Migalhas de Peso

Publicadas em 28/3/22 duas MP's em matéria trabalhista: MP 1.108/22 e a MP 1.109/22

A questão nasce em uma prática nova de alguns empregadores, que flexibilizavam os benefícios concedidos aos trabalhadores.

30/3/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

A MP 1.109/22 buscou disciplinar estados de calamidade pública em geral, como uma forma de “preparar” o ambiente jurídico nacional para eventuais situações semelhantes à que eclodiu com a pandemia decorrente do Sars-Cov-2. Assim, as medidas trabalhistas alternativas que a medida provisória 927/20 (não convertida em lei) criou para o enfrentamento da calamidade pública decorrente do coronavírus foram parcialmente reproduzidas na nova MP.

A adoção de teletrabalho, a antecipação de férias individuais, a concessão de férias coletivas, o aproveitamento e a antecipação de feriados e o banco de horas são as medidas que vieram com a MP927 e foram resgatadas com a nova MP. Por outro lado, algumas medidas controversas da MP anterior não constam do novo texto (como a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho e o direcionamento do trabalhador para qualificação) e uma delas foi transformada (de um modo que pode, também, causar controvérsia): na MP927 aos empregadores era autorizado o diferimento do recolhimento do FGTS durante a emergência de saúde pública. A MP 1.109/22 autoriza a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos de FGTS.

As medidas alternativas disciplinadas pela MP 1.109/22 se aplicam apenas a empregados que no contexto da calamidade pública sejam considerados “grupos de risco” e apenas para aqueles das áreas específicas atingidas pelo estado de calamidade pública.

Trata-se, assim, de uma MP de algum modo “preparatória” para eventos incertos e futuros. Embora seja importante que o ordenamento jurídico já tenha uma resposta pronta a tais eventos incertos e futuros, é questionável se existe uma situação emergencial atual que autorize a normatização via medida provisória (afinal, a situação que ela pretende regular – um estado de calamidade pública – sequer existe atualmente).

A MP 1.108/22, muito mais voltada à prática das empresas, especialmente no pós-pandemia, tratou de dois assuntos importantes e que careciam de aperfeiçoamento: de um lado, o teletrabalho, de outro, o auxílio-alimentação.

Quanto ao teletrabalho, as mudanças vieram para trazer segurança jurídica. Muitas empresas, forçadas pela pandemia, inauguraram a forma de trabalho remoto e se surpreenderam com as vantagens operacionais que apareceram. Buscando aliar tais vantagens com os benefícios do trabalho presencial, instituíram formas de trabalho híbrido que, no entanto, precisavam ser “encaixadas” no conceito da CLT de teletrabalho.

A primeira alteração – significativa – é a delimitação de que apenas os trabalhadores em teletrabalho que prestam serviço por produção ou tarefa estão dispensados do controle de jornada e não têm, consequentemente, direito ao recebimento de verbas trabalhistas relacionadas à duração do trabalho. Assim, é obrigatório o controle de jornada dos trabalhadores em teletrabalho que prestem serviço por unidade de tempo.

Ademais, o conceito de teletrabalho da CLT – a maior fonte de insegurança jurídica – foi aperfeiçoado. A CLT, antes, dizia ser teletrabalho aquele prestado “preponderantemente fora das dependências do empregador”. Essa preponderância não é mais requisito para a caracterização de teletrabalho (o que, na prática, corresponde à possibilidade jurídica da existência dos regimes híbridos). É, agora, tida como trabalho remoto (ou “teletrabalho”) “a prestação de serviços fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, que, por sua natureza, não se configure como trabalho externo”.

Outra novidade vem na redação do § 1º do art. 75-B da CLT. A exceção lá desenhada é ampliada para se especificar que não há descaracterização do teletrabalho mesmo se o comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades específicas for habitual.

O texto ainda é expresso ao afirmar que o regime de teletrabalho não pode ser confundido ou equiparado à ocupação de operador de telemarketing ou teleatendimento. Essa previsão foi importante porque a jornada máxima de trabalho dos operadores de telemarketing é reduzida (seis horas), e parte dos intérpretes do regime antigo do teletrabalho buscavam assemelhar a prestação do trabalho remoto (sempre com uso de equipamentos e tecnologias de informação e de comunicação) à prestação de teleatendimento/telemarketing.

Ainda, deixou claro a MP 1.108/22 que o uso dos equipamentos e tecnologias de informação, fora do horário de trabalho normal, não constitui tempo à disposição ou regimes de prontidão ou sobreaviso, salvo se houver previsão em contratos individuais ou coletivos de trabalho.

Outras lacunas importantes foram supridas: o teletrabalho foi expressamente autorizado para aprendizes e estagiários e foi disciplinada a questão do local de prestação do teletrabalho. Isso porque, no contexto da pandemia do novo coronavírus, alguns empregados colocados para trabalhar remotamente mudaram-se de residência, seja dentro do Brasil, seja para o exterior. A MP1.108/22 esclarece que a legislação aplicável será sempre a “local”, assim entendida a legislação brasileira e as normas coletivas da base territorial do estabelecimento em que lotado o empregado. No caso do teletrabalho prestado no exterior, a regra é a aplicação da lei brasileira (consideradas as exceções da lei nº 1.064/82), mas abre-se a possibilidade de as partes convencionarem de modo diverso. O empregado que decidir prestar o trabalho remoto em localidade diversa da que resulta o contrato é responsável, em caso de retorno ao trabalho presencial, pelos custos desse retorno (a não ser que as partes contratualizem em sentido diverso).

O contrato individual de trabalho continua sendo obrigatório para disciplinar a prestação de serviços na modalidade telepresencial, mas não é mais obrigatório que ele especifique as atividades que serão realizadas pelo empregado. Referido acordo pode, também, dispor sobre horários e meios de comunicação entre empregado e empregador, desde que assegurados os repousos legais.

Por fim, para os casos em que exista um número limitado de “vagas” para o trabalho remoto, a MP 1.108/22 obriga que os empregadores deem prioridade a empregados com deficiência ou empregados e empregadas com filhos ou criança sob guarda judicial até quatro anos de idade.

Todas as outras regras do teletrabalho continuam vigentes – especialmente aquela que disciplina não ser – necessariamente – uma obrigação do empregador a assunção de custos pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, sendo necessário que o contrato escrito preveja a responsabilidade por tais despesas. Não existe, assim, a compulsoriedade legal do pagamento de ajudas de custo ou reembolsos de despesa.

Já no que diz respeito ao auxílio-alimentação, a MP dispõe que os valores pagos a título de auxílio-alimentação devem ser, obrigatoriamente, utilizados para o pagamento de refeições em restaurantes e estabelecimentos similares, ou para a aquisição de gêneros alimentícios em estabelecimentos comerciais. A questão nasce em uma prática nova de alguns empregadores, que flexibilizavam os benefícios concedidos aos trabalhadores e, ao invés de pagar auxílio-alimentação, convertiam o benefício em pagamentos de plataformas digitais, academias de ginástica ou televisão a cabo. Com a nova regulamentação, as empresas que assim procederem podem perder os benefícios fiscais e receber multas.

A MP também interfere nos contratos entre empregadores e empresas fornecedoras de auxílio-alimentação, proibindo a concessão de descontos nos valores (que, no sentir do ministério do trabalho, acabavam repassados pelas fornecedoras aos restaurantes que, por sua vez, repassavam aos consumidores, encarecendo a alimentação do trabalhador).

Há, no entanto, um prazo de transição para os contratos em curso, de modo que exista segurança jurídica.

Daniel Ybarra de Oliveira Ribeiro
Daniel é fluente em inglês e francês. É graduado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), Pós-Graduado em Direito Civil e mestre em Direito Privado, ambos pela Université Paris 2 - Panthéon-Assas (Sorbonne Universités). Sócio do Rocha e Barcellos Advogados, onde há anos atende empresas ligadas ao setor químico, farmacêutico, de manutenção, tecnologia, comércio de bens de consumo, prestação de serviços, dentre outros.

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