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Compartilhamento obrigatório de segredos industriais e acordo TRIPS: violação ou terrorismo ideológico?

Em meio à pandemia de Covid-19, indústria farmacêutica adota postura extremista e promove terrorismo ideológico como estratégia para evitar a derrubada do Veto 48 no Congresso Nacional.

9/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde setembro do ano passado, o Congresso Nacional tem adiado a importantíssima tarefa de analisar os vetos presidenciais, Veto 48, ao PL 12/21, que deu origem à lei 14.200/21 e alterou significativamente a LPI – Lei da Propriedade Industrial. Como já vem sendo intensamente discutido, os itens vetados desfiguraram consideravelmente a proposta legislativa e fragilizaram bastante a efetividade do licenciamento compulsório de patentes em tempos emergenciais.1

Mesmo às custas da saúde e da vida de milhões de brasileiros e brasileiras, laboratórios farmacêuticos transnacionais e seus prepostos vêm defendendo com afinco a manutenção do Veto 48 e influenciando diretamente a atividade dos parlamentares. Como era de se esperar, esses grupos de interesse têm utilizado de todos os meios para defender suas teses inconsistentes, garantir seu poder político-econômico e maximizar os lucros de seus executivos-chefes.

Em meio a diversas ideias ultrapassadas e posicionamento reconhecidamente frágeis, um argumento tem chamado a atenção. Com o intuito de defender a manutenção dos vetos aos parágrafos 8º, 9º e 10 do art. 71 da LPI, representantes da indústria farmacêutica transnacional e seus simpatizantes têm alertado a sociedade para o que eles consideram ser uma flagrante violação à proteção de segredos industriais.2

Segundo argumentam, o compartilhamento obrigatório de informações e materiais previstos nos dispositivos vetados seria algo “impensável”, violaria diretamente o art. 39 do acordo TRIPS, Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, e, desta forma, sujeitaria o Brasil a graves sanções internacionais!3 Obviamente, não se tem notícia de nenhuma explicação mais aprofundada sobre esse posicionamento, o que já seria suficiente para não levá-lo a sério. No entanto, tendo em vista a importância do tema e das consequências nefastas que esse tipo de terrorismo ideológico pode gerar na realidade, faz-se fundamental um esclarecimento claro e objetivo sobre esse assunto.

1. O segredo industrial não é um direito absoluto e ilimitado

De fato, preenchidos alguns requisitos, o art. 39 do TRIPS prevê a obrigação de os Estados protegerem informações confidenciais de pessoas físicas e jurídicas de práticas concorrenciais desleais. Mas esse não é um dever absoluto e nem ilimitado. O próprio art. 39 (3) do TRIPS prevê, exemplificativamente, exceções a esta regra e não deixa qualquer dúvida: a proteção a segredos industriais está sujeita ao interesse público e se contrapõe apenas ao uso que seja, ao mesmo tempo, comercial e desleal.4

Além disso, embora a própria Constituição Federal reconheça a proteção às informações confidenciais, art. 5º, X, XII e XXIX, ela também prevê explicitamente limitações a este direito, por exemplo, art. 5º, XXIII (função social da propriedade) e XXIX (interesse social, desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento econômico do país).

Desta forma, é fundamental registrar que as hipóteses originalmente propostas pelo PL 12/21 são uma forma explícita de proteger o público em tempos emergenciais e, sob nenhum ângulo, podem ser concebidas como um uso comercial desleal de segredos industriais.

2) O acordo TRIPS não proíbe o uso de segredos industriais sem autorização do titular

Além de não se constituir como um direito absoluto, faz-se necessário deixar bem claro que o compartilhamento obrigatório de segredos industriais não é proibido pelo acordo TRIPS. Apesar de o art. 39 não mencionar expressamente essa possibilidade, ele não proíbe essa prática.5

Nesse sentido, é importante notar que todas as vezes que o acordo TRIPS objetivou proibir o uso não autorizado de um direito de propriedade intelectual, ele o fez de maneira explícita, veja, por exemplo, o caso das marcas, previsto no art. 21 do tratado. Aliás, neste ponto, é fundamental salientar que a tentativa da delegação suíça de proibir explicitamente o uso compulsório de segredos industriais foi prontamente rejeitada no processo de negociação do TRIPS.6

3) Exceções à proteção de informações confidenciais são necessárias e muito comuns

No âmbito internacional, primeiramente, é importante ressaltar o caso histórico da penicilina durante a 2ª Guerra Mundial, no qual o governo dos Estados Unidos obrigou o compartilhamento de patentes e know-how entre empresas e universidades e, com isso, aumentou rapidamente a escala de produção desse importante medicamento durante um momento de crise.7

Além disso, mais recentemente, destaca-se a aprovação da Diretiva 2016/943, do parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, relativa à proteção de know-how e de informações comerciais confidenciais, segredos comerciais, contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais. Considerando o interesse público envolvido no tema, a própria diretiva, em seus art. 1º e 5º, estabelece limites e prevê diversas exceções à proteção de informações confidenciais.

No âmbito nacional, ademais, cabe ressaltar que a exceção mais recente à proteção de informações confidenciais está prevista no art. 71, §11, da LPI, que foi incluído pela própria lei 14.200/21 e não foi vetado pela presidência da República. Segundo este dispositivo, “as instituições públicas que possuírem informações, dados e documentos relacionados com o objeto da patente ou do pedido de patente ficam obrigadas a compartilhar todos os elementos úteis à reprodução do objeto licenciado, não aplicáveis, nesse caso, as normas relativas à proteção de dados nem o disposto no inciso XIV do caput do art. 195 desta lei” (grifo nosso).

Para demonstrar a abundância e a trivialidade desse tipo de exceção em favor do interesse público, ademais, faz-se necessário destacar também o previsto no art. 195, §2º, da própria LPI. De acordo com este texto legal, o crime de concorrência desleal “não se aplica quanto à divulgação por órgão governamental competente para autorizar a comercialização de produto, quando necessário para proteger o público” (grifo nosso).

Por fim, nesse mesmo sentido, destaca-se a previsão dos art. 7º e 8º, da lei  10.603/2002, que disciplinam o uso compulsório de “informações relativas aos resultados de testes ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes como condição para aprovar ou manter o registro para a comercialização de produtos farmacêuticos de uso veterinário, fertilizantes, agrotóxicos seus componentes e afins”.8

4) O acordo TRIPS não deve ser interpretado contrariamente à saúde pública

A partir do que foi exposto até aqui, resta evidente que a narrativa de parte da indústria farmacêutica se pauta por uma tentativa de utilizar o acordo TRIPS unicamente como um instrumento de maximização de ganhos privados, desconsiderando os compromissos com a defesa do interesse público, presentes no próprio acordo. No entanto, não há qualquer dúvida sobre a impossibilidade de se interpretar as disposições do TRIPS contrariamente à saúde pública. Essa é uma preocupação presente em diversos pontos do tratado e não pode ser negligenciada no processo interpretativo.

Logo no início, já no quinto parágrafo do preâmbulo do acordo, os membros deixam explícito que reconhecem “os objetivos básicos de política pública dos sistemas nacionais para a proteção da propriedade intelectual, inclusive os objetivos de desenvolvimento e tecnologia (tradução livre, grifo nosso). Além disso, em seu art. 1, está assegurado o direito de os membros determinarem livremente a forma apropriada de implementar as disposições deste acordo no âmbito de seus respectivos sistema e prática jurídicos (tradução livre, grifo nosso).

Ademais, para não deixar quaisquer dúvidas, no art. 7, está previsto que “a proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações (tradução livre, grifo nosso).

E, complementarmente, no art. 8 (1), está assegurado que “os membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo” (tradução livre, grifo nosso).

Não bastassem as previsões explícitas do acordo TRIPS, no parágrafo 4, da Declaração de Doha sobre o acordo TRIPS e a Saúde Pública, os Estados-membros da OMC reafirmam que “o acordo TRIPS não impede e não deveria impedir que os membros tomem medidas para proteger a saúde pública”. Assim, do mesmo modo que reiteraram seus compromissos com o acordo TRIPS, afirmaram que “o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a implicar apoio ao direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso de todos a medicamentos” (tradução livre, grifo nosso). 

De qualquer modo, mesmo que nenhum desses argumentos fosse acolhido e se admitisse qualquer tipo de ambiguidade na interpretação do art. 39 do TRIPS, restaria a obrigação de interpretar este tratado de acordo com o princípio in dubio mitius, segundo o qual o Estado deveria adotar a opção interpretativa menos onerosa para si e para sua população.

Conclusão

Defender que o direito à proteção de informações confidenciais é absoluto e ilimitado é uma posição extremista e sem qualquer fundamentação jurídica. Trata-se, tão somente, de terrorismo ideológico promovido por países ricos e por grandes empresas transnacionais do setor farmacêutico. Essa não pode ser, portanto, uma razão válida para impedir a derrubada do Veto 48 no Congresso Nacional e o aprimoramento do licenciamento compulsório de patentes no país.

A situação no Brasil é muito séria e todos nós temos a responsabilidade de ajudar o país a sair desta crise. Definitivamente, este não é o momento de gerar confusão e de tentar proteger os lucros a qualquer custo. Mais do que nunca, é fundamental que os parlamentares estejam livres para assumir seu papel histórico, protejam o direito fundamental à saúde e sejam capazes de tomar decisões que salvam vidas. A derrubada do Veto 48 não coloca o Brasil sob nenhum risco, pelo contrário, coloca o país na vanguarda da construção de um modelo mais justo de distribuição de conhecimentos e bens essenciais à saúde.

_____________

1 BASILIO, Ana Luiza. Com vetos de Bolsonaro, quebra de patentes de vacinas não será válida para a pandemia. Carta Capital, Online, 03 set. 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/com-vetos-de-bolsonaro-quebra-de-patentes-de-vacinas-nao-sera-valida-para-a-pandemia/. Acesso em: 22 mar. 2022.

2 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. Congresso retira de pauta o veto sobre licença compulsória de patentes. Migalhas, Online, 21 mar. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/361851/congresso-retira-de-pauta-o-veto-sobre-licenca-compulsoria-de-patentes. Acesso em: 22 mar. 2022.

3 O GLOBO. Para entidade, vetos na Lei de Propriedade Industrial devem ser mantidos. O Globo. Online, 02 dez. 2021. Conteúdo de Marca. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/conteudodemarca/para-entidade-vetos-na-lei-de-propriedade-industrial-devem-ser-mantidos-25303691. Acesso em: 22 mar. 2022.

4 UNCTAD - UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT. ICTSD - International Centre for Trade and Sustainable Development. Resource book on TRIPS and development. New York: Cambridge University Press, 2005. 829 p. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/556860. Acesso em: 22 mar. 2022.

5 GURGULA, Olga; HULL, John. Compulsory licensing of trade secrets: ensuring access to covid-19 vaccines via involuntary technology transfer. Journal of Intellectual Property Law & Practice, [S.L.], v. 16, n. 11, p. 1242-1261, 1 nov. 2021. Oxford University Press (OUP). Disponível em: https://academic.oup.com/jiplp/article/16/11/1242/6446977?searchresult=1. Acesso em: 22 mar. 2022.

6 CARVALHO, Nuno Pires de. Acordo TRIPS comentado. Volume II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 548 p.

7 GARRISON, Christopher. Ensuring that intellectual property rights aren’t a barrier to scaling-up: the remarkable example of penicillin production in the United States during World War II. Medicines Law & Policy, abril 2021. Disponível em: https://medicineslawandpolicy.org/wp-content/uploads/2021/04/Ensuring-IP-rights-arent-a-barrier-to-scaling-up-the-example-of-penicillin.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

8 BARBOSA, Denis Borges. Do sigilo dos testes para registro sanitário. 2009. Disponível em: https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/sigilo_testes_registro_sanitario.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

Felipe Carvalho Borges da Fonseca
Jornalista e mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Susana Rodrigues Cavalcanti Van Der Ploeg
Doutoranda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Alan Rossi Silva
Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).

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