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Rússia vs Ucrânia: Consequências econômicas e insolvência transnacional

A Nord Stream 2 é um entre milhares de agentes impactados pelo conflito. Muito provavelmente, outras empresas também enfrentarão situações semelhantes, com implicações em todo o mundo.

24/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, diversos países e Corporações impuseram sanções ao Estado, indivíduos e empresas russas, impondo-lhes duros golpes financeiros. Conforme informações disponibilizadas pelo Sanctions Tracker,1 mais de 1.200 sanções foram impostas desde a eclosão do conflito.  

Nesse contexto, em 1º.3.2022, noticiou-se que a Nord Stream 2, sediada na Suíça, subsidiária da estatal russa Gazprom que opera o gasoduto Nord Stream 2, estaria à beira da insolvência. O gasoduto, com orçamento de US$ 11 bilhões e que conecta a Rússia à Alemanha pelo Mar Báltico e promete dobrar a capacidade de fornecimento de gás natural russo à Alemanha.

De acordo com o ministro da economia da Suíça, Guy Parmelin, a Nord Stream 2 demitiu mais de 140 trabalhadores alocados em Zug, na Suíça, como consequência: (i) da imposição de sanções anunciada pelos Estados Unidos da América em 23/2/22; e (ii) da suspensão da licença do gasoduto por decisão alemã em 22/2/22.

Os representantes da Nord Stream 2 não confirmam o pedido de insolvência, apenas a demissão de trabalhadores. Caso a falência se confirme, será importante buscar uma solução para o projeto, mitigando seus efeitos negativos.

É impossível listar todas as consequências da insolvência da Nord Stream 2, mas se podem citar, ao menos, inadimplência de valores devidos a trabalhadores, rompimento de contratos com fornecedoras de equipamentos ou prestadoras de serviços, dificuldades para credores que podem ter financiado o projeto, além da perda de investimentos bilionários pelos acionistas da empresa - e que não se limitam à Gazprom.

No processo de insolvência, serão liquidados ativos para pagamento de trabalhadores, credores e demais partes relacionadas, observada a ordem de pagamento definida pela Lei Suíça, que regulará o procedimento, considerando que a sede da Nord Stream 2 está localizada no território suíço.

Após a liquidação, a empresa economicamente inviável será retirada do mercado, com eventual preservação de valor e assunção das atividades remanescentes por agente que venha a demonstrar interesse e capacidade, preservando-se fatores positivos para a sociedade.

Caso a insolvência da Nord Stream 2 tenha implicações sobre relações mantidas no Brasil, a empresa poderá se valer de disposições incluídas na lei 11.101/05, modificada pela lei 14.112/20 (“LRF”), para ver reconhecidos os efeitos do procedimento de insolvência no território brasileiro.

Conforme artigos 167 e seguintes da LRF, redigidos com base na Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional da United Nations Comission on International Trade Law (“UNCITRAL”)2, são aplicáveis no território nacional os efeitos das insolvências transnacionais.

Como bem definem os professores Francisco Satiro e Sabrina Maria Fadel Becue “um processo de insolvência pode ser qualificado de transnacional quando a repercussão da crise afeta mais de uma jurisdição, com a abertura de processos concorrentes ou quando o processamento dos meios de recuperação ou liquidação locais necessitam da assistência de um outro país3.

Nos últimos anos, os tribunais brasileiros vinham lidando com pedidos de recuperação judicial de grupos de sociedades brasileiras que continham elementos transnacionais. A ausência de previsões legais sobre esse ponto trazia risco para as empresas multinacionais e para a segurança do ordenamento jurídico nacional. Assim, a reforma de 2020 que introduziu as normas especiais de insolvência transnacional na LRF ganharam especial relevância, tanto é que, logo após a entrada em vigor das referidas alterações em 2021, dois casos de grande repercussão foram ajuizados perante o Poder Judiciário brasileiro.

Recentemente, a 3ª vara empresarial do RJ deferiu tutela de urgência ao Grupo PROSAFE, que iniciou procedimento de insolvência na República de Singapura (moratorium protection), para impedir que credores adotassem medidas expropriatórias contra ativos da Prosafe Serviços Marítimos Ltda., empresa sediada no Brasil4. A decisão pioneira destacou a presença dos requisitos estabelecidos pelo art. 167-J da LRF para reconhecimento do processo estrangeiro, a saber: (i) o enquadramento na definição de processo estrangeiro (art. 167-B, I); (ii) o reconhecimento da postulante como “representante estrangeiro” (art. 167-B, IV); (iii) a apresentação dos documentos e informações exigidos pelo art. 167-H da LRE; e (iv) o endereçamento ao juízo do local do principal estabelecimento do devedor no Brasil.

Além disso, considerando o pedido de reorganização financeira apresentado pelo Grupo LATAM Airlines no Chile, perante o tribunal de falências dos Estados Unidos, o Ministério Público de São Paulo também se valeu das novas alterações da LRF para apresentar pedido para que fosse instaurado procedimento de jurisdição voluntária no âmbito da insolvência transnacional, que foi distribuído perante a 2ª vara de falências e recuperações judiciais de SP. A petição inicial foi indeferida e o processo extinto sem resolução do mérito, considerando a ausência de interesse de agir ou utilidade no pedido de cooperação apresentado, uma vez que se entendeu que não há efeitos a serem produzidos no Brasil. Além disso, a sentença proferida em 30/3/21 destacou a ilegitimidade do Ministério Público para tutelar o resultado de um futuro processo que não poderia promover. Referida sentença foi mantida em sede de apelação pelos desembargadores da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, por meio de acórdão prolatado em 31/8/21.5

A legislação brasileira, portanto, modernizou-se para atender às demandas do mundo globalizado e a celeridade com que o assunto chegou ao Poder Judiciário nos casos dos Grupos PROSAFE e LATAM é apenas uma prova da relevância da regulação estatal sobre o tema.

Retornando-se ao caso que envolve o conflito Rússia vs Ucrânia, é natural que as consequências da insolvência da Nord Stream 2 sejam sentidas imediatamente por trabalhadores, empresas e Estados europeus. Também é possível que, diante da multiplicidade de agentes envolvidos na operação de Projeto de tão grande escala, a empresa venha a se socorrer de mecanismos similares àquele utilizado pelo Grupo PROSAFE, seja no Brasil, seja em outros países.

A Nord Stream 2 é um entre milhares de agentes impactados pelo conflito. Muito provavelmente, outras empresas também enfrentarão situações semelhantes, com implicações em todo o mundo – as ações do Sberbank, maior banco russo, perderam 99,99% de seu valor desde o início de 2022 na London Stock Exchange, por exemplo. Reitera-se, portanto, a necessidade de se reconhecer os efeitos de insolvências transnacionais e a modernidade da Lei de Insolvência brasileira, reformada com base na Lei Modelo UNCITRAL.

Assim, é essencial que se busquem soluções adequadas do ponto de vista financeiro-econômico para o conflito, sem fechar os olhos para as vidas humanas perdidas e para o profundo impacto histórico causado na região.

___________

1 https://correctiv.org/en/latest-stories/2022/03/01/sanctions-tracker-live-monitoring-of-all-sanctions-against-russia/

2 Como destaca Ricardo Pinto da Rocha Neto: “o propósito identificado na Lei Modelo em Insolvência Transnacional é o de prover mecanismos efetivos para lidar com casos de insolvência cross-border e, também, para promover os objetivos de: a) Cooperação entre o Judiciário e outras autoridades competentes desse Estado e dos Estados estrangeiros envolvidos em casos de insolvência internacional; b) Maior segurança jurídica para o comércio e investimentos; c) Justa e eficiente administração de casos de insolvência cross-border que protejam os interesses de todos os credores e terceiros interessados, incluindo o devedor; d) Proteção e maximização do valor do patrimônio do devedor; e (e) Facilitação da retomada de negócios e empresas com problemas financeiros, inclusive protegendo investimentos e preservando empregos”. (Ricardo Pinto da Rocha Neto, Apontamentos Sobre Insolvência Transnacional: A Lei Modelo Da Uncitral, O Regulamento 2015/248 Do Parlamento Europeu E A Experiência Jurisprudencial Brasileira Em Casos De Insolvência Cross-Border, Revista de Direito Recuperacional e Empresa, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018)

3 Francisco Satiro E Sabrina Maria Fadel Becue, Insolvência Transnacional: Regime Legal Jurisprudência Em Formação, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 337 - 355

4 Processo 0129945-03.2021.8.19.0001

5 Processo 1028368-61.2021.8.26.0100

Luis Fernando Hiar
Graduado na FDUSP e pós-graduado no Insper. Advogado de Solução de Conflitos de Lobo de Rizzo Advogados, com foco em disputas societárias, contratuais, bancárias, corporativas em geral e insolvência.

Letícia Tayuri Franco Sugano
Graduada na FDUSP e na Université Jean Moulin Lyon III, através do programa PITES. Atualmente, cursando Master pelo mesmo programa. Advogada de Solução de Conflitos de Lobo de Rizzo Advogados, com foco em disputas societárias, contratuais, bancárias, corporativas em geral e insolvência.

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