O direito empresarial já começou a responder aos efeitos macro e microeconômicos da guerra Ucrânia e isso implica em um processo de intensa desglobalização, opção pela economia vertical e pela celebração de acordos minilaterais entre países. Vejamos.
Fazendo as vezes de um cientista político (que procura compreender o mundo em que vivemos, conforme nos ensinou Ascarelli), podemos marcar o pontapé inicial do auge da globalização quando a China entrou na Word Trade Organization – WTO em 1970. Houve ganhos no plano mundial pela admissão de milhões de novos trabalhadores, com incremento da produtividade pelo recurso a uma mão de obra barata e especializada. Um dos efeitos importantes foi a caracterização de um choque deflacionário global, tendo aumentado a taxa de crescimento sob um juro nominal e real em queda constante1.
No sentido acima, buscando melhores preços, por exemplo, a contabilidade e os serviços de call center dos Estados Unidos da América se mudaram para a Índia, país no qual a língua inglesa é muito falada tendo em vista a colonização britânica que ali teve lugar durante muitas décadas2.
Proliferaram acordos econômicos internacionais para o aproveitamento de reservas estratégicas de commodities, tais como os petróleo e do gás, que hoje assombram o mundo ocidental com a sua cara feia, pois ninguém havia cogitado da chegada de um ensandecido Putin, o pequeno, no governo despótico da Rússia, apoiado pelas forças armadas e por um bando de empresários tornados bilionários, na fundação de uma plutocracia que, em paralelo, permitiu o surgimento e o crescimento de uma poderosa classe média naquele país, agora em processo de forte derretimento.
Não que as coisas andassem todas às mil maravilhas, mas certamente foi um período de grande enriquecimento para empresas e países que se aproveitaram das oportunidades oferecidas pelo processo de globalização. Eis que, senão quando, um processo nacionalista mais acentuado foi deflagrado nos Estados Unidos da América, tendo se notado uma disputa da pela liderança da tecnologia de ponta, aproveitado por políticos da extrema direita, que passaram a ser liderados por Donald Trump, com o surgimento do Tea Party3, e da defesa da America First.
Todas as pessoas que passaram pelos Estados Unidos da América nas últimas décadas e fizeram compras nas lojas e supermercados daquele país puderam notar a marcante ausência do “made in USA” nas etiquetas dos produtos à venda. Praticamente tudo é e ainda será por muito tempo “made lá fora”, pois os custos trabalhistas extremamente baixos praticados nos países do extremo oriente atraiam os empresários da indústria e do comércio e os consumidores americanos. O resultado foi o de um progressivo fenômeno de fechamento de fábricas naquele pais e da caracterização de uma dependência dos fornecedores estrangeiros em praticamente de todas as áreas da industrialização, com a perda de milhões de empregos locais. Isso foi agravado pela migração de milhares de indianos, paquistaneses e representantes de outras nacionalidades do extremo oriente, que aceitaram empregos mal remunerados nos Estados Unidos, tirando o trabalho do americano médio, que tem baixa escolaridade (a grande maioria termina os seus estudos no “high scholl”, sem perspectiva de seguir para uma universidade paga) e é despreparado para crescer em um mundo tecnológico. Uma das escolhas que fazem esses jovens para poderem sobreviver é o alistamento nas forças armadas.
O advento da pandemia do coronavírus mostrou de forma muito dolorosa a dependência dos sistemas de saúde ocidentais de produtos (como as prosaicas seringas) e de insumos cuja fabricação foi localizada em países como a Índia e a China, demonstrando uma dependência sensível, em prejuízo da saúde dos seus habitantes do resto do mundo. A resposta, claro, está na busca da eliminação ou da redução elevada de tal dependência, dentro também de um processo de desglobalização. Isso porque, entre outros fatores, os produtores durante a pandemia – e agora, durante e depois da guerra - se orientaram pelas leis do mercado, vendendo a quem pagasse mais. O mundo econômico é cruel e amoral, como se sabe.
Ora, nesse cenário, a guerra contra a Ucrânia mostrou de forma ingente que é necessário desfazer-se de parceiros perigosos, cujas ações são dirigidas para a realização de desejos políticos, despidos de racionalidade lógica e econômica. Daí que investimentos importantes foram cancelados e, consequentemente, parcerias e contratos já foram rompidos e continuarão a sê-lo, sendo muito alto o preço a ser pago por essas medidas pelos países afetados e por seus habitantes. E como a confiança perdida não se recupera, não importa que a Rússia retroceda e prometa não mais encetar aventuras desnaturadas. Mesmo porque a sua economia estará arruinada quando isso tiver um fim, hoje, amanhã ou depois, inexoravelmente.
E o direito empresarial, o que tem a ver com tudo isso?
É importante ressaltar que a iniciativa privada não dará conta sozinha das mudanças que se evidenciam necessárias, mesmo porque ela dependerá das políticas públicas que os países ocidentais adotarão na defesa dos seus interesses, pois os efeitos econômicos dessa guerra demandarão a reforma da infraestrutura local, como no que diz respeito ao petróleo, ao gás, à tecnologia, à produção em grãos em larga escala, com consequentes efeitos no setor do transporte, nele envolvida a logística. Nesse sentido, os empresários ficarão, em algumas áreas, necessariamente a reboque das medidas econômicas que os Estados ocidentais adotarão.
A segurança econômica dos Estados se dará, como mencionado, segundo processos de desglobalização, objetivando eliminar ou reduzir a dependência interna. No caso da inviabilidade da primeira opção, acordos internacionais deverão ser celebrados, passando-se a uma preferência quanto àqueles de natureza bilateral ou, ao menos, minilateral, ou seja, com a participação apenas de alguns Estados cujas economias sejam complementares umas às outras e que sejam absolutamente confiáveis. Chega de surpresas desagradáveis.
A preferência por acordos mililaterais ou bilaterais será tanto dos governos quanto das empresas, localizando-se os mais adequados naqueles em que as partes se encontram em posições complementares, uma necessitando da outra. Mas quando ocorrem disputarem os mesmos bens de natureza escassa o que valerá será a regra imutável do meu pirão primeiro.
Naturalmente, do seu lado a iniciativa privada recorre ao direito empresarial já foi posto em ação para efetivar as iniciativas que já têm sido tomadas e que se seguirão ao longo dos próximos meses e anos. As áreas pertinentes principais a essas mudanças, de forma direta, serão o direito contratual e o societário, não podendo se perder de vista que alguns microssistemas interrelacionados com aqueles darão a sua parcela de contribuição. Vejamos.
No tocante ao direito societário, o fortalecimento das empresas e a segurança da continuação de suas atividades se dará segundo um processo de economia interna vertical, ou seja, desde o acesso às matérias primas, passando-se por todas as etapas da produção, até se chegar ao produto final, a ser colocado nas mãos dos destinatários. Esse mecanismo de concentração se dará por meio do recurso aos institutos de trocas de controle, de aquisição de empresas ou de associação entre elas, de fusão, de incorporação e de eventuais cisões objetivando uma especialização operacional (no esquema das chamadas operações de M&A). E problemas novos surgirão a cada momento, entre eles o do pagamento das obrigações e da performance desses acordos.
Dentro do cenário acima, claramente estarão deflagrados processos de concentração empresarial que poderão interferir na livre concorrência, devendo ser chamado o direito concorrencial para a solução das questões pertinentes. Ora, certamente se colocará a necessidade de grande fortalecimento das empresas para poderem enfrentar os desafios à sua frente no caminho da desglobalização e da adoção de uma política de produção vertical, sendo o caso de se indagar se o direito concorrencial tem à sua disposição ferramentas adequadas ao atendimento de tais necessidades, resultado de uma situação excepcional, que não foi escolhida e muito menos deflagradas por aquelas, que foram apanhadas contra a sua vontade nas ondas de um grande tsunami.
O instrumento mais importante para a consecução dos objetivos das empresas será o recurso direito contratual, referente aos mais variados tipos de contratos, sejam eles os já conhecidos e legislados (nominados ou típicos), sejam os que venha a ser adredemente criados pela vontade das partes, no exercício pleno sua autonomia privada (inominados ou atípicos), na busca de novas soluções para novos problemas. Veja-se que, tal como aconteceu com o surgimento da pandemia do covid-19 há dois anos, milhares de contratos então em vigor foram negativamente afetados, tendo havido fortíssima judicialização de demandas sobre diversos aspectos do seu não cumprimento. A causa aqui é outra, mas muitos dos efeitos serão os mesmos.
Como forma de operacionalização das obrigações contratuais, da conformação das necessárias garantias e da circulação daqueles acordos, os empresários recorrerão a diversos tipos de títulos de crédito, tanto no plano interno como internacional. Paralelamente no Brasil e também alhures, o desenvolvimento das instituições e dos sistemas de pagamentos todo tipo de crédito tem passado a ser formalizado em recebíveis, registrados em entidades autorizadas para tanto pelo banco central do Brasil e da comissão de valores mobiliários, o que facilita a prova de sua titularidade e permite sua circulação com segurança, ainda que a eles seja aplicável o regime do direito comum e não o cambial. Para este autor estamos vivendo o prenúncio do desaparecimento dos títulos de crédito estrito senso, tal como os conhecemos até hoje.
Sem dúvida alguma o direito bancário tem um lugar especial nesses novos tempos, tendo se notado uma profunda reviravolta nele ocorrida como decorrência das sanções econômicas impostas a Rússia pelos países membros da OTAN. Pagar e receber com segurança em uma moeda aceita no mercado financeiro internacional se tornou uma necessidade premente. E paralelamente ao sistema oficial de pagamentos, nesses momentos tenebrosos as criptoativos passaram a exercer um papel relevante, seja para o bem, seja para o mal. No tocante ao bem, por exemplo, elas têm sido utilizadas para fazer chegada diversos tipos de ajuda à Ucrânia, nas pessoas dos seus governantes e dos seus cidadãos cercados em seus abrigos, muitas vezes improvisados, e passando por todo o tipo de necessidades.
Do lado do mal a mente humana é capaz de engendrar todo o tipo de crimes cujo proveito seja operado e escondido pelos criptoativos, não cabendo aqui discorrer sobre eles.
É claro que quem tem elevado apetite por riscos, aproveita a oportunidade para ganhos por meio da especulação com criptoativos, o que em si mesmo não é um mal. Nesse mercado o risco é extremamente elevado. Procurando administrar o cenário que, na verdade, não é de risco, mas de incerteza (dado que os parâmetros não são mensuráveis) os mineradores de criptoativos exploram também mercados de dívidas, reforçam os seus balanços e suas linhas de crédito, cobrindo-se também com posições em valores mobiliários negociados nos mercados tradicionais. A diversificação de carteiras é uma receita conhecida para o sustento de eventuais perdas4.
Esses mineradores estão muito preocupados com a elevação da taxa de hash da rede global que, por meio de cálculos muito complicados, mede o poder de processamento de todos os mineradores. Quanto mais essa taxa aumenta, menor o lucro daqueles. E é evidente o efeito da guerra da Ucrânia nesse ambiente, dado o risco normal de um evento dessa natureza, que traz consigo a elevação do custo da energia elétrica, a par do seu eventual racionamento em algumas áreas. Em situações como as geradas por essa guerra ficarão de difícil acesso a linhas de crédito, à tomada de empréstimos e a operações de hedge, a busca de segurança.
Percebe-se, portanto, em se tratando de fenômenos passíveis de contaminarem o sistema financeiro internacional, não poderão as Autoridades Monetárias ocidentais deixar de tomarem medidas preventivas e repressivas, alcançando a instituições financeiras sob a sua tutela. Do lado da Rússia, somente cabe se defender – certamente sem muito sucesso -, procurando de alguma forma o acesso ao grande volume de divisas que estão aplicadas em diversas instituições financeiras ocidentais às quais fecharam suas portas para aquele país.
Veja-se que no dia 16 deste mês sancionou um projeto de lei que legaliza as criptomoedas naquela país, de forma a poder ter algum tipo de controle interno sobre elas. Trata-se de uma medida heroica, porque todos sabemos da imensa quantidade de problemas que podem ser deflagados a partir dessa opção5.
Como se verifica, o mercado de capitais internacional também é fortemente atingido, manifestando-se efeitos diretos nos mercados nacionais bastando acompanhar as cotações das diversas bolsas que operam pelo mundo afora desde a conflagração do ataque russo.
Em todo esse quadro grave e complexo, espera-se que a China opere segundo as regras da razão econômica, percebendo que se ela pode ter algum ganho no apoio à Rússia, certamente a perda será muito maior. Esperemos o desdobrar dos acontecimentos.
Finalmente, aplicar-se-á o direito penal empresarial, nos termos da lei 9.613/98, com a nova redação dada pela lei 12.683/12, toda vez que se der o ocultamento ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de infração penal. E uma guerra, nos seus diversos desdobramentos, é um campo muito propício para que agentes inescrupulosos dela se aproveitem para auferirem ganhos ilícitos.
À guisa de conclusão
Por todo o exposto, nota-se o desafio extremo colocado diante dos governos dos países ocidentais. Se a Ucrânia sofre com centenas de seus cidadãos verdadeiramente assassinados pelas tropas russas que, além disso, causam destruição de forma indiscriminada, sofremos nós outros que aqui vivemos e trabalhamos, pessoas naturais e empresas, ao lado de todos aqueles que essa insânia vem alcançando.
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1 Vide a respeito “O racha entre o Ocidente e o Oriente vai aprofundar a desglobalização”, jornal Valor Econômico de 16.03.2021.
2 A respeito da migração dos call centers, lembremo-nos do filme “Despachado para a Índia - Outsorced”, de 2006, em que um dos personagens principais segue dos Estados Unidos para aquele país para treinar o seu substituto e ensinar os atendentes a usarem o sotaque norte americano.
3 O nome Tea Party é uma clara alusão ao conhecido episódio da história norte americana, quando os americanos se sublevaram contra a Lei do Chá, anunciada em 1773 pela Inglaterra, que determinava a obrigação da venda de todo o chá negociado pelas Treze Colônias fosse obrigatoriamente feita por meio da Companhia das Índias Ocidentais. Indignados, os americanos invadiram o porto de Boston e destruíram carregamentos de chá daquela multinacional. O Tea Party, portanto, seria o partido que encabeçaria uma nova revolução contra o opressor inimigo.
4 Veja-se sobre o assunto “Mineradores de criptomoedas se preparam para inverno prolongado enquanto margens de lucro contraem”, in Jornal Valor Econômico de 17.03.2022.
5 Cf. Infomoney de 17.03.2022.