Migalhas de Peso

O sistema prisional brasileiro é mais uma amostra de que a nossa visão de sociedade precisa de uma mudança drástica

De acordo com o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional - órgão do Ministério da Justiça, o total de presos no país, entre janeiro a junho de 2021, era de 673.614 pessoas.

30/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

“O homem é um animal social”, assim dizia Aristóteles. Todavia, apesar de ser inerente à natureza humana, o convívio em sociedade nem sempre é pacífico e harmonioso, de modo que, em determinadas situações, o ordenamento jurídico acaba violado por um indivíduo, o que exige resposta rápida e eficiente por parte do Estado, a fim de restabelecer a paz social.

E a resposta mais extrema para algumas condutas ilícitas é a privação de um dos direitos mais fundamentais da pessoa, qual seja: a liberdade.

Nesta hipótese, o indivíduo é conduzido ao sistema prisional, cujos objetivos basilares são: garantir sua punição, prevenir a prática de novos crimes e promover sua ressocialização.

Embora todas essas diretrizes estejam previstas no ordenamento jurídico brasileiro, com destaque para os arts. 59 do Código Penal e 1º da Lei de Execuções Penais, no terreno dos fatos, a situação é totalmente diversa, pois o condenado não é ressocializado, acaba degradando-se ainda mais, no convívio com os demais presos, tem todo tipo de privilégio, não obstante passe a enfrentar condições que atentam contra a dignidade humana.

De acordo com o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional - órgão do Ministério da Justiça, o total de presos no país, entre janeiro a junho de 2021, era de 673.614 pessoas1, enquanto o número de vagas, em 2020, era de apenas 446,7 mil, segundo dados publicados no painel dinâmico do Ministério da Justiça e incluídos no balanço do Conselho Nacional de Justiça.2

Por conta disso, as unidades prisionais sofrem com superlotação, instalações insalubres e sem qualquer saneamento básico, insegurança, ausência de atendimento médico adequado, inclusive, no contexto da pandemia por covid-19, falta de promoção de medidas socioeducativas destinadas a promover a reintegração do preso à sociedade, falta de oportunidades de trabalho e de estudos e, para agravar, o confinamento de detentos sem a divisão adequada de acordo com o seu grau de periculosidade.

Portanto, o sistema prisional atual é extremamente falho, pois exerce uma punição ineficiente, que apenas contribui para intensificar a marginalização daqueles que já se encontram às margens da sociedade e do sistema legal vigente, sem qualquer possibilidade de recuperação dos presos recuperáveis.  

Neste cenário caótico, o que se vê é a formação e o fortalecimento de organizações criminosas, o aumento da reincidência delitiva, além do retorno do preso à sociedade sem qualquer mecanismo de apoio e de assistência, o que, como dito anteriormente, dificulta sua reinserção no mercado de trabalho, tornando-se mais suscetível a ser cooptado pelo crime.

Ora, nestas circunstâncias alarmantes, é evidente que o sistema prisional brasileiro deve passar por intensa mudança, não apenas estrutural, mas também de paradigmas.

Em resposta a estes anseios, as PPP’s – Parcerias público privadas - têm sido apontadas como uma possível solução.

 Neste modelo, segundo o que constou no relatório anual do DEPEN3, 20/4/20, as construções das unidades prisionais seriam custeadas por empréstimos de longo prazo fornecidos pela iniciativa privada, enquanto a respectiva contraprestação viria por meio do trabalho dos presos, conforme admite o art. 29 da Lei de Execução Penal.

Frise-se que esse sistema não importa na privatização do serviço público penitenciário, disciplina, acompanhamento e fiscalização no cumprimento da pena, tampouco da atividade finalística do servidor penitenciário, art. 83-B da LEP, visto que as funções de direção, de chefia e de coordenação, no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia, continuariam a ser indelegáveis.

A parceria com a iniciativa privada teria como foco maximizar vagas e obter melhorias na prestação de assistência ao preso, sem a necessidade de aprovisionamento de vultosos recursos públicos.  

No país, a primeira experiência de parceria público-privado no sistema prisional foi no complexo prisional Ribeirão das Neves, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte – MG.

A parceria foi firmada com a GPA, uma SPE – Sociedade de propósito específico, a qual se comprometeu, pelo período de 27 anos, a construir, manter e gerir o complexo penal de Ribeirão das Neves. O Estado, embora não participe diretamente da maioria das questões gerenciais, ainda continua a monitorar e fiscalizar o serviço prestado pelos entes privados.

Segundo dados fornecidos no sítio da própria GPA4, no complexo não há superlotação, pois, em uma área total de 66 mil m², existem: cinco unidades, duas de regime fechado e uma em semiaberto; uma célula-mãe, administração, lavanderia, cozinha e almoxarifado central; celas de 12 m² para até quatro presos, fechado, e 18 m² para até seis presos, regime semiaberto; uma escola por unidade com oito salas de aula cada uma; biblioteca; sala de informática; um centro de saúde, atendimento básico e prevenção, equipado com consultórios, médico e dentário,  além de enfermaria e farmácia; seis galpões de trabalho – oficinas.

Nesse complexo, os presos ainda possuem a oportunidade de trabalhar em 13 empresas parceiras, que, atualmente, empregam 410 presos, o que corresponde a 30% dos presos aptos ao trabalho. Já em relação à educação, 53% dos presos aptos ao estudo estão matriculados nas escolas localizadas no complexo. Dos 2.164 presos que participam de atividades educacionais, 474 estão no ensino médio, 140 fazem ensino técnico e outros 30 cursam ensino superior à distância. Tudo conforme as informações divulgadas no sítio da GPA.

Todos estes números são impressionantes, afinal, são muito superiores aos verificados nos sistemas prisionais administrados pelo Poder Público.

De todo modo, em que pesem os avanços inegáveis dessa iniciativa, as parcerias com o setor privado devem ser adotadas com cautela e parcimônia, e o Estado não pode se furtar de sua obrigação de promover uma fiscalização constante, adotando, inclusive, as ações que sejam de sua exclusiva competência, para que interesses particulares não se sobreponham ao público.

No mais, outra iniciativa salutar sobre a matéria partiu do Conselho Nacional de Justiça, que elaborou um relatório completo sobre o sistema prisional, denominado “Sistema prisional brasileiro fora da Constituição – cinco anos depois balanço e projeções a partir do julgamento da ADPF 3475”.

Em uma das etapas do julgamento da mencionada arguição de descumprimento de preceito fundamental 347, o ministro Marco Aurélio Mello, dentre outras medidas, determinou que o governo Federal elaborasse um “plano nacional de três anos para a superação do estado de coisas inconstitucional”.

Nas palavras do ministro: “Há relação de causa e efeito entre atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, atacados nesta ação, e o quadro de transgressão de direitos relatado. O afastamento do estado de inconstitucionalidades, conforme se pretende nesta ação, só é possível mediante mudança significativa do comportamento do Poder Público, considerados atos de natureza normativa, administrativa e judicial. (...) O quadro não é exclusivo desse ou daquele presídio. A situação mostra-se similar em todas as unidades da Federação, devendo ser reconhecida a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro”.

O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal foi um importante passo para o debate técnico e institucional quanto às medidas urgentes e necessárias para o problema do sistema prisional.

Do exposto, depreende-se que o problema no sistema prisional é extremamente complexo e, assim como os demais problemas que assolam a sociedade brasileira, não possui uma solução simples e rápida.

Na realidade, é mais um exemplo de que o nosso modelo de sociedade deve ser revisto, pois a precariedade dos presídios e a superlotação carcerária não têm origem dentro da penitenciária, mas fora dela, em que a ausência de políticas públicas realmente voltadas à educação, saúde, moradia, trabalho, segurança e inclusão social, cria um ambiente de desordem e caos, cuja repressão estatal nunca será suficiente para conter. Os problemas nos presídios somente serão resolvidos por políticas de Estado que efetivamente ataquem as suas reais origens.

Enquanto isso não ocorre, a sociedade enfrenta as consequências, principalmente porque, não havendo vagas suficientes diante da demanda, a política estatal é de liberar o maior número de presos possível, tudo para aliviar a realidade explosiva do sistema.

_____________________________

1Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em: 23/03/2022.

2 “O Sistema Prisional Brasileiro fora da Constituição – 5 anos depois, Balanço e projeções a partir do julgamento da ADPF 347”, disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relato%CC%81rio_ECI_1406.pdf.

3 Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/relatorio-de-acoes-do-governo/1.RelatorioanualDepenverao20.04.2020.pdf. Acessado em: 23/03/2022.

4 Disponível em: https://www.gpappp.com.br/nossos-numeros/. Acessado em: 24/03/2022.

5 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relato%CC%81rio_ECI_1406.pdf. Acessado em: 24/03/2022.

Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.

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