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Prescrição intercorrente em improbidade administrativa: impossibilidade de analogia com o CPC

A lei 14.230/21 trouxe a figura da prescrição intercorrente ao sistema de improbidade administrativa. Porém, no intuito de afastá-la, há quem tenha emprestado dispositivos inaplicáveis a ações dessa natureza.

31/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente entrou em vigor a lei 14.230/21, que altera a lei 8.429/92, que trata das sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa.

Dentre essas alterações está a que foi inserida no art. 23, § 5º, da lei 8.429/92, que prevê o prazo de quatro para a prescrição intercorrente, a se efetivar conforme os marcos definidos na nova lei: I. ajuizamento da ação; II. publicação da sentença condenatória; III. publicação de decisão ou acórdão de TJ ou TRF que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência; IV. publicação de decisão ou acórdão do STJ que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência; V. publicação de decisão ou acórdão do STF que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência.  

Há muitas ações de improbidade administrativa em curso pelo país, grande parte tramita há anos, muitas delas há décadas. Assim, em razão do interregno entre os marcos interruptivos previsto na nova legislação, muitos foram os pedidos para se reconhecer, de modo retroativo, a ocorrência da prescrição intercorrente.

Ocorre que, na sofreguidão de esvaziar o conteúdo das novas disposições legais, que coloca em simetria o sistema de improbidade com o direito administrativo sancionador e, por conseguinte, com todo uma principiologia que limita o jus puniendi estatal, há quem tem procurado afastar a prescrição intercorrente por meio de uma exegese feita a partir do direito processual civil, mais precisamente com seu art. 921, que trata da prescrição intercorrente em processo de execução.

Contudo, referido dispositivo legal não tem qualquer aderência ao sistema da improbidade administrativa e, por conseguinte, não serve para se racionalizar a questão posta.

Justamente porque envolvem interesses distintos, o ordenamento jurídico trata de forma diferente a prescrição intercorrente em âmbito processual civil daquela que é prevista em orbe de improbidade administrativa.

A regra processual civil de que a prescrição intercorrente somente ocorre quando o transcurso de tempo se dá em razão da inércia do credor está positivada no artigo 921, § 4-A, do Código de Processo Civil, cuja redação é fruto da lei 14.195/21.

Ao ler o referido dispositivo processual é possível constatar que o legislador foi expresso em normatizar que no processo de execução, que trata de interesses privados e do cumprimento de obrigações, não corre prescrição intercorrente desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz.

Todavia, essa condicionante acerca da inércia do credor/autor não consta na Lei de Improbidade Administrativa, onde o legislador limitou-se a fixar os marcos interruptivos de prescrição.

Assim, uma vez que não se presume na lei palavras inúteis, incide no caso a regra segundo a qual “onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, muito menos para adotar óptica que acabe por prejudicar aquele a quem o preceito visa a proteger”.1

Isso significa dizer que, em um primeiro momento, a breve comparação dos textos normativos já seria o suficiente para afastar a aplicação de dispositivos processuais civis para não se reconhecer a prescrição.

Contudo, é preciso ir além e se ressaltar que a inaplicabilidade das normas de direito processual civil ao sistema da improbidade administrativa não decorre apenas da interpretação literal. Isso porque, a interpretação sistemática da norma, mais complexa, também a afasta.

Com efeito, a literatura jurídica pondera que “o processo sistemático é o que considera o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. O sistema jurídico não se compõe de um único sistema normativo, mas de vários, que constituem um conjunto harmônico e interdependente, embora cada qual esteja fixado em seu lugar próprio (...) Deve-se, portanto, comparar o texto normativo, em exame, com outros do mesmo diploma legal ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, pois por umas normas pode-se desvendar o sentido de outras”.2

Conforme se depreende do artigo 1º, § 4º, da lei 8.429/92, o sistema legal acerca da improbidade administrativa é regido pelos princípios do direito administrativo sancionador.

Assim, como já ponderado, a interpretação sistemática da Lei de Improbidade leva a uma conjugação não apenas com o direito administrativo sancionador, mas também com o direito penal, uma vez que todos esses ramos constituem regramentos que limitam o jus puniendi estatal, corolário do Estado Democrático de Direito.

Importante ressaltar que a doutrina adverte que existe uma principiologia do regime jurídico punitivo, que não seria uma particularidade do direito penal. Ou seja, “não se trata, portanto, de princípios de direito penal, mas sim de princípios que regem toda a manifestação do poder punitivo estatal, seja penal ou administrativo”.3

Ainda nessa linha, “o que não pode logicamente negar, pois, é a existência de um mínimo regime sancionador, afeto à própria Teoria Geral do Direito e à noção de função pública, através do qual, independentemente da sanção, penal ou administrativa, reconhecem-se alguns princípios como sendo de cogente aplicação”. 4

E a partir disso ficam ainda mais claras as razões pelas quais se tem por absolutamente inaplicáveis as regras de prescrição intercorrente extraídas do direito processual civil.

Assim, a prescrição intercorrente não deve ser vista pelo restrito horizonte dos interesses privados e disponíveis da parte autora/credora, mas sim dentro de um universo maior, que é a limitação ao direito de punir do estado, onde a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica se amalgamam a princípios gerais de direito, de ordem primária inclusive. 

Não é por outra razão que, em lição que praticamente encerra a discussão, Damásio E. de Jesus bem esclareceu que “a prescrição civil se diferencia da prescrição penal nos seguintes pontos: 1º. a prescrição civil é aquisitiva e extintiva, no sentido de que por ela os direitos são adquiridos e as obrigações, extintas; a prescrição penal é sempre extintiva do poder-dever de punir do estado; 2º a prescrição penal se relaciona com interesses que importam ao direito público, a prescrição civil está relacionada a interesses privados”.5

Nesse contexto, o espelho da prescrição intercorrente em âmbito da improbidade administrativa é sistema previsto pelos art. 109, 110 e 117 do Código Penal, onde, decorrido o lapso previsto, seu reconhecimento é de rigor. Ou seja, pela correspondência sistemática que liga esses ramos do direito, não restam dúvidas que esses são os vetores para a melhor exegese do artigo 23, § 4º, da lei 8.429/92 e consequente aplicação das regras de prescrição intercorrente ao presente caso.

Também é preciso reafirmar que a prescrição é matéria de ordem pública, de modo que voltam-se os olhos ao artigo 23, § 8º, lei 8.429/92, onde há a advertência de que a prescrição intercorrente deverá ser reconhecida de ofício ou por força de manifestação da parte.

Note-se que a lei usa a flexão do verbo “dever” de forma explícita, a afastar a possibilidade de interpretação da norma que vise flexibilizar a aplicação da prescrição. Com efeito, vem a propósito o brocardo latino ensina que in claris cessat interpretativo, até porque “presume-se que o legislador se esmerou em escolher expressões claras e precisas, com a preocupação meditada e firme de ser bem compreendido e fielmente obedecido”.6

E outra consequência da identidade entre os sistemas que limitam o poder punitivo do estado, é a aplicação retroativa da norma.

Com efeito, a prescrição é norma de direito material, o que significa dizer que tem aplicação imediata ex vi do artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

E se a Lei de Improbidade Administrativa está inserida no sistema limitador do jus puniendi do estado, logo, é atraído aos autos o princípio novatio legis in mellius, que consiste na aplicação da lei mais benéfica a fatos passados conforme a garantia prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal.
Especificamente sobre a aplicação retroativa da Lei de Improbidade, o TJ de São Paulo, recentemente, decidiu que “A alteração legislativa retroage para alcançar os fatos aqui discutidos, já que ao sistema de improbidade aplicam-se os princípios do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º da lei 8.429/92, com redação incluída pela lei 14.230/21). 7

Do mesmo modo, também já se decidiu que "Se lei posterior mais benéfica prevê um prazo menor para a prescrição intercorrente da pretensão punitiva, esta norma deve ter aplicação plena mesmo para fatos anteriores ao início de vigência da norma".8

Feitas essas considerações, tem-se que a aplicação da prescrição intercorrente, ainda que de forma retroativa, decorre do próprio sistema jurídico que, como dito, preza pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade, da razoabilidade, da legalidade, da ampla defesa e da duração razoável do processo.

Em outras palavras, espera-se que não se tente fazer do quadrado o redondo para se afastar o que a lei impõe.

___________________________________

1 STF, Ag. Reg. no Recurso Extraordinário n.º 547.900 – MG, Rel. Ministro Marco Aurélio, j. 13.12.2011).

Maria Helena Diniz. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 425-426.

3 Rafael Munhoz de Mello. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 104-105.

Daniel Ferreira. Sanções Administrativas, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 85.

Prescrição Penal, 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 20.

6 Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 91.

(TJSP;  Apelação Cível 1013766-20.2020.8.26.0482; Relator (a): Maria Fernanda de Toledo Rodovalho; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; J. 30/11/2021; Data de Registro: 02/12/2021).

8 (TJSP;  Apelação Cível 1000210-54.2020.8.26.0480; Relator (a): Fernão Borba Franco; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Foro de Presidente Bernardes - Vara Única; Data do Julgamento: 26/06/2020; Data de Registro: 26/06/2020).

Fábio Simas
É advogado e sócio do escritório Valle, Salvat e Simas Sociedade de Advogados.

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