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Penhorabilidade de bens de família de luxo

A proteção legal recai sobre o direito a uma moradia digna, não sobre um imóvel específico e de luxo, permitindo que os devedores que se encontrem nessa situação deixem de se beneficiar pela letra fria da Lei, em detrimento dos seus credores que amargam enormes prejuízos financeiros.

5/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Hoje em dia é comum que credores se deparem com diversas tentativas frustradas de localização de patrimônio dos seus devedores.

Processos de execução que se estendem por anos, sem a localização de nenhum bem penhorável, com contas bancárias vazias, nenhum veículo registrado no Detran e declarações de Imposto de Renda que demonstram uma evidente redução patrimonial ao longo dos anos.

E isso ocorre porque a cada dia que passa os devedores encontram novas ferramentas e meios para a blindagem e ocultação do seu patrimônio, como desvio de bens para holdings patrimoniais, com posterior cessão gratuita das quotas a amigos ou familiares (mas com a manutenção do usufruto, é claro), desvio de faturamento para outra empresa do mesmo ramo (mas em nome de amigos ou familiares), dentre outros tantos meios criativos utilizados para evitar a recuperação do crédito.

Nesse sentido, as medidas tradicionais de recuperação de crédito não são mais suficientes há muito tempo. Até mesmo o aprimoramento da “teimosinha” no Sisbajud, por si só, também não tem se mostrado eficaz para auxiliar os credores na satisfação do seu crédito, principalmente porque a movimentação da conta bancária normalmente é a primeira a ser esvaziada pelos devedores.

De qualquer forma, mesmo com toda uma gama de meios de blindagem à disposição, existe um bem que praticamente nenhum devedor parece se preocupar em ocultar: a sua residência de luxo.

Praticamente todo credor, que já buscou recuperar um crédito de alto valor, alguma vez já se deparou com a situação extremamente peculiar de um devedor que tomou milhões em crédito e que não tem dinheiro em conta, nem veículos, nem quaisquer bens declarados em seu nome, mas que vive em uma verdadeira mansão milionária.

Isso porque, devedores contumazes se sentem confortáveis para manter sua residência de luxo em seu nome, invocando as previsões da lei 8.009/90.

Referida Lei, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, estabelece em seu art. 1º que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida, de qualquer natureza.

Assim, devedores se escondem sob essa proteção legal e continuam vivendo em suas mansões de luxo, sem qualquer receio de que ela venha a responder por suas dívidas milionárias.

Entretanto, tal proteção irrestrita acaba por deturpar o verdadeiro intuito da Lei e criar uma benesse totalmente desarrazoada e desproporcional em favor do devedor.

E diz-se isso porque o objetivo principal da lei 8.009/90 é a proteção da dignidade da pessoa humana e a garantia do mínimo existencial ao indivíduo, preservando-se o direito à moradia.

Isso significa que a Lei busca proteger um conceito amplo, de garantia de uma moradia digna, não de um imóvel propriamente dito.

E a diferenciação entre os conceitos de imóvel e direito à moradia é essencial, sendo plenamente possível resguardar-se tal direito sem blindar totalmente a propriedade do devedor.

Nesse sentido, o que se vislumbra não é o afastamento do direito a uma moradia digna, tampouco desalojar o devedor e deixá-lo sem sua residência. Muito pelo contrário.

O que se vislumbra é adequar a moradia do devedor ao seu novo padrão de vida, à sua nova realidade financeira, como todo e qualquer cidadão que honra com suas obrigações e mantém gastos condizentes com sua receita.

Assim, ao se analisar a proteção da Lei sob o prisma correto do direito a uma moradia digna, não sob o enfoque restrito de um determinado imóvel, e conciliar tal análise à necessidade de se fornecer bens para que o devedor honre com suas dívidas, se chega à conclusão de que é possível sim alienar uma residência de luxo sem, no entanto, violar a lei 8.009/90.

Tal conciliação se concretiza na possibilidade de penhora e alienação do imóvel, com a imediata reserva de uma porcentagem para que o devedor consiga adquirir uma outra moradia digna e que seja condizente com sua nova realidade financeira.

Nesse sentido, parece bastante razoável que o devedor arque com as consequências de suas escolhas, assim como todo cidadão, e se desapegue de um padrão de vida que não condiz com a sua realidade atual.

Deste modo, autorizar a realização da penhora e a venda do bem, resguardando uma parcela do valor (para os devedores adquirirem outra residência) e outra parcela para os credores, seria uma decisão harmoniosa em que se preservaria o direito de moradia do devedor (que é o objetivo principal da lei 8.009/90) e, ao mesmo tempo, permitiria a satisfação, ainda que parcial, do crédito do credor.

Nesse sentido, já é possível identificar julgados1 em que o TJ/SP aplica este entendimento e dispõe que a proteção legal não recai sobre um imóvel específico, mas sobre o direito a uma moradia digna, de forma que a existência de bem de família legal não pode resultar em prejuízo desproporcional ao credor.

Apenas a título de exemplo, cita-se um caso em que se permitiu a penhora e alienação de um imóvel suntuoso de R$ 6,4 milhões, resguardando-se uma parcela do produto para que o devedor adquirisse uma nova moradia, exatamente sob o argumento de que “A vontade do legislador ao instituir o bem de família não era assegurar a moradia neste ou naquele imóvel específico, mas garantir o direito a uma moradia digna, à luz do fundamento da dignidade da pessoa humana.”. Novos casos começam a surgir na jurisprudência2.

Infelizmente, esse entendimento ainda não é majoritário, por falta de aprofundamento dos julgados sobre a real intenção da Lei, nos termos acima expostos.

No entanto, com o passar do tempo e em vista dos precedentes que começam a surgir, o que se espera é que passe a prevalecer o entendimento proposto neste artigo, para que fique claro que a proteção legal recai sobre o direito a uma moradia digna, não sobre um imóvel específico e de luxo, permitindo que os devedores que se encontrem nessa situação deixem de se beneficiar pela letra fria da Lei, em detrimento dos seus credores que amargam enormes prejuízos financeiros.

__________

1 TJSP – 30ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 2074639-28.2018.8.26.0000 – Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti – Julgamento em 20/06/2018; TJSP – 12ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento nº 2007341-87.2016.8.26.0000 – Rel. Des. Castro Figliolia – Julgamento em 09/11/2016; TJSP – 12ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento nº 0015059-48.2011.8.26.0000 – Rel. Des. Jacob Valente – Julgamento em 01/06/2011.

2 TJSP – 12ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento nº 2011061-57.2019.8.26.0000 – Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves – Julgamento em 22/05/2019

Felipe de Moraes Costa
Advogado da área de Insolvência, Reestruturação e Recuperação de Crédito do ASBZ Advogados.

Luca Luz Araujo
Advogado da área de Insolvência, Reestruturação e Recuperação de Crédito do ASBZ Advogados.

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