Em 2 de março de 2022, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) anunciou1 a formação da Força Tarefa Kleptocapture (“Clepto-Captura”), um esforço interagências destinado a investigar violações das medidas impostas pelo governo dos Estados Unidos em resposta à invasão russa da Ucrânia. Paralelamente, em 17 de março, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e outros países anunciaram2 a formação de uma Força Tarefa multinacional denominada REPO - Russian Elites, Proxies, and Oligarchs (Elites, Procuradores e Oligarcas Russos”), que inclui o DOJ, para coordenar os esforços internacionais visando a apreensão e o sequestro de bens dos cidadãos russos sancionados, bem como de seus intermediários.
Este artigo busca oferecer orientação acerca do possível risco legal existente para empresas e indivíduos brasileiros que possuam direta ou indiretamente relações comerciais e financeiras com contrapartes russas, fornecendo exemplos dos tipos de casos criminais que estas Forças-Tarefa poderiam perseguir na Justiça americana e oferecendo algumas recomendações com o objetivo de reduzir o risco de que empresas e indivíduos brasileiros figurem como alvo das autoridades americanas e internacionais.
I.A criação de duas Forças-Tarefas (Kleptocapture e REPO) focadas em detectar violações das sanções estabelecidas contra a Rússia.
Embora os detalhes a respeito da Força Tarefa REPO ainda estejam surgindo, o recente anúncio acerca da criação da Força Tarefa Kleptocapture e o histórico de persecuções criminais por parte das autoridades americanas em casos relativamente similares fornecem valiosas informações sobre a estratégia de persecução penal que o DOJ deve adotar na atual crise.
Inicialmente, cumpre ressaltar que o DOJ tem um histórico considerável em processar criminalmente entidades e indivíduos estrangeiros nos tribunais americanos, pela perpetração de violações a sanções internacionais e crimes relacionados à lavagem de dinheiro, quando existente um nexo com os EUA. Este nexo, exemplificativamente, pode ser uma simples transação bancária usando o sistema financeiro americano, ou ainda a realização de pagamentos em dólares americanos.
O DOJ, por exemplo, está processando o Halkbank1, um banco estatal turco, por um suposto esquema destinado a burlar as sanções impostas contra o Irã através da lavagem dos lucros relacionados ao petróleo, ouro e outras commodities iranianas. Como em muitos casos anteriores, o DOJ alega que o Halkbank está sujeito à jurisdição dos EUA porque, dentre outras razões, o banco turco realizou transferências envolvendo milhões de dólares através de contas correspondentes nos EUA.
A Força-Tarefa Kleptocapture buscou unir procuradores com experiência no confisco de bens (asset forfeiture), lavagem de dinheiro e em questões de segurança nacional. Os esforços para combinar essas habilidades se refletem nas ações de confisco de bens civis do DOJ (civil asset forfeiture actions), havidas em 2019 e 2021, contra os navios de transporte marítimo Wise Honest2 e Courageous3. A acusação é de que estes navios de navegação comercial foram usados para transportar ilicitamente carvão e produtos petrolíferos para a Coréia do Norte, violando as sanções dos EUA contra o referido país. Comunicados de imprensa relacionados a ambas as apreensões descrevem o envolvimento da Divisão de Segurança Nacional do DOJ, e a utilização do sistema financeiro americano para a realização de transações em favor dos dois esquemas. Os procuradores da Força Tarefa Kleptocapture podem investigar casos similares de confisco civil visando bens vinculados às pessoas e empresas russas sancionadas, mesmo quando essas não estejam sujeitas à prisão ou extradição.
Reverberando preocupações expressas por outras autoridades americanas, as declarações públicas relacionadas à Força-Tarefa Kleptocapture indicam que ela também investigará indivíduos ou empresas que utilizarem criptomoedas para escapar das sanções americanas. A acusação do cidadão norte-americano Virgil Griffith fornece um roteiro para situações deste tipo. Em 2021, Griffith declarou-se culpado4 de prestar serviços ilegais à Coréia do Norte, em violação às sanções dos EUA. Os promotores do caso argumentaram que a conduta criminosa de Griffith incluiu a participação numa conferência de 2019 em Pyongyang, onde Griffith e outros co-conspiradores forneceram instruções sobre como usar a tecnologia de blockchain e criptomoedas para lavar dinheiro e escapar das sanções.
Ainda, em 11 de março, um funcionário sênior do DOJ advertiu5 que a Força Tarefa Kleptocapture examinará as políticas contra a lavagem de dinheiro vigentes em bancos e outras empresas, incluindo provedores de serviços de ativos virtuais (VASPs – Virtual Asset Service Providers). O DOJ utilizou esse tipo de estratégia na acusação dos executivos da Bitcoin Mercantile Exchange (BitMEX)6, uma bolsa de derivativos de criptomoedas baseada em Seychelles e com sede em Hong Kong, por não manter um programa adequado de compliance para combater a lavagem de dinheiro, em desrespeito à Lei de Segredo Bancário dos EUA (Bank Secrecy Act). Nesse caso, o DOJ alegou que a BitMEX estava sujeita à jurisdição dos EUA com base em suas operações nos EUA, tais como atender clientes sediados nos EUA.
Consistente com outras iniciativas criminais e regulatórias dos EUA, o anúncio da Força Tarefa Kleptocapture do DOJ indica que os investigadores se utilizarão do rastreamento de criptomoedas e de outras sofisticadas técnicas de investigação, em coordenação com o setor privado. A crescente proficiência do governo e das autoridades dos EUA na utilização dessas ferramentas pode ser vislumbrada nos registros públicos7 relacionados às prisões de Ilya Lichtenstein e Heather Morgan com base em alegações de que eles conspiraram para lavar US$ 4,5 bilhões em criptomoedas roubadas em conexão com o hack de 2016 da Bitfinex, uma das maiores exchanges de criptomoedas do mundo. Durante a investigação, um juiz dos EUA proferiu uma decisão8 que constatou que produtos de software privados para o rastreamento de criptomoedas produzem provas confiáveis que podem ser utilizadas em casos criminais.
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