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Stalking: a criminalização branda de um crime grave

Em 2021 foi aprovada e sancionada a lei prevendo os atos de stalking como crime. Ao mesmo tempo que o Estado deu uma resposta para as crescentes denúncias, ele também foi econômico na disposição da sanção penal.

30/3/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Foi sancionada em 31/3/21 a lei n. 14.132/21 que incluiu no Código Penal, mais precisamente em seu art. 147 - A, o crime de stalking. Antes, a atitude de stalkear alguém tinha previsão legal apenas na contravenção penal prevista no art. 65 do decreto-lei 3.688/41, o qual previa a contravenção penal de perturbação à tranquilidade.

De origem inglesa, a palavra stalking pode ser traduzida como “perseguição”. O crime de stalking, como se vê dos vários casos noticiados na mídia, muitas vezes é predecessor de crimes mais graves, como violações à integridade física.

É inegável que a atitude de stalkear, que hoje recebe um tom jocoso – principalmente nas redes sociais -, provoca sérios impactos na vida das vítimas.

É importante asseverar que a nova tipificação legal vem a somar no combate aos crimes cometidos contra mulheres. Como apontam os estudos de Ramidoffe e Triberti (2017, p.33)1, mais de 80% das práticas de stalking são cometidos contra mulheres, e um número significativos destes evolui para crimes mais violentos, como lesões corporais e até mesmo mortes. Complementando o estudo acima destacado, Trindade (2012)2 revela que parcela significativa desses crimes são cometidos por um (ex)-parceiro afetivo da vítima, sendo que estes casos costumam evoluir com mais frequência para crimes mais graves uma vez que o autor conhece profundamente a rotina da vítima.

Não há uma precisão histórica quanto ao surgimento do crime de stalking na história recente da humanidade. O termo se popularizou nas duas últimas décadas, em razão principalmente da expansão da utilização de redes sociais.

Com o advento da tecnologia, que aproximou através da tela de computadores e celulares, pessoas através de todo o mundo, percebeu-se um movimento em que as pessoas renunciaram a certos aspectos de sua vida íntima e privada para se conectarem com as mais diversas pessoas através do globo terrestre, a maioria das quais elas sequer conhecem.

Esse movimento, caracterizado principalmente pela formação de conexões, trouxe uma publicização da vida íntima das pessoas, que abdicaram de uma bela porção de privacidade em suas vidas em trocas de likes e seguidores. Cresceu, com esse movimento, a popularização da vida íntima de pessoas comuns. Apesar disso, o stalking pode ser percebido bem antes desse tempo.

Segundo o Cambridge Dictionary, stalking3 é o crime de ilegalmente perseguir ou observar alguém por um período. Em resumo, seria uma forma de perseguição insistente. Podemos sintetizar a prática deste delito na reiterada e obsessiva perseguição do autor para com a vítima.

É importante frisar que, para análise do tipo penal, é totalmente indiferente a razão pela qual se dá a perseguição, vale dizer, não há “justificativa” para tais atos.

Muito observado por psicólogos e psiquiatras, temos que o stalking costuma se dar principalmente em virtude de sentimentos de amor, ódio, inveja e idolatria do agressor para com a vítima, que pode desenvolver tais sentimentos independente de qualquer atitude por parte desta.

Apesar da definição do crime deste tipo penal estar sempre envolto a uma perseguição insistente, em nenhum momento foi definido um marco temporal que delimitasse o qual o prazo apto a configurar e definir o conceito do núcleo verbal “insistente”.

Um dia, uma semana, um mês ou um ano, qual seria o prazo a partir do qual poderíamos definir seguramente estar diante de tal prática criminosa? Percebe-se que a evolução do conceito ao longo dos tempos levou muito mais em consideração o “grau de perseguição” – por assim dizer – que efetivamente o tempo da ocorrência.

No Brasil, até a sanção da lei 14.132/21, a prática corriqueira do stalking não era concebida penalmente como tipo penal. No entanto, visando suprir as lacunas legais, de acordo com a teoria moderna do Direito Penal, entendia-se que – nestes casos – deveria ser o agente responsabilizado pela contravenção penal contida no art. 65 da Lei de Contravenções Penais4.

Impende destacar que havia uma verdadeira desproporcionalidade entre a prática dos atos de stalking e sanção legal para ele. A pena aplicada até então, de 15 dias a dois meses, na forma de prisão simples, não fazia jus à gravidade e seriedade dos sofrimentos a que a vítima estava exposta durante, e após, a prática delituosa.

A bem da verdade, ainda hoje, mesmo com a tipificação legal da conduta e a aplicação de uma sanção mais grave, a pena imposta está bem aquém da gravidade do crime. Apesar das ressalvas é notório o avanço do debate e da tutela estatal sobre o tema.

O stalking se revela como uma prática de violência, principalmente sob o seu aspecto psicológico, no qual o autor invade repetida e severamente a esfera da vida privada de sua vítima. É normalmente associado à uma perseguição, e ameaças, subsequentes que intimidam e aterrorizam aqueles que as sofrem.

O resultado disso é um dano e/ou abalado psicológico à vítima, que se vê sempre frente aos perigos e ameaças desta perseguição, ainda que não devidamente explicitados. Via de regra o stalking é motivado pelos sentimentos mais variados, que vão desde o amor (doentio) à vingança (embasada no ódio). Algo importante a se destacar é que, principalmente após o advento das redes sociais, o crime analisado extrapolou a vida real, chegando na realidade virtual – onde muitas vezes se configura na criação de perfis fakes para a perseguição e intimidação da vítima.

Apesar do avanço obtido, é inegável afirmar que subsiste o sentimento de que mais poderia ter sido feito. A baixa pena atribuída ao crime revela a timidez com que o Congresso Nacional tratou o tema.

Ao atribuir pena máxima de dois anos ao crime, a lei automaticamente atribuiu a competência do seu julgamento e processamento aos juizados especiais, possibilitando inclusive a aplicação de medidas despenalizadoras.

Importante ressalvar que, mesmo nos casos em que há a majoração da pena, esta ficou no limite de 4 anos, não sendo cabível na espécie a prisão preventiva do acuso. É claro que subsistem as ressalvas quando o crime for praticado em outras circunstâncias (como é o caso da violência doméstica). Mas, mesmo nesses casos, medidas assecuratórias mais enérgicas, como a prisão preventiva, somente são possíveis graças à outras legislações especiais.

Por se tratar de um crime relativamente novo – a lei foi aprovada há um ano, não há ainda estatísticas oficiais consolidadas quanto aos inquéritos e processos em aberto em razão do stalking.

O que existe, no entanto, são dados isolados que revelam, desde já, a gravidade e a necessidade da aplicação de penas mais severas.

Segundo consta de notícia veiculada por portal UOL5, a secretaria de segurança pública do Estado de São Paulo registrou pelo menos 43 denúncias por dia desde a vigência da lei. Os dados são alarmantes e demonstra a realidade de perseguições que as pessoas, em sua maioria mulheres, sofrem rotineiramente em nossa sociedade. É notório que, pelo menos nesse primeiro ano de vigência, os números – e a inefetividade – da lei assustam.O grande problema do crime de stalking é, sem sombra de dúvidas, a prisão e o sofrimento mental que ele provoca na vítima. A perturbação psicológica a que as vítimas estão submetidas trata-se de verdadeiro suplício, que só quem passou por este tipo de situação sabe como é.

Os impactos do stalking na vida das vítimas é considerável e, quando prolongado, pode desencadear o desenvolvimento de transtornos de comportamento. Ainda, conforme noticiado pelo portal UOL, e acima destacado, os números de denúncias feitas desde a vigência da lei impressionam. Pelo menos nesse primeiro momento, as projeções quanto à incidência e abrangência desse crime são preocupantes.

A criminalização do stalking no Brasil ainda é recente, de modo que não há dados e estatísticas suficientes para uma análise pormenorizada da sua abrangência e ocorrência. No entanto, a despeito dessa realidade, esse grave delito passou a receber um tratamento mais severo que o anteriormente dado.

Como é de se esperar com qualquer novidade legislativa, precisaremos de tempo para analisar os impactos das medidas tomadas e o quanto elas realmente são eficazes.

É importante ainda ressaltar que, não se nega que, caso o stalking evolua para algo mais invasivo – como uma lesão corporal ou até mesmo tentativa de homicídio, ele possa ser punido segundo as regras desse outro delito mais gravoso.

O que se pretende, no entanto, é que não haja essa escalada de violência, e que se cesse imediatamente qualquer tipo de coação e perseguição por parte dos autores.

De qualquer forma, um primeiro e importante passo nessa jornada de combate a esses tipos de crime – de violência psicológica – foi dado. Acende-se, com isso, um farol de esperança para as vítimas diárias dessa prática, de que seus algozes poderão ser responsabilizados e elas poderão ter uma “vida normal”. Não é de hoje que a insegurança açoita muitas pessoas, principalmente em se tratando dos grupos mais vulneráveis (crianças, idosos e mulheres).

Demos o primeiro passo no sentido de resguardar os mais vulneráveis, ao defender principalmente a sua integridade psicológica e o seu direito constitucional à liberdade. Que isso seja uma premissa de que, se – e quando necessários -, poderemos avançar ainda mais na luta diária pela defesa dos mais vulneráveis.

_______________

1 RAMIDOFF, Mário Luiz; TRIBERTI, Cesare. Stalking: atos persecutórios obssessivos ou insidiosos. Lei Maria Da Penha (11.340/06), Lei Antibullying (13.185/15) e Reforma Penal. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.

2 TRINDADE, Jorge; Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito, 6ª Edição. Livraria do Advogado, 2012.

3 Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/stalking

4 Decreto-Lei n. 3.688/41 – Lei das Contravenções Penais

5 Disponível em https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/02/18/stalking-crime-virtual-ja-contabiliza-mais-de-13-mil-casos-no-estado-de-sp.htm, acessado em 26 de março de 2022

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira
Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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