A promulgação da Lei brasileira de prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher (lei 14.192/21) foi recebida com entusiasmo. Ao mesmo tempo, deparou-se com um inevitável receio relativo à insuficiência do alcance da norma quando analisada a complexa realidade de agressões vivenciada por mulheres em todas as dimensões da esfera pública1.
Conforme a Lei vigente, conceitua-se a violência política contra a mulher como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” (art. 3º) e, explicitamente, criminalizam-se abusos cometidos contra candidatas ou detentoras de mandato eletivo. A conceituação é ampla, mas os trechos da Lei que têm típica estrutura normativa, com a previsão de condutas e a atribuição de sanção, são insuficientes.
A norma não é clara, por exemplo, em relação à proteção de mulheres que atuam no espaço público, mas não são, necessariamente, candidatas ou mandatárias. Com efeito, é extremamente relevante que certas expressões, como “instâncias de representação política”, “exercício de funções públicas” e “direitos políticos”, sejam esclarecidas no sentido de explicitar que a proteção normativa não se limita ao contexto político-eleitoral.
Reafirmando tal preocupação, há poucos dias, foi noticiada a agressão sofrida pela advogada e secretária municipal de governo de Limoeiro do Norte, no estado do Ceará, Juliana Lucena, a qual teve o seu nome vinculado a conteúdos de teor obsceno compartilhados na Internet2.
A crescente e aterradora utilização dos espaços virtuais para constranger, humilhar ou ameaçar mulheres tem sido denunciada de modo reiterado3. Em reconhecimento a essa realidade, a própria lei 14.192/21 prevê uma hipótese de aumento de pena para crimes cometidos por meio da internet ou rede social. Contudo, no caso de Juliana Lucena, o fato de não se tratar, oficialmente, de uma candidata poderia nublar a certeza de aplicação da norma protetiva.
O vídeo falso e o ambiente digital foram ferramentas utilizadas para ofender a honra e, sobretudo, minar o exercício do direito político de uma mulher que, além de secretária municipal, é publicamente anunciada como pré-candidata ao cargo de deputada estadual4. Assim, a despeito de ainda não ser oficialmente candidata, o mero marco temporal não impede a verificação da repercussão principal que a agressão visa alcançar: constranger e inviabilizar a continuidade da ação política da vítima. Inclusive porque a atuação política não se restringe ao período eleitoral nem ao exercício de um mandato.
Não é supérfluo que se passe a chamar as formas de abuso pelo nome. Na realidade, o árduo e indispensável processo de desnaturalização da violência política contra as mulheres pressupõe que as agressões sejam chamadas pelo que são.
Ademais, o caso referido é relevante para que se reflita acerca da necessidade de garantir o alcance da legislação e criar medidas de combate à violência política de gênero em todos os âmbitos da vida pública. Afinal, a participação plena das mulheres na política é o caminho para corrigir distorções relacionadas à sub-representação feminina nos espaços de poder.
Se é consenso que os fatos ocorridos fora do período eleitoral são de competência da Justiça Comum – e, não, da Justiça Eleitoral –, é insuficiente que eles sejam tratados apenas como Fake News ou crimes contra a honra, na medida em que o impacto da ação de quem busca retirar uma mulher da vida pública repercute em todas as instituições democráticas.
Do mesmo modo, a criminalização da conduta de ofensa à honra individual não dispensa a aplicação de leis e políticas que visem combater e prevenir as ações que violentam mulheres no exercício de seus direitos políticos.
O caso de agressão à pré-candidata em questão e a todas as pré-candidatas reforça o alerta de que as ações que visam minar a participação política das mulheres não se limitam ao período eleitoral oficial. Ao contrário, o tempo da agressão segue o ritmo próprio do fazer político: contínuo e ininterrupto. As mulheres são alvo de ataques que buscam expurgá-las do espaço público antes, durante e depois das eleições, sejam essas mulheres mandatárias ou não.
Ainda que a Lei preveja a possibilidade de a mulher ser submetida a situações de violência política, não há sanção específica para a situação mencionada. A única margem para isso seria o poder atribuído aos partidos políticos de criarem sanção estatutária, motivo pelo qual deveriam ter adaptado seus estatutos para prever procedimentos específicos para casos de violência política contra a mulher durante todo o exercício temporal da política.
Para um tipo de violência que aparenta não ter limite de tempo ou de forma, a legislação não pode já nascer engessada e restritiva. Faz-se necessário um esforço concreto para que a Lei brasileira forneça instrumentos compatíveis com a gravidade dos atentados experimentados por mulheres ao longo de suas trajetórias públicas.
____________
1 OBSERVATO'RIO DE VIOLE^NCIA POLI'TICA CONTRA A MULHER. Nota Técnica sobre o Projeto de Lei de Combate a` Violência Política contra a mulher (n 5.613/2020). 2021. Disponível em: https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/07/Nota-tecnica-Nova-Lei-VPM-2021.pdf. Acesso em: 28 mar. 2022.
2 SECRETARIA de Limoeiro do Norte denuncia fake news envolvendo seu nome e conteúdo obsceno. O Povo. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2022/03/24/secretaria-de-limoeiro-do-norte-denuncia-fake-news-envolvendo-seu-nome-e-conteudo-obsceno.html. Acesso em: 28 mar. 2022.
3 MARTINS, Fernanda K.; et al. MonitorA: discurso de ódio contra candidatas nas eleições de 2020. Disponível em: https://internetlab.org.br/pt/noticias/internetlab-azmina-discurso-de-odio-contra-candidatas-nas-eleicoes-de-2020/. Acesso em: 28 mar. 2022.
4 SECRETARIA de Limoeiro do Norte é agredida nas redes sociais e tem nome atrelado a pornografia. Opinião. Disponível em: https://www.opiniaoce.com.br/secretaria-de-limoeiro-do-norte-e-agredida-nas-redes-sociais-e-tem-nome-atrelado-a-pornografia/. Acesso em: 28 mar. 2021.