As medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal brasileiro e na legislação extravagante são um importante instrumento a serviço do Estado para evitar a reiteração de crimes e, da mesma forma, o encarceramento em massa, tendo em vista que, em sua essência, objetivam evitar a decretação da prisão preventiva quando forem adequadas com o contexto fático.
Nesta linha, as medidas cautelares adquirem especial relevância no âmbito dos crimes de violência doméstica contra a mulher, pois visam diminuir as chances de reiteração da prática de delitos contra pessoas que se encontram em condição de vulnerabilidade.
É o caso, à guisa de introdução, da medida cautelar de afastamento do lar, prevista no art. 22, inciso II da lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, o qual determina que o juiz poderá aplicar, em face do agressor, o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, após constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Entretanto, na última semana o STF decidiu pela Constitucionalidade da lei 13.827/19, que alterou dispositivos da Lei Maria da Penha para permitir que o delegado de polícia, e demais integrantes da polícia judiciária, em caso de ausência da autoridade policial, decretem a medida cautelar de afastamento do lar, antes de análise e de autorização do juiz.
Neste cenário, é bem verdade que as medidas cautelares precisam ser céleres para que sejam efetivas, de forma que o perigo em sua demora pode acarretar a absoluta ineficácia e, até mesmo, uma tragédia diante da permanência de um pretenso agressor em convívio com a vítima, e é este o fundamento utilizado pelo legislador, e pela Corte Suprema, para atribuir o “poder cautelar” aos órgãos de segurança pública.
No entanto, apesar da efetividade dos instrumentos cautelares ser necessária para tutelar situações em que há risco atual ou iminente à integridade física, também é essencial que se observe os postulados legais e constitucionais que calçam o poder de intervenção estatal, sabendo-se que estes devem ser respeitados em absoluto pois, além de objetivarem a proteção de direitos e garantias, também garantem a legitimidade da atuação estatal.
Logo, dentre os princípios que legitimam a atuação do Estado, e que adquire relevo na situação aqui enquadrada, está o princípio da reserva de jurisdição, o qual impõe que outros órgãos estão impedidos de exercerem as atividades cujo núcleo essencial pertencem à função jurisdicional.
Tal imposição justifica-se pois, a despeito dos recorrentes erros nas decisões judiciais, a atuação jurisdicional ainda é a mais diligente, demandando uma análise mais aprofundada das situações levadas à conhecimento do judiciário, o que não ocorre, e nem poderia ocorrer, com os órgãos de polícia judiciária.
E isto porque a atuação da polícia judiciária é predominantemente, administrativa e, por si só, inquisitiva, de forma que os elementos colhidos no curso de uma investigação policial não são, por si só, provas da atribuição de um crime a um determinado agente mas, tão somente, elementos informativos que posteriormente poderão, ou não, vir a ser provas, quando confrontadas pela defesa diante de um juiz que, este sim, analisará a extensão probatória dos elementos levados a seu conhecimento, de forma imparcial.
Isto posto, nota-se que o permissivo de decretação de afastamento do lar por parte dos órgãos de polícia judiciária decorrerá, inegavelmente, de uma análise parcial da situação levada à conhecimento do Estado-Polícia, o qual determinará a medida com base em elementos comumente frágeis e que, no mais das vezes, sustenta-se tão somente na palavra da vítima.
Além disto, há ainda a previsão de comunicação do afastamento do lar a uma autoridade judiciária, que analisará o cabimento da medida, devendo decidir pela sua revogação ou manutenção.
Não obstante, à semelhança dos diversos flagrantes policiais que são erroneamente lavrados nos mais diversos contextos fáticos e levados ao conhecimento da autoridade policial em um prazo de “24 horas”, o qual quase nunca é cumprido, sem que se admita qualquer violação de direitos fundamentais, os efeitos nocivos no indivíduo já estão efetivados, ainda que a autoridade judicial decida pela revogação do flagrante.
Nesta mesma lógica, permitir-se a decretação de uma medida cautelar extremamente nociva com base em elementos superficiais e parciais por parte de um órgão que, apesar de sua efetividade investigativa, tem por natureza a colheita de instrumentos com viés absolutamente inquisitorial é, no mínimo, uma ingerência dos direitos fundamentais da pessoa investigada, correndo o risco de ser extremamente gravoso e desproporcional.