O transporte coletivo urbano de passageiros, que, no Brasil, é majoritariamente realizado por ônibus, é um serviço público e um direito social, nos termos do que dispõem os artigos 6º e 30, IV, da Constituição Federal. O transporte público também é considerado um serviço essencial, que ganhou ainda mais relevância durante o período da pandemia causada pela covid-19. Nos períodos mais críticos da pandemia, o transporte coletivo cumpriu papel fundamental de transportar profissionais da saúde para hospitais, e serviu de meio de transporte de muitos doentes em busca de assistência médica.
Sendo um serviço público, o transporte coletivo urbano de passageiros é de titularidade dos Estados (nas linhas intermunicipais metropolitanas) e dos Municípios (nas linhas municipais), que podem prestar o serviço diretamente ou delegar a prestação do serviço para terceiros, sob o regime de concessão ou permissão. Cabe aos Estados e Municípios, no caso de delegação do serviço público, regular a prestação do serviço, a fim de garantir a universalidade, continuidade e modicidade das tarifas, definindo a política tarifária e, em alguns casos, fornecendo subsídios diretos.
Os custos operacionais dos sistemas de transporte coletivo urbano, senão na sua integralidade ao menos em grande parte, são custeados pelos usuários pagantes das tarifas públicas. No Brasil é excepcional que recursos extra tarifários sejam disponibilizados para financiar o setor de transporte coletivo.
E é justamente pelo fato de o sistema ser custeado praticamente em sua integralidade pelos usuários, dependendo totalmente da circulação de passageiros, que o setor de transporte coletivo urbano foi um dos mais afetados pela pandemia da covid-19.
Durante a pandemia da covid-19 o número de usuários no transporte coletivo urbano diminuiu drasticamente, de forma acentuada e acelerada. O Anuário 2020/2021 da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbano (NTU) estima que as medidas de distanciamento impostas pela covid-19 resultaram em uma queda média de 51,1% dos passageiros pagantes no ano de 2020 em comparação com o ano de 2019.1 Nos períodos mais críticos e iniciais da pandemia, entre março e abril de 2020, a queda da demanda de usuários no transporte coletivo foi ainda maior, chegando a 80%.2
Mesmo com o avanço da vacinação e flexibilização das medidas de restrição e de isolamento social, o setor de transporte coletivo urbano ainda está longe de recuperar o nível de passageiros do período pré-pandemia. Em outubro de 2021 houve uma redução de 37,3% das viagens realizadas por passageiros.3 Uma das explicações para essa diminuição no número de passageiros é a mudança de hábito dos usuários. Muitos passageiros migraram para o transporte individual, valendo-se de carro próprio ou transporte por aplicativos, ou passaram a andar mais a pé ou utilizar mais a bicicleta. Outra explicação é o aumento do home office, do desemprego e da informalidade.
Com a constante diminuição dos passageiros, há uma queda considerável das receitas. Diante disso os custos operacionais deixaram de ser cobertos pelos usuários do sistema, o que gera desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão e a crise do setor.
Estudo recente realizado pela NTU estima que, no Brasil, o setor de transporte coletivo urbano acumulou um prejuízo de R$ 21,37 bilhões entre março de 2020 e outubro de 2021 em razão da queda na demanda de passageiros4. Não é proporcional que as empresas arquem com os prejuízos e com a diminuição abrupta de receitas sozinhas.
O reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de transporte coletivo urbano pode ser feito, por exemplo, pelas seguintes formas: (i) incremento da tarifa; (ii) pagamento de subsídios diretamente ao concessionário; (iii) extensão do prazo contratual; (iv) redução das obrigações de investimentos; (v) ampliação de prazos e flexibilização das metas para cumprimento de obrigações de investimentos; (vi) mudanças operacionais em linhas e número de veículos em circulação.
Esse reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de transporte público urbano pode ser manejado pelas vias administrativa ou judicial, consensualmente ou não.
Em Curitiba, entre março de 2020 e fevereiro de 2022, vigorou, por iniciativa da Prefeitura Municipal, um “Regime Emergencial de Operação e Custeio do Transporte Coletivo para o enfrentamento econômico e social da emergência em saúde pública decorrente da pandemia da COVID-19”. Por meio desse regime emergencial, a remuneração das empresas passou a ser feita com base na quilometragem percorrida pelos ônibus, deixando de estar atrelada ao número de passageiros transportados. Por meio desse regime a prefeitura de Curitiba arcou com parte do prejuízo decorrente da queda da demanda em razão da Covid-19.
Mais recentemente, em 01/03/2022, a tarifa de ônibus do Município de Curitiba sofreu um reajuste de 22%, aumentando R$ 1,00, passando de R$ 4,50 para R$ 5,505. Trata-se de mais uma medida adotada pelo Município de Curitiba com vistas a diminuir os prejuízos causados pela pandemia da Covid-19, tendo em vista a redução no número de passageiros e aumento nos custos dos insumos, buscando manter a continuidade na prestação do serviço.
No município de São Paulo, desde o início da pandemia da covid-19 houve um aumento considerável nos subsídios repassados pela Prefeitura com a finalidade de compensar a queda da demanda e evitar o colapso do sistema. No 1º semestre de 2021 foi repassado R$ 1,865 bilhão em subsídios para as empresas de ônibus da cidade de São Paulo, valor R$ 461 milhões maior do que o repassado no 1º semestre de 2020 e R$ 492 milhões superior ao valor repassado no primeiro semestre de 20196. Para 2022, o município de São Paulo autorizou o empenho de R$ 3,5 bilhões para subsidiar o sistema de transporte coletivo municipal7.
Em Minas Gerais, em dezembro de 2020 o Tribunal de Justiça do Estado determinou ao Município de Montes Claros a adoção de “providências concretas para reequilibrar o contrato mediante a adoção de providências que sejam pertinentes, inclusive o aumento da tarifa, se necessário”. Em sua decisão, o relator do processo no TJ/MG enfatizou ainda que “diante da situação vivenciada há meses em razão do coronavírus, a manutenção da frota integral, ou o não reajuste das tarifas de ônibus, acarreta desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão de serviço de transporte coletivo.”8
Diante dessa decisão, o Município de Montes Claros lançou Edital de Pregão Eletrônico para contratação de empresa “especializada na prestação de serviços de consultoria técnica para avaliação dos impactos econômicos e operacionais da pandemia covid-19, referente ao contrato de concessão P020/07-01 – serviço de transporte coletivo urbano”9. Ainda está pendente a contratação de referida empresa e a adoção de medidas efetivas para reequilibrar o contrato e minorar os prejuízos.
Ainda em Minas Gerais, o Município de Uberlândia e as empresas concessionárias do transporte coletivo firmaram, em 13/05/2021, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por meio do qual a prefeitura de Uberlândia se comprometeu a fazer aporte de R$ 24 milhões para as empresas que prestam o serviço de transporte coletivo no município, com a finalidade de recompor o equilíbrio econômico financeiro do contrato em razão da queda da demanda.10
O que se observa, portanto, é que o transporte público tem, e terá cada vez mais, um papel fundamental para a recuperação econômica pós-pandemia. Reequilibrar os contratos de concessão de transporte público urbano, quando preenchidos os requisitos legais, é de fundamental importância a médio e longo prazo, como forma de preservar a continuidade na prestação desse serviço público. O transporte coletivo urbano, ferramenta de inclusão e garantidor de direitos fundamentais, é essencial para as sociedades, e merece, portanto, ser protegido e valorizado.
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1 https://www.ntu.org.br/novo/NoticiaCompleta.aspx?idArea=10&idNoticia=1526
2 https://diariodotransporte.com.br/2021/03/24/transporte-publico-urbano-mantem-queda-de-demanda-em-torno-de-40-desde-agosto-de-2020/
3 https://www.ntu.org.br/novo/ckfinder/userfiles/files/NestaEdi%C3%A7%C3%A3o53.pdf
4 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/rombo-no-transporte-e-reajuste-da-tarifa-viram-impasse-para-prefeitos-em-ano-de-eleicao.shtml?origin=folha
5 https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/tarifa-do-transporte-coletivo-e-reajustada-pela-primeira-vez-em-3-anos/62737
6 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/08/18/sp-ja-gastou-r-461-milhoes-a-mais-com-subsidio-para-empresas-de-onibus-em-2021-e-valor-vai-a-r-18-bilhao.ghtml
7 https://diariodotransporte.com.br/2022/01/17/valor-de-subsidio-ao-sistema-de-onibus-de-sao-paulo-sobe-para-r-35-bilhoes-em-2022-confirma-prefeitura/
8 https://diariodotransporte.com.br/2020/12/12/decisao-do-tj-de-minas-possibilita-aumento-da-tarifa-e-reequilibrio-economico-do-contrato-de-concessao-do-transporte-em-montes-claros/
9 https://licitacoes.montesclaros.mg.gov.br/licitacao/processo-n2692021-pregao-eletronico-n1552021
10 https://diariodotransporte.com.br/2021/05/13/prefeitura-de-uberlandia-vai-repassar-r-24-milhoes-as-empresas-para-cobrir-prejuizos-da-covid-19/