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Lei 14.313/22: remédios sem aval da Anvisa e competência jurisdicional

A partir da vigência da lei 14.313/22 a Anvisa deixa de ser a instância administrativa sublime com relação à última, e única, palavra sobre a dispensação de medicamentos pelo SUS no país.

27/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O senhor presidente da República sancionou a lei 14.313, de 21/3/22, que autoriza o SUS – Sistema Único de Saúde – a receitar e dispensar medicamento sem aval da Anvisa – Agencia Nacional de Vigilância Sanitária.  

No que interessa aqui, preconiza a nova lei 14.313/22, que altera a lei 8.080/90, que dispõe sobre a organização e o funcionamento dos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde:

“Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS, incluído pela lei 12.401, de 2011. 

I. o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela   Anvisa, incluído pela lei 12.401, de 2011.

II. a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa, incluído pela lei 12.401, de 2011.

Parágrafo único. Excetuam-se do disposto neste artigo: incluído pela lei 14.312, de 2022.

I - medicamento e produto em que a indicação de uso seja distinta daquela aprovada no registro na Anvisa, desde que seu uso tenha sido recomendado pela Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – demonstradas as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança, e esteja padronizado em protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde, incluído pela lei 14.312, de 2022.

II - medicamento e produto recomendados pela Conitec e adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública do Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas, nos termos do § 5º do art. 8º da lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, incluído pela lei 14.312, de 2022.

Destarte, a partir da vigência da lei 14.313/22 a Anvisa deixa de ser a instância administrativa sublime com relação à última, e única, palavra sobre a dispensação de medicamentos pelo SUS no país.

Agora, nos termos da bem-vinda, e esperada, inovação legislativa entra em cena como protagonista a Conitec.

Perceba-se que o alterado Inciso II, do § Único, do art. 19-T, da lei 8.080/90, não repetiu a expressão final de seu Inciso I, qual seja, “e esteja padronizado em protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde”.

O que significa dizer que, agora, é permitido em todas as esferas de gestão do SUS a dispensação de medicamento para uso em programas de saúde pública, sem registro na Anvisa e não padronizado em protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde, desde que o medicamento seja recomendado pela Conitec e adquirido por intermédio de organismos multilaterais internacionais, como, p. ex., a Opas - Organização Pan-Americana de Saúde.

Oportuno trazer as lúcidas considerações da Câmara dos Deputados, no parecer de sua Comissão de Seguridade Social e Família e de Constituição e Justiça, quando da aprovação da matéria sancionada:

“Para exemplificar, a Conitec aguarda, em alguns casos, desde 2015, o aval da Anvisa para indicação no SUS de medicamentos com funcionamento cientificamente comprovado para o tratamento de imunossupressão em transplantes de coração, imunossupressão em transplante de pulmão, imunossupressão em transplante de pâncreas, imunossupressão em transplante de células-tronco hematopoiéticas, síndrome de evans, transtorno do espectro autista, edema macular diabético e lúpus eritematoso sistêmico.

(...)

Ademais, o texto do Senado Federal também prevê a oferta de tecnologias em saúde que hoje não são encontradas no mercado brasileiro, adquiridas por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública do Ministério da Saúde. Esses medicamentos são fundamentais para tratamento de mazelas de caráter endêmico e com impacto socioeconômico localizado, como doenças tropicais negligenciadas tais quais tuberculose, malária, hanseníase e doença de chagas.

Ante todo o exposto, considero o presente projeto de lei meritório para o aprimoramento dos procedimentos hoje adotados para incorporação de tecnologias pelo SUS”.

No Senado Federal, a conclusão sobre a matéria foi no mesmo sentido no parecer final:

“No atual cenário da pandemia de covid-19, tal medida permitirá, por exemplo, eventuais avaliações da Conitec para medicamentos que vêm apresentando evidências científicas de qualidade para o tratamento da doença, como é o caso da dexametasona, um corticoide que tem se mostrado capaz de reduzir significativamente o risco de morte em pessoas entubadas. Para citar outros exemplos já consagrados, a iniciativa possibilitaria a autorização de uso pelo SUS de imunossupressores importantes em transplantes de órgãos, além do micofenolato de mofetila, importante no tratamento do LES - Lúpus Eritematoso Sistêmico.

Ainda, incluímos a previsão de oferta de tecnologias em saúde adquiridas por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública do Ministério da Saúde. Historicamente, o Ministério da Saúde adquire medicamentos via organismos multilaterais internacionais, a saber a OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde. Esses medicamentos não estão disponíveis no mercado brasileiro e são necessários para o tratamento de pessoas acometidas por doenças e agravos de perfil endêmico, com importância epidemiológica, impacto socioeconômico e que estão contempladas em programas estratégicos de saúde pública”.

Como se vê, a sanção da lei 14.313/22 representa mais uma esperança e ânimo para milhares de pacientes e seus familiares no país, no demorado e sinuoso caminho da obtenção de medicamentos ainda não aprovados pela Anvisa, mas demonstradas as evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, efetividade e segurança mundo afora pela comunidade científica e respeitados organismos internacionais de saúde.

Por derradeiro, cumpre assinalar que a lei 14.313/22 terá imediata repercussão no tema 793 do STF que, com o julgamento dos embargos de declaração no RE  855178, assentava na sua parte final que “as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”. 

Me parece que com a Anvisa deixando de ser a última palavra autorizativa de dispensação de medicamentos a nível de SUS, assumindo essa condição Conitec, a ação judicial que demande o fornecimento de determinado medicamento deverá ser proposta em face da União, na Justiça Federal, somente no caso de ausência de recomendação da Conitec.

Dentro do entendimento esposado pelo tema 793 do STF, não mais faria sentido o deslocamento da competência para a Justiça Federal, a atrair a competência da União, para processar e julgar ações judicias de saúde em que determinado medicamento tenha expressa recomendação da Conitec, malgrado o silêncio da Anvisa. Porque, como dito, o alterado Inciso II, do § Único, do art. 19-T, da lei  8.080/90, determina ao SUS a dispensação de medicamento recomendado pela Conitec, independentemente da posição da Anvisa.

Enfim, havendo recomendação da Conitec sobre determinado medicamento competirá às varas de Fazenda Pública Estadual e Municipal e de Infância e Juventude Cível o processo e julgamento dessas demandas de saúde pública. Remanescendo à Justiça Federal as demandas de medicamentos sem recomendação do Conitec, ex vi do Inciso II, do § Único, do art. 19-T, da lei 8.080/90, com a redação dada pela nova lei 14.313/22.

Carlos Eduardo Rios do Amaral
Defensor Público do Estado do Espírito Santo

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