Migalhas de Peso

A volta ao mundo em 80 dias e a prova indiciária

A clássica obra de Jules Verne apresenta um interessante enredo em que é possível transportá-lo para o processo penal brasileiro e comparar com os riscos da utilização da prova indiciária deficitária.

4/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

1.Introdução

Ao longo dos séculos a palavra escrita tem se apresentado como importante fonte de registro de acontecimentos históricos, da forma de pensar de uma sociedade, descobertas, tratados, reflexões e de criação cultural. Os livros se tornaram grandes veículos difusores de ideias e conceitos, destacando-se, nessa perspectiva, a construção de narrativas de sobrelevado valor por intermédio da literatura.

A literatura permitiu a exposição sensível e artística de importantes momentos históricos e culturais do período em que os seus autores viveram e cuja significação se perpetuou no tempo e alcançou espaço interpretativo em outras áreas, sobretudo no direito. Nesse ponto, prestigiados autores se debruçam sobre os elos entre e a realidade e ficção. Streck e Trindade, 2013, em trabalho de vanguarda sobre o tema, indagam “quanta realidade se encontra nas ficções? E quanta ficção conforma nossa realidade?” É certo, pois, que a literatura e o direito apresentam robusta interconexão, de modo que as narrativas desenvolvidas pela primeira permitem construções e importantes reflexões do fenômeno jurídico e vice-versa.

Nesse panorama, busca-se na requintada obra “A volta ao mundo em 80 dias”, da lavra do escritor francês Jules Verne, elementos que denotam uma forma de agir e pensar, cujas implicações coincidem com ações que são perpetradas hodiernamente no deslinde de persecuções penais. A saga de Phileas Fogg em vencer uma aposta de dar a volta ao mundo em 80 dias é marcada por uma implacável perseguição empreendida pelo detetive Fix, o qual, baseado em determinados indícios, julgou-o como sendo responsável pela prática de vultoso delito patrimonial que havia sido praticado.

Sob esse prisma, assenta-se como escopo do presente ensaio averiguar, à luz da referida obra, os riscos envolvendo a formação de convicções baseadas em juízos pautados de forma exacerbada e desvirtuada pela verossimilhança de indícios.

2. Uma volta ao mundo seguindo indícios

A narrativa proposta por Jules Verne em “A volta ao mundo em 80 dias” se passa no ano de 1872 e se desenvolve em torno do metódico personagem Phileas Fogg. Integrante da alta sociedade britânica, homem de perfil discreto e misterioso, o protagonista, após um almoço no Reform Club em Londres, conversava com outros cavalheiros sobre um roubo que havia sido cometido no Banco da Inglaterra. Diante da subtração da expressiva quantia de cinquenta e cinco mil libras, os presentes debatem sobre como um indivíduo poderia fugir e se refugiar em algum outro país. Surge, então, nesse contexto, a controvérsia sobre em quanto tempo seria possível dar a volta ao mundo. Após ser confrontado sobre a viabilidade de se percorrer o globo em oitenta dias, Phileas Fogg aceita uma aposta no valor de vinte mil libras em realizar tal intento. No entanto, ao iniciar a sua jornada na companhia do seu criado francês Jean Passepartout, o intrépido aventureiro não desconfiava que seria alvo de suspeição como autor do roubo por parte do inspetor de polícia Fix.

Tão logo iniciou sua viagem os jornais ingleses retrataram Phileas Fogg como excêntrico e a história logo logrou grande alcance. Nesse cenário, o detetive Fix, ao comparar uma foto de Phileas Fogg com os traços do criminoso descrito no inquérito, entende possuírem vigorosas semelhanças. Em adição, concluí que o perfil recluso do protagonista e a sua súbita partida sob o pretexto de dar a volta ao mundo seriam elementos indicativos de que se tratava do meliante responsável pelo roubo ao banco e que procurava, assim, despistar a polícia.

Aguardando, então, a emissão de uma ordem de prisão, o detetive parte no encalço de Phileas Fogg. Certo de que estava prestes a resolver o caso, o inspetor londrino acompanha o viajante ao redor do mundo, sempre imbuído da convicção de que pela conjuntura dos indícios se tratava do efetivo autor do crime. Como o próprio Fix afirmou após ser indagado se tinha certeza sobre a identidade de Phileas Fogg: “nós, detetives, temos uma intuição que nos aponta o culpado, quando não o reconhecemos propriamente. Faro é o que é preciso!” (Verne, 2017).

Seguindo, pois, o seu “faro”, o inspetor acompanha Phileas Fogg em Suez, Bombaim, Calcultá, Hong Kong, Yokohama, Xangai, São Francisco, Nova Iorque e Liverpool. Durante todo o percurso apresenta diversas conjecturas para justificar a autoria do crime atribuída a Phileas Fogg. A excentricidade do viajante era um dos pontos centrais que atraía a validade dos demais indícios que considerava. Partia, assim, exclusivamente de um juízo subjetivo para entender que aquele sujeito de hábitos estranhos e perfil misterioso não poderia ser alguém inocente. Sob o receio de manchar sua reputação como investigador afirmou que “iria até o fim do mundo se for preciso” (Verne, 2017). Fix desencadeia uma séria de percalços que atrasam a viagem do metódico e fleumático Phileas Fogg. O ponto máximo de suas ações se deu finalmente com o êxito na prisão do viajante quando ambos chegaram a Liverpool. No entanto, após deter o protagonista é avisado de que o verdadeiro criminoso havia sido preso três dias antes (Verne, 2017).

Felizmente, a despeito de todas as peripécias perpetradas por Fix, Phileas Fogg consegue chegar a tempo em Londres e vencer a aposta que havia realizado.

3. Da fragilidade dos juízos formados precipuamente por indícios

Delineado esse quadro literário, procurou-se demonstrar como a obstinada crença em evidências frágeis pode gerar ações e resultados lesivos.

No campo do direito processual pátrio, emerge como norma estruturante dos indícios o artigo 239 do Código de Processo Penal. Partindo de um raciocínio indutivo-dedutivo, prescreve o preceito legal ser o “indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra”. Nesse aspecto, urge considerar, à luz dos ensinamentos de Júnior, 2020, que, durante a atividade recognitiva dos fatos no processo pelo juiz, os indícios são empregados como um standard probatório reduzido. Vale dizer, possuem carga idônea para fomentar a tomada de decisões incidentais ao processo, porém são insuficientes, isoladamente, a justificar a prolação de um édito condenatório.

Traçadas essas premissas, infere-se que a persecução penal não pode estar amparada em um ciclo vicioso de indícios que não possuem qualquer progressão probatória e, sobretudo, correspondência em elementos produzidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Não se pode subjugar a ação penal à compreensão de indícios fracos e desprovidos de pertinente corroboração, sob o pálio de se estar realizando um juízo solipsista pretensamente indutivo-dedutivo. Nesse ponto, cabe destacar, consoante abalizada lição de Streck, 2013, que “a decisão não pode ser ‘o produto de um conjunto de imperscrutáveis valorações subjetivas, subtraídas de qualquer critério reconhecível ou intersubjetivo”. A persecução demanda a cabal ponderação de provas revestidas de conteúdo valorativo apto a identificar aos fatos e que permita aos seus participantes a construção de juízos dialéticos e não meramente sensoriais.

Não será, pois, a pletora de frágeis e desconexos indícios que implicará na superação de um estágio probatório deficitário. Dostoievski, 1979, em sua renomada obra Crime e Castigo, apregoa, com inquestionável praticidade, que “de cem coelhos, nunca se faz um cavalo; de cem suspeitas nunca se faz uma prova”.

Na obra de Jules Verne pode-se perceber como o detetive Fix, baseado precipuamente em juízos sensoriais e em conjecturas, empreendeu uma implacável perseguição a Phileas Fogg. Sem qualquer rigor investigativo, suas inferências subjetivas o fizeram percorrer o globo buscando confirmar o delito no pretenso criminoso. Em um viés mais amplo, inevitável relembrar o emblemático exemplo de postura precipitada e com resultado catastrófico envolvendo o brasileiro Jean Charles de Menezes. Autoridades britânicas munidas de informações superficiais e em uma reação açodada acabaram por confundir o imigrante brasileiro com um terrorista e ceifar a sua vida.

Com efeito, emprestando a narrativa ao plano processual pátrio, não se pode, igualmente, aquiescer com a perpetuação de persecuções penais que não apresentem um compromisso e rigor com a explicitação de provas de conteúdo translúcido e concatenados. Não se descura, pois, da complexidade de demonstração de certos fatos, sobretudo quando perpetrados no âmbito da macrocriminalidade. No entanto, o ponto nodal que se busca afirmar é a não aceitação de premissas frágeis e isoladas que se ocultam sob a pretensa legitimidade de um raciocínio subjetivo-indutivo. Não são poucos os casos na jurisprudência pátria de ações penais que tramitaram durante anos com base em premissas indiciárias frágeis e terminaram ao final tendo sido reformadas ou até mesmo consolidando situações jurídicas desconexas.

A respeito da necessidade de concretude dos elementos probatórios, disserta Carrara, com inegável propriedade:

Quanto aos indícios, é importantíssimo recordar que não apenas devem ser perfeitos na própria substância, o que quer dizer concludentes na sua relação com o delito em questão, mas devem ainda ser perfeitos na substância da prova, isto é, que cada um deles esteja provado por outros meios, que não o de outro indício. A acumulação das presunções e dos argumentos conjecturais é logicamente viciosa e juridicamente perigosa. (1956)

Outrossim, em uma perspectiva lúdica, o quadro probatório não pode ser um quebra-cabeça, no qual peças são forçadas a encaixar tão somente no afã de completar a imagem. O que não encaixar certamente será um indício frágil, produto de uma atividade isolada, estéril e em dissonância às garantias constitucionais. Na lúcida ponderação de Badaró, 2018, “quem formula a hipótese inicial, busca provas de sua confirmação, e eventualmente reformula a hipótese é o mesmo sujeito que, ao final, encerrará a investigação, com a conclusão sobre os fatos”. Portanto, a atividade processual reclama ordenação, contínua submissão ao crivo do contraditório e ampla defesa e um resultado decorrente de uma profícua construção dialética.

Nesse sentido, Lopes Júnior, 2020, preleciona com maestria a respeito da necessidade de provas concretas para a inflição de um decreto condenatório:

Ninguém pode ser condenado a partir de meros indícios, senão que a presunção de inocência exige prova robusta para um decreto condenatório. Pensar o contrário significa desprezar o sistema de direitos e garantias previstos na Constituição, bem como situar-se na contramão da evolução do processo penal, perfilando-se, lado a lado, com as práticas inquisitórias desenhadas por Eymerich no famoso Directorium Inquisitorium.

Todas essas premissas demonstram como o elemento anímico, isto é, a ânsia em apresentar uma resposta a determinado acontecimento podem gerar resultados extremamente nocivos. O detetive Fix criou em seu imaginário um cenário delitivo baseado em situações superficiais e suposições sobre a pessoa e o agir do protagonista. Ao final, no intuito de confirmar o quadro que havia elaborado, forçou os fatos e discerniu além da realidade.

À vista dessas considerações e à luz dos ditames democráticos apregoados pela Constituição Federal de 1988, a prolação de um decreto condenatório urge a exposição satisfativa de elementos probatórios robustos. O conjunto de progressivos e objetivos indícios, apresentados como elementos iniciais de uma reconstrução lógica e ininterrupta, ratificada por subsequentes provas cabais, consubstanciam requisitos adequados para a conformação da responsabilidade criminal. Caso contrário, o indício precipitado, dotado de carga subjetiva e sensorial, propiciará tão somente resultados lesivos e prejudiciais à ação penal.

4. Considerações finais

A clássica aventura escrita por Jules Verne tem se perpetuado no tempo e povoado o imaginário de gerações. Os caminhos percorridos por Phileas Fogg para completar a volta ao mundo foram marcados por forte oposição por parte do detetive Fix, ao qual se empresta singela alegoria à seara processual penal para contrapor os prementes cuidados que se devem adotar na gestão probatória. A crença precipitada em indícios superficiais levou o inspetor de polícia londrino a igualmente percorrer o mundo em uma sanha punitiva irrefletida.

Em um paralelo ao ordenamento pátrio, propugna-se pela produção e manuseio responsável de elementos sólidos que comprovem a responsabilidade pela prática de fatos delitivos. É certo, não se confunda, que não se ignora as dificuldades que permeiam o desvelar de intricadas atuações criminosas. No entanto, o ponto nevrálgico da questão reside na eliminação de elementos anímicos e sensoriais que não só podem desencadear como influenciar a condução de persecuções penais desprovidas de fundamentos idôneos. Não se pode com base em indícios claudicantes e compreensões solipsistas empreender “voltas ao mundo” e produzir resultados disformes e construídos pela pressão.

Sob os auspícios da Carta Magna de 1988, o processo penal contemporâneo perpassa por uma indissociável construção dialética, na qual inexiste espaço para juízos condenatórios pautados em percepções individualistas representadas, sobretudo, por elementos indiciários isolados e frágeis. Urge, pois, uma leitura que enfrente os fatos em sua integralidade, aquilatando circunstâncias e argumentos com todas as suas nuances, completudes e deficiências a fim de se alcançar um resultado efetivamente justo ao processo e à sociedade.

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*O texto foi publicado no boletim de março deste ano no IBCCRIM.

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Fernando Procópio Palazzo
Advogado. Mestrando em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

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