Migalhas de Peso

Estelionato sentimental, o amor mais líquido do que nunca

“Vivemos tempos líquidos, nada hoje é para durar”, Zygmunt Bauman.

29/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O estelionato, figura típica do Direito Brasileiro prevista no artigo 171 do Código Penal pátrio e já bastante conhecida na prática forense e na vida do lado de fora do fórum, é resumida e penalizada na forma do artigo retro mencionado da seguinte forma: “CP, art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa [...].

Daí, dado o extenso rol de possibilidades contido neste curto texto legal, não falta à mente humana criatividade para dar vida ao artigo no mundo dos fatos das mais variadas maneiras e através do uso dos mais variados ardis possíveis e necessários ao atingimento do resultado almejado: a satisfação do interesse próprio através da ilusão criada na mente do outro. Quando mais predador o método, melhor.

É o estelionatário, ainda que não saiba, seguidor da doutrina de Montesquieu quando esta diz que “que os fins justificam os meios”, sendo é claro, interpretada ao seu próprio modo ilícito. Não importa o meio, o que importa é o fim, o resultado a ser atingido e também sem saber, utilitarista que é, o autor do crime estará buscando “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”, sem muito apego as consequências para a outra parte, essa é a principal máxima do utilitarismo proposto primeiramente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873)¹.

E deste modo, dentre todas as possibilidades de usos e combinações de artifícios, ardis, ou quaisquer outros meios fraudulentos para obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, uma que, embora desde sempre tenha existido, mas que vem ganhando enfoque no cenário jurídico por ser um tema recente, cunhado em 2015 em uma ação de indenização por danos materiais e morais julgada pelo poder Judiciário da União-Distrito Federal é o chamado estelionato sentimental, ou afetivo.

O estelionato sentimental consiste na prática do fato típico, ilícito e culpável da forma anteriormente descrita, com o adendo de que o meio utilizado para o alcance dos efeitos é o sentimento e a afetividade na qual é envolvida a vítima, isto em qualquer tipo de relacionamento social, sendo, no entanto, mais comuns entre relacionamentos ditos amorosos, ou em sua premeditada encenação.

Consiste em um ilícito no qual o (a) criminoso (a) cria a falsa realidade de uma relação afetiva com a vítima, mas com aparência bastante promissora, utilizando-se do afeto, da boa-fé e da lealdade desta para, com abuso de confiança, malícia e sordidez, obter dinheiro ou qualquer outro tipo de vantagem, ou seja, para “dar o golpe”.

Prática essa que vem avançando junto com o uso das redes sociais e dos meios de comunicação de modo geral, que constituem alguns dos recursos mais utilizados na prática deste crime, já que neles qualquer um pode ser e dizer o que quiser.

O termo estelionato sentimental não está presente no Código Penal, de modo que a justiça trata esses casos como estelionato simples quando não há a presença de qualificadoras, como idade avançada, por exemplo: “CP, art. 171 [...] § 4º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é cometido contra idoso ou vulnerável, considerada a relevância do resultado gravoso”.

Não obstante, a repercussão do caso fático pode se dar tanto no âmbito penal quanto no âmbito cível, uma vez que tais casos configuram perfeitamente a quebra da boa-fé estipulada pelo Código Civil em seu art. 187 que diz claramente que “CC, art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, o que é passível de reparação por danos matérias e também morais, como leciona o mesmo códex, nos artigos seguintes:

CC, art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. [...] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

E quanto ao aspecto moral, sua garantia é ainda de ordem constitucional:

CRFB, art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] V. é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; X. são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Logo, é importante considerar que a reparação, na qual se convertem em pecúnia os danos causados, deve sopesar todas as circunstâncias que possam influenciar na fixação do quantum indenizatório, levando em consideração que o dano abrange, além das perdas valorativas internas, as exteriorizadas no relacionamento diário pessoal, familiar, profissional e social da pessoa ofendida, diante da situação vexatória à qual se viu exposta e de suas consequências psicológicas de longa duração 8.

Sendo importantíssimo um ressarcimento não apenas de ordem financeira, mas também de ordem moral, que visa não apenas apenas a reparação patrimonial da vítima, mas também uma punição educativa em face do (a) autor (a) do delito cível-criminal, de modo que lhe seja desencorajada a prevalência dessa postura criminosa perante a sociedade.

O referido ilícito penal e cível costuma ocorrer com o mesmo modus operandi, que, no entanto, nem sempre pode ser facilmente identificado pela vítima, afinal, o golpe é muito bem-aplicado. Quem o aplica mostra-se como alguém inteligente, perspicaz e que sabe realizar uma perfeita leitura não apenas da situação, mas também da vítima, sendo por esse motivo tal crime um verdadeiro crime intelectual² acompanhado também de um nítido vício de consentimento³.

O (a) autor (a) do ilícito muito comumente se apresenta como uma pessoa perfeita, cheia de valores e princípios, carinhosa e atenciosa, e que se coloca como a parte frágil, vulnerável e dependente da intensa relação de amizade, afeto e amor criada entre as partes, podendo até mesmo, inicialmente, oferecer vantagens de qualquer cunho à vítima, para dar mais crédito à empreitada, mas já sabendo que a sua simples presença na vida da outra parte já constitui a própria vantagem em si, uma vez que esta já se encontra dependente e viciada na atenção que lhe é dispensada.

A partir desse momento é então iniciado ou intensificado o agir do(a) autor(a), que com abuso do direito de ajuda passa a requisitar frequentemente ou até mesmo exigir benefícios da vítima em seu favor. Como dito anteriormente, tais benesses podem ser tanto de cunho financeiro direto, como o pagamentos de contas, viagens, empréstimos e a compra, transferência ou até mesmo a doação de bens materiais; até a satisfação de outros interesses econômicos indiretos, como aproveitar-se do conhecimento técnico/acadêmico da vítima para a prática de algum ato intelectual em seu favor, ou do acesso desta a simplesmente qualquer coisa que lhe traga algum benefício, etc..

Assim, após o alcance de razoável e satisfatória vantagem, o ato posterior é afastar-se consideravelmente, ou até mesmo desaparecer completamente da vida da vítima, o que lhe deixará em um estado misto de confusão mental e com um sentimento de culpa por toda a situação que lhe será intencionalmente implantado pelo (a) estelionatário (a), até o momento em que perceberá que foi vítima de um golpe, o que, com a reunião das provas que possui, lhe dará a possibilidade de buscar os meios judiciais reparatórios anteriormente descritos. Serão possíveis a repercussão penal mediante ação penal privada condicionada à representação, e a repercussão cível através da ação de indenização por danos materiais e a ação de indenização por danos morais, sendo que estas duas últimas poderão correr nos mesmos autos.

Caso recente foi o julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. A decisão é da sua 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais que constatou que: “O réu se valeu dos sentimentos da autora, envolvendo a vítima com declarações, e da confiança amorosa típica de um casal, além de promessas, como a de um futuro casamento, a induziu e manteve em erro, com o intuito de obter vantagens, praticando assim estelionato afetivo".

Motivo pelo qual entendeu o órgão julgador que: “restou comprovada a afronta a direito da personalidade, notadamente a incolumidade psíquica da recorrida, que foi severamente atingida na sua afetividade ante a conclusão de que o interesse do recorrente cingia-se à esfera material".

Dessa forma, em decisão unânime, a Turma Recursal manteve a sentença que condenou o réu ao ressarcimento do prejuízo de R$ 23.227,00 sofrido pela vítima, referente a presentes recebidos pelo condenado, acrescidos de juros e correção monetária, e ao pagamento de R$ 4.000,00 pelos danos morais afligidos pelo injusto cível.

Como no caso visto acima, costumam ser mais frequentes a notícia de casos envolvendo mulheres porque geralmente estas buscam mais por ajuda e pela satisfação judiciária, mas neste tipo de estelionato é comum a verificação de vítimas de qualquer sexo ou orientação sexual. Não existe barreiras ou parâmetros para o desrespeito aos valores decorrentes da boa-fé objetiva: lealdade e confiança.

Para o criminalista Rogério Greco “desde que surgiram as relações sociais, o homem se vale de fraude para dissimular seus verdadeiros sentimentos, intenções, ou seja, para, de alguma forma, ocultar ou falsear a verdade, a fim de obter vantagens que, em tese, lhe seriam indevidas” 4.

A liquidez das atuais interações humanas já não é apenas uma de suas características como também vem se tornando com cada vez mais força umas das razões de sua existência. Ela deixa de ser apenas um de seus elementos para se tornar o principal motivo pelo qual muitas delas surgem, uma vez que visam tão somente vantagens individuais que não estabelecem qualquer ligação duradoura com o elemento beneficente.

Uma vez que surgem, e delas é tirada a vantagem almejada na sua constituição, qualquer relação entre os seres humanos pode ser desfeita, da mesma forma como surgiram, fluída e rapidamente, como é típico do ser humano se comportar com qualquer serviço ou mercadoria.

 Após isso, a mercadoria será obrigada a se reinventar, inovar e se tornar mais resistente, para em seguida poder atender novamente as demandas do mercado da vida e das relações sociais humanas, como reflete Bauman, ao afirmar que, “ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”.

Não tenha medo de dizer não.

É crime, denuncie.

_________________________ 

¹ Tal doutrina fundamenta-se no princípio de utilidade, que determina que a ética deve basear-se sempre em contextos práticos, pois o agente moral deve analisar a situação antes de agir, e sua ação deve ter por finalidade proporcionar a maior quantidade de prazer (bem-estar) ao maior número de pessoas possível para que seja moralmente correta. Dessa maneira, o utilitarismo descarta por completo o imperativo categórico kantiano, tirando toda a correção moral de uma razão universal e oferecendo-a ao sujeito. É uma doutrina moral consequencialista, ou seja, que visa às consequências das ações morais em detrimento das próprias ações morais. O que importa, nesse sentido, é o resultado de certa ação, e não a própria ação. Isso significa que o agente moral deve estar sempre atento ao que vai acontecer se fizer algo. Também abre brechas para que o agente moral possa praticar certas ações que foram, muitas vezes, condenadas pela ética, como a mentira. PORFÍRIO, Francisco. Utilitarismo. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/utilitarismo.htm. Acesso em 28 de março de 2022

² Crime intelectual é aquele praticado com um considerável desempenho de uma atividade de natureza mental e relacionado com o intelecto e a inteligência do autor do crime, o que é comum, e pode-se dizer inerente, aos crimes de estelionato.

³ Os vícios de consentimento de acordo com o Código Civil, são: erro ou ignorância, dolo, coação, lesão e estado de perigo. O erro ou ignorância consiste em uma falsa ideia da realidade e do real estado e situação das coisas. O erro incutido na mente da pessoa, a leva a supor uma coisa que na verdade é outra, ou não existe, o que torna o negócio anulável.

4. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 11 Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.

5. D'AMICO, Anahy. ESTELIONATO SENTIMENTAL | ANAHY D'AMICO. Papo com Anahy D'amico. You Tube, 27 de abril de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2mjayrbMMQE. Acesso em 28 de out. de 2022.

6. DOS SANTOS, Fábio Celestino. ESTELIONATO SENTIMENTAL - QUANDO O AMOR PAGA A CONTA. O estelionato afetivo ainda é um tema que causa muita polêmica entre profissionais e estudiosos do direito. [s.l]: Brasil Escola, [s.d]. Disponível em: https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/atualidades/estelionato-sentimental-quando-amor-paga-conta.htm. Acesso em 28 de out de 2022.

7. ODORISSI, Denise. Golpistas usam redes sociais para praticar estelionato sentimental. Domingo Espetacular. You Tube, 11 de ago. de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sH1PJCgYtBU. Acesso em 28 de out de 2022.

8. SPAGNOL, Débora. "Estelionato sentimental": crime ou abuso de confiança?. [s.l]: Jus Brasil, 2016. Disponível em: https://deboraspagnol.jusbrasil.com.br/artigos/417697597/estelionato-sentimental-crime-ou-abuso-de-confianca. Acesso em 28 de out de 2022.

9. Vítima de estelionato sentimental receberá indenização de ex-parceiro. O homem recebeu mais de R$ 23 mil reais em presentes. A Justiça do DF determinou que ele devolva esse valor à vítima e, ainda, pague danos morais. [s.l]: Migalhas, 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/357795/vitima-de-estelionato-sentimental-recebera-indenizacao-de-ex-parceiro. Acesso em 28 de out de 2022.

Melissa Aparecida Batista de Souza
Advogada, pós-graduanda em Ciências Penais, colaboradora jurídica, entusiasta das ciências jurídicas e sobretudo do Direito Penal e Processual Penal.

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