No período da ditadura civil-militar brasileira, houve perseguições políticas, torturas, desaparecimentos forçados, censuras e mortes arbitrárias, dentre outras coisas. A transição democrática, que pouco contou com a participação popular, foi acordada entre parte do governo anterior e do novo. Como afirma Mark Tushnet, torna-se muito difícil se desvencilhar de um poder autoritário anterior, em uma transição desta forma, tendo em vista a estabilização e manutenção de privilégios. A ruptura, que vem acompanhada de verdade, justiça e reparação, é inexorável à ideia de liberdade.
A isso se credita a autoanistia aplicada aos perpetradores de diversas dessas violências narradas, privilégios financeiros, e inclusive a possibilidade de haver mais militares no governo atual do que há no governo, por exemplo, da Venezuela1. Ainda, pela ausência de uma política de transição, é possível que um deputado federal homenageie um torturador e não seja punido, pelo contrário, se torne presidente. Ainda, isto suporta um conjunto das mesmas práticas ditatoriais atrozes praticadas até hoje, com uma impunidade que sempre lastreou a realidade do país.
Num dos mais recentes atentados a direitos, professores e profissionais de saúde denunciam a instrumentalização do disque 100 pelo governo Federal para perseguição política e para a adoção de uma política de vigilância. O disque direitos humanos, um serviço de disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos, está sendo utilizado para denunciar aqueles que pensam de modo diferente do governo. O disque 100 é uma ferramenta muito importante de denúncia de violações de direitos, só de 1º de janeiro a 12/5/21 o disque 100 e o ligue 180 receberam 115,5 mil denúncias de violações a direitos humanos, resultando em mais de 435 mil violações de direitos2.
Em ação apresentada no STF, a CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e a CNTS - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde alertaram para abusos. A ação de descumprimento de preceito fundamental 754 alega que as iniciativas do governo federal estão em total desacordo com a jurisprudência do STF e que o instrumento criado para registro de violações foi convertido em aparato de patrulhamento ideológico, tanto contra a vacinação, como a respeito de suposta ideologia de gênero.
Mesmo que no dia 14 de fevereiro, o ministro Ricardo Lewandowski tenha determinado que o governo federal deixasse de utilizar o serviço disque 100 como meio de denúncia para constrangimentos realizados contra pessoas que não se vacinaram contra a covid-19, outras críticas ao uso indevido do serviço são de extrema gravidade. Como, por exemplo, a denúncia sobre "ideologia de gênero" como motivação para violação de direitos humanos, no Manual de Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos3. "Isso aconteceu em dezembro de 2021 no município de Resende/RJ, onde a direção da escola municipal Getúlio Vargas recebeu intimação da polícia civil devido a uma denúncia anônima por supostamente expor os alunos a "conceitos comunistas" e a "ideologia de gênero"4.
O próprio STF já se pronunciou acerca da inconstitucionalidade das leis estaduais e municipais que proíbam ensino de “ideologia de gênero” nas escolas5. A pretensa ideologia de gênero é apenas o ensino sobre educação sexual (métodos contraceptivos, identificação de consentimento) e liberdade de orientação (priorizando respeito e empatia acima de tudo).
Outra consequência nefasta desta cooptação do disque 100 é a invisibilização dos dados de violências contra pessoas LGBTQIA+, pois não há como obtê-los precisamente acerca da violência motivada por homofobia e transfobia. Com isso, os dados que já são tão rarefeitos nessa seara, se tornarão ainda mais, impossibilitando políticas públicas sérias e de qualidade.
Esta confusão ou falta de dados que permitam o planejamento, aplicação e monitoramento de políticas públicas efetivas contra grupos vulnerabilizados não é por acaso. No mesmo sentido é a ausência de censo desde 2010, excedente já em 2 anos a periodicidade máxima permitida em lei. A contaminação de dados institucionais é um plano de governo, que permite aos líderes populistas publicizarem análises incorretas àqueles que os apoiam.
Com práticas autoritárias busca-se deslegitimar as estruturas mais basilares de nossos corolários de igualdade, respeito aos direitos humanos e democracia. Subverte-se, assim, o canal de defesa dos direitos humanos para um canal de violações a direitos com práticas cuja inconstitucionalidade já foi atestada pelo nosso sistema de justiça. Faz parte da caixa de ferramentas dos autoritários, como nos lembra Schepelle, reduzir a eficácia de estruturas constitucionais, por meio delas mesmo, ou seja, dentro de suas competências. Há limites para a extensão em que os populistas autoritários podem subverter as estruturas constitucionais antes de se tornar um ditador; na histórica democrática recente nunca estivemos tão próximos deste perímetro!
1 Disponível em: bbc.com/portuguese/brasil-51646346.
2 Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/maio/disque-100-tem-mais-de-6-mil-denuncias-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-em-2021#:~:text=Disque%20100%20e%20Ligue%20180%20em%202021&text=O%20Disque%20100%20e%20o,435%20mil%20viola%C3%A7%C3%B5es%20de%20direitos.
3 Pag 73: 2.11. Em razão de orientação sexual/ ideologia de gênero: Quando a agressão é praticada em razão da direção ou inclinação do desejo afetivo e/ou erótico de cada pessoa ou por ideologia de gênero. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/vitimas-de-violacoes-de-direitos/publicacoes/MANUAL_TAXONOMIA_A5.pdf.
4 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/02/09/governo-e-denunciado-no-stf-por-usar-disque-100-para-perseguicao-politica.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola.
5 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/325473/e-inconstitucional-lei-que-proibe-ensino-de--ideologia-de-genero---decide-stf.