O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a estabelecer a saúde como um direito fundamental. Está previsto no art. 196 da Carta Magna que a saúde é “dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).
Cumpre destacar que, na redação do texto constitucional, é possível identificar tanto um direito universal quanto coletivo de proteção à saúde. Conforme leciona o ministro Gilmar Ferreira Mendes:
Dizer que a norma do art. 196, por se tratar de um direito social, consubstancia-se tão somente em norma pragmática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição.
Além disso, a Constituição deixa claro que há o dever fundamental do Estado, em todas as suas dimensões federativas, de garantir o acesso universal e irrestrito de todos às ações essenciais voltadas à redução, promoção, proteção e à recuperação da saúde. Em outras palavras, é incumbido ao Poder Público a efetivação do acesso à saúde de forma integral, gratuita, universal e igualitária.
Todavia, para uma melhor percepção do direito à vida, é necessário o seu entendimento juntamente à dignidade da pessoa humana prevista no art. 1º, III, da CF/88. Como destaca com propriedade o jurista Luis Roberto Barroso:
O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo frequentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos (2009, p.10).
Assim, a partir da junção desses preceitos constitucionais, é possível compreender a responsabilidade do Estado na tarefa de assegurar uma vida minimamente digna para a população mediante ações específicas (dimensão individual) e amplas políticas públicas (dimensão coletiva).
Portanto, a consolidação do direito à saúde como um direito social indispensável que, aliado ao mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, garantem uma vida minimamente digna para o indivíduo. Assim, não pode o Estado omitir-se do seu dever de prover a efetivação deste direito, desconsiderando ou enfraquecendo esses valores básicos estabelecidos pela Constituição, sem tornar suas ações inadmissíveis e inconstitucionais.
O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL
O instituto da reserva do possível surgiu na Alemanha através de uma decisão do Tribunal Constitucional Federal, conhecida como numerus clausus Entscheidung, na qual um grupo de candidatos a vagas nas faculdades públicas de Medicina não conseguiram ingressar nas instituições de ensino, devido aos critérios de admissão que limitavam o número de vagas. A pretensão dos estudantes baseou-se no art. 12 da Lei Fundamental Alemã, segundo o qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. A Corte alemã, por sua vez, inovou invocando a teoria da reserva do possível, alegando que as vagas disponibilizadas pelas universidades eram equivalentes a capacidade financeira estatal de arcar com os custos decorrentes destas (MÂNICA, 2007).
Assim, o Tribunal Alemão entendeu que a prestação reclamada deveria corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir do Estado, que mesmo possuindo recursos e tendo poder de disposição, não tem a obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites da razoabilidade. Contudo, a jurisprudência alemã não pode ser aplicada a realidade brasileira, isto porque a Alemanha vivencia um bem-estar social bem diferente da situação atual do Brasil, que ainda enfrenta graves problemas sociais e políticos, decorrentes dos altos níveis de corrupções e desvios de verbas constitucionalmente previstas para recursos públicos.
No ordenamento jurídico pátrio, a reserva do possível é aplicada estritamente no âmbito do financeiramente possível, na medida em que se considerou como limite absoluto a efetivação de direitos fundamentais sociais, a suficiência de recursos públicos e a previsão orçamentária da respectiva despesa.
Em situações excepcionais de escassez de recursos financeiros, como a atual situação da pandemia global do novo coronavírus (SARS-Cov-2), a função do Estado de assegurar os direitos sociais poderá estar limitada por restrições orçamentárias. É nesse contexto que surgiu o chamado “mínimo existencial”, consistente no conjunto básico de direitos fundamentais que garantem ao indivíduo o mínimo para uma qualidade de vida que lhe permita viver com dignidade, tendo acesso à saúde, alimentação e educação. Assim, as negativas de efetivação de um direito social justificado pelo instituto da reserva do possível alegadas pelo Poder Executivo devem ser analisadas cautelosamente pelo Judiciário.
No caso do direito à saúde, a “judicialização da saúde” se tornou o meio que a sociedade utiliza para reivindicar os seus direitos, através do princípio do acesso à justiça, que permite que qualquer brasileiro requeira a sua pretensão em juízo. Desta forma, aliado a dignidade da pessoa humana, o Estado se vê obrigado a fornecer o mínimo existencial para uma plena garantia e efetivação do direito pleiteado. Não cabendo, assim, a alegação do instituto da reserva do possível como justificativa do Executivo para a não efetivação de suas obrigações.
A RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE DURANTE A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS.
A pandemia foi decretada em 30 de janeiro de 2020 pelo Comitê de Emergência da OMS, que declarou estado de emergência de saúde global com base nas crescentes taxas de casos em diversos países. Diante do cenário pandêmico, houve um colapso nos hospitais públicos, gerando um grande aumento de internações e mortes associadas ao esgotamento de leitos em todo o país.
Assim, em fevereiro de 2020 foi sancionada a lei 13.979/20 que dispõe sobre uma série de medidas para evitar a contaminação e a propagação do novo coronavírus, destacando-se o isolamento social, a quarentena e a realização periódica de exames médicos e testes laboratoriais.
Sendo assim, diante da grave situação que assola o mundo, poderão ser tomadas medidas diversas acerca da responsabilização dos órgãos públicos, seja por ação ou omissão, que contribuam para proliferação do vírus, causando danos à saúde pública. Por outro lado, apesar da atuação da União, cada ente federado também possuí sua responsabilidade própria em relação à saúde (OLIVEIRA, 2020). Assim, o desenvolvimento de políticas públicas é um dever de todos os entes, sendo que a sua omissão no combate a prevenção do atual covid-19, poderá resultar na responsabilização civil do Estado com relação aos prejuízos sofridos por particulares em decorrência das irregularidades de algum ente federativo.
Entende-se, portanto, que para os serviços de saúde sejam prestados de forma eficaz, atendendo todos os princípios da administração pública e efetivando o direito à saúde para a população, é necessário que todas as esferas públicas cumpram o seu papel determinado.
CONCLUSÃO
Por mais que os recursos financeiros estejam comprometidos em decorrência da pandemia, o direito à saúde está diretamente ligado aos direitos e garantias sociais, de modo que é dever do Estado assegurar o seu devido funcionamento, garantindo o mínimo existencial para a sobrevivência do ser humano.
Fato é que a utilização do instituto da reserva do possível já vinha sendo utilizada pelo Poder Público como justificativa para o não cumprimento de suas obrigações constitucionais por insuficiência orçamentaria, o que, conforme evidenciado durante o estudo, não deve ser aceito. Em situações de escassez de recursos e riscos de insuficiência econômica é justamente quando a população se encontra desamparada e necessita ainda mais que seus direitos constitucionais sejam protegidos.
Assim, cabe ao poder judiciário, através da “judicialização da saúde”, assegurar que o Executivo cumpra com seus deveres constitucionais, se pautando na razoabilidade e sensibilidade de cada caso, proferindo decisões com o objetivo de resolver o conflito existente entre a possibilidade do estado e a necessidade de cada cidadão, principalmente diante do cenário político em que o pais se encontra, vivendo não apenas o caos econômico, como também a perda de valores étnicos e morais diante o cenário pandêmico.
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BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista de Direito Social, 34/11, abr- jun 2009.
BRANCO, P. G. G.; MENDES, G. F. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. E-book. Acesso em: 18 de ago. 2021.
MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169, jul./set. 2007.
OLIVEIRA, Bárbara Larissa Sena. Epidemias e a responsabilidade do Estado. Dom Total. Publicado em: 25 mar. 2020. Disponível em: https://domtotal.com/noticia/1431799/2020/03/epidemias-e-aresponsabilidade-do-estado. Acesso em: 18 de ago. 2021.