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Falsas memórias: os perigos da palavra da vítima em crimes contra dignidade sexual

O presente trabalho tem como objetivo identificar o entendimento majoritário da doutrina no que tange nos riscos da condenação do acusado baseada na palavra da vítima em crimes contra dignidade sexual, dada algumas contaminações.

29/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A discussão sobre as falsas memórias é muito recente no Brasil. Na verdade poucos juristas dão atenção a essa prática, uma vez que temem interdisciplinaridade do Direito com conhecimentos psicológicos.

Antes de entrar no mérito conceitual da falsas memórias, temos que desmitificar um pensamento errôneo que temos sobre o mecanismo de nossas memórias, para isso Damásio (2012, p. 105 – 106), traz um fator importantíssimo para entendermos melhor como funciona esse mecanismo:

As imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias polaroid de pessoas, objetos, paisagens; nem armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com “deixas” ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a vida. Em resumo, não parecem existir imagens de qualquer coisa que seja permanentemente retida, mesmo em miniatura, em microfichas, microfilmes ou outro tipo de cópias. Dada a enorme quantidade de conhecimento que adquirimos durante a vida, qualquer tipo de armazenamento fac-similar colocaria provavelmente problemas insuperáveis de capacidade. Se o cérebro fosse como uma biblioteca convencional, esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas bibliotecas. Além disso, o armazenamento fac-similar coloca também problemas difíceis de eficiência do acesso à informação.

O conceito da falsa memória foi sendo construído desde o final do século XIX, e início do século XX, a partir de pesquisas pioneiras realizadas em alguns países europeus.

Dado a frequência de crianças prestando depoimento perante os tribunais, em virtude do aumento de crimes de abusos sexuais contra vulnerável, foi que impulsionou pesquisas cientificas sobre as falsas memórias. Tendo como objetivo entender o que passava na cabeça das crianças e buscando entender o funcionamento da memória infantil, assim como, os tipos de erros aos quais as crianças são mais suscetíveis.

No início do século XX, a teoria da falsa memória da percepção de um erro de memória, passou a ser estudado por Freud, como bem explica Stein (2011, p.21).

Segundo essa teoria, as memorias de eventos traumáticos da infância seriam esquecidas (isto é, reprimidas), podendo emergir em alguns momentos da vida adulta, através de sonhos ou sintomas psicopatológicos. No entanto, Freud abandona a ideia de que as memorias para eventos traumáticos seriam necessariamente verdadeiras. Em uma carta a Filiess, em 21 de setembro de 1897, Freud descreve sua descoberta de que as lembranças de suas pacientes poderiam ser recordações não de um evento, mas de um desejo primitivo ou de uma fantasia da infância e, portanto, seriam falsas recordações (Masson, 1986).

Ressalta-se que, a falsa memória não são mentiras, pois elas são semelhantes a uma memória verdadeira. Elas apenas se diferenciam pelo fato das falsas memórias, seja no todo ou em partes, por fatos não verídicos (verdadeiros). Por conseguinte, nada mais seria que uma recordação de informações falsas, sejam elas internas (produzidas pela própria pessoa) ou externa (implementada por um terceiro), que o indivíduo passa recordar como verdade fosse.

A grande diferença entre a falsa memória e a mentira, é que na primeira o agente acredita solenemente (verdadeiramente) no que está relatando, seja por influência de sugestão externa ou interna (ainda que inconsciente), chegando até sofrer por isso. Quando a segunda, é um ato consciente do agente, tendo ele noção dos fatos caluniosos que está criando com intuito de manipulação.

Margraf (2018, p. 100), nos apresenta um exemplo prático e palpável para compreendermos melhor a falsa memória:

(...) situação corriqueira é olhar para determinada pessoa e acreditar que a conhece ou que já teve algum contato anterior com mesma, surgindo a famosa pergunta: “nos conhecemos de onde?” Acreditar que indeterminada pessoa tenha tido alguma forma de contato anterior se trata da mais tradicional falsa memória, uma vez que meras características físicas fazem com a própria pessoa acredite conhecê-la de outro lugar.

A informação enganosa seja interna ou externa, tem a capacidade de criar uma memória falsa, qual tem capacidade de afetar toda nossas recordações, como se fosse um vírus que infecta toda nossas memórias, fato esse que pode ocorrer através de uma pergunta sugestiva no decorrer de um interrogatório, quando lemos um jornal ou assistimos diversas notícias sobre um fato ou um determinado evento que tenhamos participado ou experimentado.

As crianças, são um dos terrenos mais férteis para implantação da falsa memória, sendo mais vulneráveis á sugestão. Elas são mais tendenciosas a corresponder às expectativas do que deveria acontecer, por exemplo, não decepcionar aqueles que o interrogam, pois depositaram uma confiança nelas. Dificilmente dirão que não sabe a resposta e tende a mudar suas respostas com intuito de agradar o adulto que está entrevistando, já que não são acostumadas a prestar depoimento sobre sua experiência vivificada.

Nos casos envolvendo crianças, as genitoras acabam se tornando as possíveis criadoras e estimuladoras da falsa memória na cabeça da criança, muita das vezes, com intuito de prejudicar a imagem de outro consorte para justificar uma alienação parental. Acusações feitas de forma sugestiva, difamando seu genitor, fazendo com que a criança passa a ter sentimentos repulsivos pelo genitor.

No âmbito do processo penal esses depoimentos estão sendo analisados com uma extrema relevância probatória, pode trazer o convencimento ao juiz e assim levantando questionamentos, especialmente perante aqueles que já se demonstram mais tendenciosos, como explica Schacter (2003, p. 143).

Perguntas tendenciosas podem levar testemunhas a fazerem identificações erradas; técnicas terapêuticas sugestivas podem ajudar a criar falsas lembranças e interrogatórios agressivos de crianças pequenas podem resultar em lembranças distorcidas de supostos abusos por professores e adultos. As consequências para os indivíduos envolvidos em casos como esses são muito sérias e, portanto, a compreensão e o combate a sugestionabilidade são importantes tanto para evitar problemas sociais e jurídicos quanto para o avanço da teoria psicológica.

Deve-se buscar medidas que reduzem os danos, desmistificando essa cultura da prova testemunhal, encontrando meios técnicos que não sejam indutivos nos interrogatórios, utilizar técnicas mais especificas para interrogar vítimas menos de idade que sofrem/sofreram abusos sexuais.

Desse modo, foi criado o Depoimento Sem Danos como uma solução cabal para amenizar essas influencias, principalmente nas crianças. Para se obter sucesso nas entrevistas sem danos, o profissional deve ser qualificado, de certo modo, saber formular as perguntas sem afetar a veracidade dos fatos, já que tais técnicas poderão se fazer perceber lacunas de memórias ou certos danos de contaminações nas respostas por um induzimento das perguntas.

Os tribunais estão desenvolvendo um meio de combater a acusação com base em uma possível falsa memória, através do Depoimento Sem Dano, técnica esta que a Sétima Turma do TJ/RS decidiu por meio da Apelação Criminal: ACR 700757063984 RS, que:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DEPOIMENTO DA VÍTIMA. TÉCNICAS DE AFERIÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS SUAS DECLARAÇÕES. falsas memórias. MATERIALIDADE E AUTORIA. Não prevalece a alegação de insuficiência de provas relativamente à materialidade e autoria do crime de estupro de vulnerável, tendo em vista o robusto conjunto probatório coligido, de onde se destaca, em particular, os relatos da vítima e de seu irmão. No que toca às declarações da vítima, constata-se que o depoimento prestado em juízo e aquele dado durante a investigação preliminar, mais especificamente na perícia psiquiátrica, são coerentes, harmônicos e ausentes de vícios entre si. No caso dos autos, não obstante teórica e potencialmente presentes as causas mais comuns para a criação (ou potencialização) de falsas memórias, sejam elas espontâneas - internas ao sujeito - ou sugeridas - externas ao sujeito -, como a) a não utilização da melhor técnica, em juízo, para colher o depoimento da vítima, tendo, inclusive, a entrevistadora incorridos nos erros mais comuns neste tipo de entrevista (depoimento sem danos), como a elaboração de perguntas fechadas, bem como sugestivas/confirmatórias, e a interrupção da vítima no momento em que ela está falando; b) o considerável lapso temporal existente entre o fato e o depoimento da vítima em juízo, o qual oportuniza falsas memórias; c) a revitimização da vítima quando provocada a prestar depoimentos sucessivamente, o qual, além de aumentar as chances de contaminação dos relatos com falsas memórias, é lhe prejudicial emocionalmente, verifica-se 35 que o relato da vítima está em consonância com aquele prestado na perícia psiquiátrica, a qual ocorreu logo após o fato e com a melhor técnica, qual seja, a entrevista cognitiva. Para fins de inquirição da vítima/testemunha, ainda mais quando se trata de crimes sexuais, deve-se utilizar a Entrevista Cognitiva como técnica, a qual maximiza a quantidade e a precisão das informações dada pelo entrevistado. Tal técnica, que possui cinco etapas, tem como principais características a informalidade da entrevista, o entrevistado no controle da entrevista, a narrativa livre do entrevistado, sem interrupções, evitando-se a perguntas fechadas/confirmatórias/sugestivas. TENTATIVA RECONHECIDA. Situação que recomenda o reconhecimento da forma tentada do crime, porquanto evidenciado pela prova testemunhal colhida que o réu percorreu parte do iter criminis do estupro de vulnerável, não consumando seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade. DESCLASSIFICAÇÃO DO FATO. Não prospera o pedido de desclassificação do fato em razão da ausência de prova documental da idade da vítima, que facilmente se verifica pelo depoimento dela, gravado em vídeo, que ela possuía à época do fato menos de 14 anos de idade. APELAÇÃO PROVIDA, EM PARTE. (Apelação Crime 70057063984, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 15/05/2014).

(TJ-RS - ACR: 70057063984 RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Data de Julgamento: 15/05/14, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 01/07/14).

 Nesse sentido Giacomolli e Di Gesu (2010, p.23), apresentam outras diversas possibilidades e mecanismos na qual se pode fazer com que a instituição venha colher depoimento da vítima sem causar dano a situação concreta, não havendo influência, sendo elas:

a) a colheita dos depoimentos em um prazo razoável, objetivando a diminuição da influência do tempo (esquecimento) na memória; b) a adoção de técnicas de interrogatório e da entrevista cognitivas, com o intuito de obter informações quantitativas e qualitativamente superiores as das entrevistas tradicionais, altamente sugestivas; c) a gravação das entrevistas, permitindo ao julgador de segunda instância, o conhecimento do modo como os questionamentos foram elaborados, bem como as reações dos entrevistados; d) a realização das perguntas pelas partes após o relato livre do entrevistado (vítima ou testemunha), complementando, o magistrado, ulteriormente, os questionamentos; e) a inutilizabilidade dos relatos (depoimentos) contaminados direta e indiretamente; f) a formação multidisciplinar dos profissionais encarregados da realização das inquirições, com atualizações constantes; g) a exploração de outras hipóteses, diversas da acusatória, por parte do entrevistador, fazendo-se uma abordagem de outros aspectos ofertados pela vítima ou pelas testemunhas, por ocasião dos depoimentos. Primeiramente, trabalhar com a ideia do que seria prazo razoável parece bastante movediça. O conteúdo dependerá sempre de um referencial, dificultando de forma determinante a aplicação.

As falsas memórias, podem ser criadas também por pessoas que sofreu algum tipo de traumatismo ou lapso de memória durante sua infância. Entretanto, as crianças são mais vulneráveis as sugestões por terceiros, elas têm tendência de querer corresponder às expectativas do que lhe é esperado.

O depoimento da vítima em crimes cuja características são o acontecimento em meio a clandestinidade (no oculto), longe de qualquer testemunha e muitas das vezes, por motivo de demora para denunciação, acaba não existindo mais vestígios para comprovar a veracidade do delito. Deve sim, ter um valor relevantíssimo, já que a vítima é a única prova que aquele fato existiu. Sendo um fator humanizado do processo penal perante a vítima, não devendo ser abandonada. Entretanto, deve ser estudado com mais cautela para desenvolver uma nova tecnologia que seja capaz de reduzir os danos decorrentes da baixa qualidade da prova produzida atualmente, onde deixam diversas lacunas que possibilitam a sugestão e assim, a criação de uma falsa memória.

O assunto das falsas memórias no Direito brasileiro, tem muito que ser explorado ainda, uma vez que a discussão é recente e muito tardia em comparação com a psicologia. Deve trazer para o âmbito do Direito a psicologia mais do que nunca, fazendo essa interdisciplinaridade para conseguirmos entender melhor a mente das vítimas de crimes brutalmente cometidos contra a dignidade sexual, para que possamos agir com justiça e não com achismo, assim como está sendo feito nas mais diversas vezes pelo nosso Poder Judiciário, condenando pessoas inocentes fazendo com que elas venham passar tempos no presidio sofrendo diversos abusos até que consiga, de fato, provar sua inocência.

 ____________

MARGRAF, Priscila de Oliveira e MARGRAF, Alencar Frederico, 22ª edição, Curitiba: Juruá Editora, 2018.

DAMÁSIO, António R. O erro de descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Cia das Letras, 2012.

STEIN, Lilian Milnitsky. falsas memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010.

LOPES, J.A.C. L. Direito processual penal, 17ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

SCHACTER, Daniel. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. New York: Houghton Mifflin Company, 2001.

GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010.

TJRS. APELAÇÃO CRIMINAL: ACR 70057063984 RS. Relator José Conrado Kurtz de Souza. DJ: 15/05/2014. JUSBRASIL, 2014.

Edson Almeida Filho
Advogado criminalista. Graduado pela Universidade Tuiuti do Paraná. Membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR e Membro do Grupo de Estudo Massimo Pavarini: Direito Penal e Criminologia.

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