Inúmeras e complexas causas levaram à guerra entre Ucrânia e Rússia, algumas anunciadas pelos próprios governos, outras mascaradas. Os motivos da guerra têm sido vastamente discutidos, assim como a natureza, a validade e a eficácia das sanções aplicadas à Rússia pelos países não envolvidos no conflito. Pouco se discute, porém, sobre o fato de que as razões para a guerra ultrapassam os conflitos de geopolítica e relacionam-se diretamente ao avanço antidemocrático na Rússia. Justamente por isso, as sanções poderiam ter sido aplicadas com antecedência, talvez evitando a catástrofe bélica. Tem -se afirmado, é certo, que essa não é a guerra dos russos, mas de um homem. É preciso aprofundar, porém, alguns temas:
a) o que é a guerra de um homem, sua relação com o regime democrático, com votações válidas e o normal funcionamento das instituições?
b) qual o compromisso político a ser assumido pelas nações democráticas, principalmente pela União Europeia, mais diretamente atingida pela guerra, dada a proximidade geográfica?
A Rússia já há algum tempo vem dando sinais de retrocesso democrático. É certo que ela não chegou a ser uma democracia desenvolvida, mas a existência formal de três Poderes, assim como a realização de eleições deixou transparecer que poderia vir a ser uma democracia, ainda que com inúmeras falhas. Com a renúncia do Primeiro ministro Boris Yeltsin, Putin está no poder desde 1999. Já são 22 anos. Nesse período, de forma estratégica vem alternando entre a condição de Primeiro ministro e Presidente. Em junho/julho de 2020 foi realizada uma consulta popular que admitiu a alteração da Constituição viabilizando que concorra a mais dois mandatos, permanecendo no poder até 2036. De acordo com a Comissão Eleitoral Russa, a votação dessa alteração constitucional teve o apoio de 78% da população. Não se pode ignorar, porém, que a aparente medida democrática (consulta popular) contrasta com a possibilidade contínua de um mesmo indivíduo no poder. Democracias têm como base igualdade, e a consequente possibilidade de amplo acesso ao poder por parte de outros cidadãos. Consultas populares podem ser utilizadas (e são) por líderes populistas para mascarar medidas autoritárias, e trazer uma maquiagem de legitimidade à medida violadora de preceitos institucionais básicos. Foi exatamente o caso. Para além dessas questões relacionadas ao poder institucional, o governo russo tem ampliado sua política de intolerância e de limitação das liberdades cívicas, como a liberdade de expressão1.
Pois bem, nesse grave passo histórico dado pela Rússia rumo ao autoritarismo, sanções duras não foram aplicadas, repreensões contundentes não foram feitas. Putin abocanhou tempo e espaço no poder, tornando-se senhor da representação da vontade do povo russo. Seu governo então já tinha o rumo do governo de um homem, guiado mais pelo ego que pelo apreço aos direitos.
Dada a relação direta da democracia com a liberdade, e dado o compromisso de inúmeras cartas internacionais com a liberdade, a democracia passou a ser o regime de governo incentivado no âmbito das organizações internacionais. Há, em verdade, um compromisso global com a democracia, sobretudo diante da percepção de que as contra-ondas democráticas conduzem a guerras e a violações de direitos2. Assim, é que a União Europeia3, por exemplo, ampara e estimula democracias mesmo fora da União4, e pode aplicar sanções a países com retrocesso democrático, dentro e fora da União, como vem fazendo com a Polônia e a Hungria5. O efeito contagiante das oscilações políticas globais pode ser apontado como um motivo para medidas de política externa dessa natureza, mas há também o compromisso universal com a dignidade do ser humano. A Rússia, portanto, poderia ter sido sujeita a sanções pelo caminhar antidemocrático.
Algum período depois do novo quadro institucional russo traçado em 2020, consolidando seu governo autoritário e ascensão do ego, Putin comanda atos de guerra contra a Ucrânia, com efeitos devastadores não apenas a ambos, mas a inúmeras conquistas civilizatórias globais. Nesse momento, sanções começam a ser aplicadas à Rússia e a cidadãos russos ligados a Putin. É certo que as penalidades, nesse contexto, podem levar ao enfraquecimento do governo russo e a seu recuar, mas chegam tardiamente, quando danos já foram causados, quando era previsível o caminhar agressivo antidemocrático. As votações ilegítimas e populistas que propiciaram o mantado desequilibrado e o funcionamento irregular das instituições levaram à guerra de um homem.
A escalada do unilateralismo conduz ao desprezo pelo diálogo, propiciando, com mais facilidade, não apenas violações a direitos internos, mas também a guerra.
Esse é um alerta que talvez leve a uma nova onda democrática ou pelo menos à redução da maré contrária, com a união mais atenta de países democráticos e com a percepção de que o descuido democrático possui efeitos danosos que ultrapassam fronteiras. Democracias não são situações consolidadas de determinados governos; requerem esforço contínuo, local e global para defesa da liberdade e da paz.
1 Dados do Observatório da Democracia apontam retrocessos na liberdade na Rússia, e o Instituto V-Dem (Varieties of Democracy) no qual o Observatório funciona, classifica o país como espécie de “autocracia eleitoral” (fonte: https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf, acessado em 21 de março de 2022.)
2 HUNTINGTON, Samuel. 1994. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, passim.
3 O Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht), no Título V, que trata das disposições gerais relativas à ação externa da União e de disposições específicas relativas à política externa e de segurança comum, dispõe em seu art. 21.1 que “a ação da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objetivo promover em todo o mundo: democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do Homem e das liberdades funda mentais, respeito pela dignidade humana, princípios da igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional.”
4 Em 2021, por exemplo, diante das mudanças políticas pelas quais vem passando a Tunísia, o Parlamento Europeu adotou a Resolução 2021/2903(RSP) - 21/10/2021, (fonte: https://oeil.secure.europarl.europa.eu/oeil/popups/summary.do?id=1680186&t=e&l=fr-, acessado em 14de março de 2022), reafirmando sua ligação com o processo democrático tunisino e expressando sua profunda preocupação com a concentração de poderes nas mãos do presidente. Foi solicitado ao governo tunisino, entre outras ações, providenciar o regular funcionamento de uma corte constitucional para evitar interpretações errôneas e o uso abusivo da Constituição. Além disso, na proposta de resolução também foi sublinhado que o financiamento da União Europeia a países terceiros está subordinado ao progresso democrático do país, essencial para a retomada econômica, o que seria evidenciado pela necessidade de instituições estáveis e operantes. (fonte: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/B-9-2021-0529_IT.html, acessado em 14 de março de 2022)
5 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/ue-nega-recurso-de-polonia-e-hungria-e-podera-cortar-verbas-de-paises-que-violam-democracia.shtml, acessado em 14 de março de 2022.