposentadoria, mas apenas a verificação da possibilidade de reversão; já o efeito de fraude previdenciária é a nulidade do próprio ato originário  de concessão de aposentadoria, inclusive com responsabilização dos envolvidos. Mas aqui é preciso esclarecer algo importante: por se tratar de investigação de fraude, embora não fique impedida a administração pública de agir para apurar o ocorrido (pode não ter havido fraude; o aposentado pode ter realizado um transplante de coração e resolveu participar do evento esportivo com acompanhamento médico; o próprio transplante evidencia que não houve fraude, e portanto a aposentadoria deve ser considerada legal), é importante salientar que o Poder Público não pode simplesmente lançar a rede para ver se vem algum peixe! Se o objetivo é averiguar possível fraude no ato de concessão do benefício, então a Administração já precisa ter elemento seguro que aponte nesse sentido. O Poder Público tem o dever de agir com lealdade, não podendo de modo algum “driblar” dificuldades decorrentes de sua própria inação. É o que ensinam Pedro Roberto Decomain e José Enéas Kovalczuk Filho:

… se a administração previdenciária decidir iniciar processo administrativo tendente a anular ato concessivo de benefício, mais de dez anos após o primeiro pagamento ter sido colocado ao dispor do beneficiário, deve apresentar no mínimo indícios iniciais de que teria havido má-fé dele  na sua obtenção. Ainda assim, neste caso a respectiva comprovação deve ser realizada de modo inquestionável no âmbito do processo administrativo, especialmente se o interessado contestar a respectiva existência. A prova da má-fé, capaz de afastar a existência de prazo decadencial, fica a cargo da Previdência Social, na medida em que dela será o interesse em demonstrar que, no caso, não decaiu de seu direito de anular o ato concessivo do benefício e obter a cessação do respectivo pagamento.

(Benefícios Previdenciários. Comentários à lei 8.213/91: Uma Análise Prática e Conceitual dos Benefícios da Previdência Social no Brasil. Editora LTR. 2014. Página 495.)

Os autores citados tratam do Regime Geral, mas a lição é aplicável também à possível alegação de má-fé no Regime Próprio. Sem que existam fortes indícios iniciais, a máfé será da administração pública. O que teremos será o abuso do Poder Público tentando contornar a dificuldade imposta por uma decadência que ele próprio permitiu se consumasse.

Keuly Leidiane Pereira Teixeira
Advogada em Aparecida de Goiânia.

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