Na Antiguidade e na Idade Média, a prisão era geralmente utilizada para guardar o acusado até o julgamento visto que as penas então existentes eram corporais com terríveis suplícios. Somente na Modernidade, com as ideias iluministas que irão combater a tortura, a pena de morte e outras penas cruéis e degradantes, assumirá o papel de pena privativa de liberdade.
Nesse contexto, merece ser mencionado um pequeno livro intitulado “Dos Delitos e das Penas”, do italiano Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, publicado em 1764. Com essa obra, ele desafiou a mentalidade e as instituições da sua época, combatendo a crueldade das penas e a irracionalidade do sistema punitivo, exercendo grande influência nos pensadores e nas legislações criminais modernas.
Ao longo dos anos, a prisão fracassou completamente nos seus objetivos de prevenção do crime e ressocialização do criminoso, restando hoje apenas o seu caráter retributivo ou de vingança. Segundo a fórmula clássica, deve-se combater o mal do crime com o mal da pena, pouco importando se este excede aquele em crueldade e sofrimento.
Michel Foucault pôs abaixo esse castelo de ilusões, de uma vez por todas, revelando a verdadeira função da pena de prisão, ao escrever que: “Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade”1.
Em virtude desse fracasso, diversos criminólogos críticos, a partir da década de 60 do século passado, já contemplavam no horizonte de suas formulações teóricas o fim da prisão com suas conhecidas mazelas. Afirmavam convictos que “a história da prisão é a história da sua abolição”, alimentando assim a esperança de um mundo sem cárcere.
Não se podia mais ignorar o fato de que nosso sistema prisional constituía, na verdade, autêntico fator criminógeno que incrementava a violência a pretexto de combatê-la. E não havia qualquer perspectiva de solução porque o problema da prisão é a própria prisão, como escreveu o notável penalista Heleno Claudio Fragoso:
Reconhece-se hoje a falência da prisão, e conviria falar em termos claros. Não há tratamento possível no meio carcerário. O problema da prisão é a própria prisão. A prisão representa um trágico equívoco histórico, constituindo a expressão mais característica do vigente sistema de justiça criminal. Validamente só é possível pleitear que ela seja reservada exclusivamente para os casos em que não houver, no momento, outra solução. Cumpre tirar urgentemente da prisão os delinquentes não perigosos e assegurar, aos que lá ficarem, que sejam tratados como seres humanos, com todos os direitos que não foram atingidos pela perda da liberdade.2
Na mesma época em que era possível prever a sua completa abolição, a prisão ressurgiu com toda força, sobretudo a partir da política americana de guerra às drogas que logo foi exportada para a América Latina, cujas veias continuam abertas e jorrando sangue por todos os lados, reproduzindo um discurso que ainda predomina em nossa política de segurança pública.
Essa política irracional resultou no fenômeno do encarceramento em massa, cujas consequências podem ser observadas até hoje. Se no início dos anos 90 havia pouco mais de 90.000 pessoas privadas de liberdade no país, hoje existem 755.274 presos, dos quais 30,43% são provisórios, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de dezembro de 2019, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Com isso, o Brasil passou a ostentar a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. E nada indica que essa situação irá melhorar nos próximos anos, considerando as mudanças na legislação penal brasileira produzidas pela lei 13.964/19, intitulada Lei Anticrime, com sua proposta encarceradora, e o punitivismo crescente no país.
Como consequência do grande encarceramento verificado nas últimas décadas, deu-se o aumento da criminalidade violenta que assusta a sociedade gerando medo e insegurança. Nessa situação crítica, logo aparecem os fanáticos da repressão penal receitando velhos remédios sem qualquer eficácia – aumento de penas, endurecimento de regimes prisionais e construção de novos presídios.
O Brasil está entre os países mais violentos do mundo. São pelo menos 130 homicídios cometidos por dia. A violência policial e a falência do sistema prisional contribuem para esse estado de crise. A reincidência criminal e as condições desumanas das prisões também constituem fatores preocupantes. Segundo o relatório do Ipea divulgado em 2015, a taxa de reincidência, calculada pela média ponderada, é de 24,4%.
Esse alto índice de reincidência demonstra a completa ineficácia do cárcere, assim como o mito da ressocialização do condenado. Num paradoxo, pretende-se reeducar ou ressocializar o indivíduo retirando-o da sociedade e jogando-o numa cela imunda que não serve nem para bicho. Como escreveu Louk Housman, professor de Direito Penal da Universidade de Louvain, na Bélgica: “O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a ordem social na qual se pretende reintroduzi-lo”3.
A prisão jamais cumpriu e jamais cumprirá os seus objetivos de prevenção e ressocialização, servindo apenas como instrumento de castigo e gestão dos indesejáveis. Além de não recuperar o criminoso, que nesse ambiente encontra todas as condições para se especializar cada vez mais na criminalidade, contribui para o aumento da violência.
A Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal reconheceu expressamente o efeito criminógeno da prisão nos seguintes termos: “Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere (...)”.
Não obstante essa valiosa advertência, que foi esquecida pelos nossos juízes e legisladores, nada foi feito nesse sentido, de modo que temos que conviver com o encarceramento massivo de pobres, negros e favelados e com o consequente aumento da criminalidade. Segundo dados do Infopen, 64% dos presos são negros, revelando assim a verdadeira clientela do nosso sistema penal.
A prisão chegou ao novo século preservando suas características medievais. O drama dos presos continua sendo as precárias condições do ambiente prisional e o total desrespeito aos seus direitos e à sua dignidade humana. Cezar Peluso, ex-ministro do STF, chamou nossas prisões de “masmorras medievais”. O Papa Francisco comparou as prisões aos campos de concentração nazistas: “Hoje existem homens e mulheres em prisões superlotadas: vivem como animais! O que vimos ali setenta anos atrás, hoje acontece a mesma coisa”.
No sistema prisional brasileiro, é comum a ocorrência de tortura e maus-tratos, como afirma o Relatório Anual 2015/2016 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura:
As prisões brasileiras têm um perfil violador de direitos humanos. Incapaz de garantir um retorno digno da pessoa privada de liberdade ao mundo livre. A tortura e os maus-tratos foram observados como práticas sistemáticas nas unidades de privação de liberdade, estando fortemente enraizadas no cotidiano de tais estabelecimentos.
Mesmo com todos os avanços em diversas áreas, ainda não conseguimos abandonar a prisão como principal resposta ao delito. Muitos acreditam que é a melhor forma de combater a criminalidade, apesar de violenta e contraproducente. Na verdade, o cárcere não é solução para a violência dos nossos dias, mas parte do problema e sobrevive com uma extraordinária capacidade de produção de dor. Os crimes resultantes da prisão são piores que aqueles que pretende combater.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu que o planeta passa por uma crise aguda da indústria de remoção do refugo humano. Segundo ele, “Enquanto a produção de refugo humano prossegue inquebrantável e atinge novos ápices, o planeta passa rapidamente a precisar de locais de despejo e de ferramentas para a reciclagem do lixo”4.
A prisão cumpre perfeitamente esse papel de local de despejo de pobres e negros excluídos pela sociedade que os atira num cárcere que não recupera ninguém, muito menos reduz a violência, apenas alimenta nossa sede de vingança e afasta do convívio social aqueles considerados perigosos e indesejáveis. Serve, assim, como implacável instrumento de exclusão, punição e controle dos menos favorecidos.
Em pleno século XXI, essas masmorras medievais continuam produzindo violência e sofrimento. Funcionam como um grande depósito de lixo onde se mata a esperança de um mundo melhor, mais fraterno e humano. “De forma explícita”, afirmou Zygmunt Bauman, “o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo”5.
O Informe 2015/16 da Anistia Internacional concluiu que superlotação extrema, condições degradantes, tortura e violência são problemas endêmicos nas prisões brasileiras. Essa situação não se alterou na atual crise sanitária. De acordo com o Informe 2020/2021, a população carcerária foi privada de seu direito à saúde devido à inadequação das medidas tomadas pelo Estado para enfrentar e conter a pandemia. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, até outubro deste ano, 91.964 casos confirmados e 580 mortes causadas pela covid-19 foram registradas no sistema prisional, incluindo servidores e pessoas presas.
Apesar desse estado de coisas inconstitucional, juízes continuam lotando as prisões, muitas vezes sem necessidade, de seres humanos descartáveis que serão segregados, violentados e até mesmo eliminados. Afinal de contas, tudo é permitido dentro dos muros dos presídios, desde que sirva para aumentar o sofrimento daqueles que são objeto do ódio e desprezo da sociedade. “Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata”, como escreveu Eduardo Galeano.
O Massacre do Carandiru, ocorrido em 2/10/1992, quando 111 presos foram executados pela tropa de choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e, em 1/1/2017, a rebelião que resultou na morte de 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus/AM, são exemplos da violência do nosso sistema prisional e da ameaça que paira sobre a cabeça de homens e mulheres que nele ingressam.
Precisamos admitir que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche tinha razão ao dizer que: “Ver sofrer alegra; fazer sofrer alegra mais ainda; (...) Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem; o castigo é também uma festa”6.
No Brasil, a punição sempre foi uma festa regada a sangue e lágrimas da massa de seres humanos encarcerados, que não tem dia nem hora para terminar e oferece ao mundo o triste espetáculo da nossa barbárie.
1 FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 3 ed. RJ: Paz e Terra, 2015, p. 216.
2 FRAGOSO, Heleno Claudio. Direitos dos presos. RJ: Forense, 1980, ps. 14/15
3 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niteroi: Luam, 1993, p. 72.
4 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 13.
5 BAUMAN, Zygmunt. op. cit., p. 108.
6 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. RJ: Vozes, 2013, p. 65.