Migalhas de Peso

A diferenciação entre o usuário de serviço público e consumidor

Não é necessário se gastar rios de tinta para se concluir que nas determinações específicas concernentes ao usuário de serviço público devem ser utilizadas para dirimir eventuais conflitos.

18/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O direito do consumidor teve origem nos Estados Unidos, país que não adota a noção de serviço público consagrada entre nós.

Apesar de exercer papel fundamental em nossa sociedade, o direito do consumidor tem em seu DNA as características pertinentes para regular situações privadas e funciona como um importante instrumento jurídico para limitar a liberdade e condicionar as atividades econômicas, protegendo, assim, particulares.

Durante longos anos, por falta de legislação específica para o usuário do serviço público, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência pátria, utilizaram-se dos artigos dos artigos 6º, inciso X e 22, do CDC, para resolver eventuais conflitos entre o usuário e a concessionária de serviço público de transporte aéreo.

Acontece que, com a vigência da lei 13.460/17, que dispõe sobre a participação, proteção e defesa dos usuários dos serviços públicos da administração pública, os aludidos dispositivos não devem mais ser aplicados.

A realidade que não há mais como se confundir a figura do usuário do serviço público com o consumidor, pois, além de se calcarem em fundamentos constitucionais distintos, hoje há legislação específica para tratar dos temas concernentes ao usuário do serviço público.

Como se sabe, o tratamento oferecido ao usuário do serviço público pela Constituição Federal e pela Lei é diverso do dispensado ao consumidor: a concessão, no art. 175; a proteção ao consumidor, nos arts. 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V.

Nessa linha de raciocínio, é de bom alvitre observar as palavras as palavras da Ministra Carmen Lúcia, do STJ, por ocasião do julgamento no Pleno da ADIn 4.478/Amapá, julgada em 01.09.2011:

“O consumidor é aquele que consome; portanto, quem pode pagar pelo consumo paga, quem não pode não usa. O usuário é aquele a quem o Estado, por força da Constituição e das Leis, atribui uma situação diferenciada. Daí o meu apego ao que o Ministro Toffoli chamou atenção, o Ministro Fux também, ao fato de que estamos a lidar, aqui, com usuário, aquele que é a ponta a que se chega mediante a prestação do serviço público no sistema de concessão...

De outro lado, a invocação do art. 24, V e VII, da C.F. ao presente caso encontra ainda outro óbice. É que a relação entre o usuário e a prestadora de serviço público possui uma natureza específica, informada por princípios próprios, notadamente o da solidariedade social (art. 3°, I, CF), que não pode simplesmente aproximada da corriqueira relação consumerista, na qual prepondera a ótica individualista, como bem ressaltado pelo voto proferido pelo Ministro Eros Grau no julgamento da Medida Cautelar na Adin 3.322/DF, Rel. Min. Cezar Peluzo. Não é por outra razão, aliás, que a sede material específica, na Constituição Federal, para a instituição das balizas infraconstitucionais nesse tema reside no já referido art. 175, parágrafo único, cujo inc. II expressamente reclama a atuação do legislador para a disciplina dos “direitos dos usuários”. Portanto, descabe a referida ilação de que todo serviço federal que faça nascer uma relação jurídica na qual figure, de um lado, o prestador de serviço e, de outro, o usuário seja necessariamente uma relação de consumo, capaz de ser regulada pela legislação estadual”.

As questões concernentes à concessão de serviço público não podem ser analisadas com a mente do direito privado. Por esse motivo, são criados os órgãos reguladores, que têm a capacidade de efetuar análises com bases seguras e especificação técnica, como prescreve BRUNO MIRAGEN, um dos maiores especialistas em direito do consumidor do país:

“A atividade regulatória tem por um dos fundamentos de sua legitimação a especialidade técnica, o que equivale a dizer, a conformação de estrutura administrativa que permita a órgão especializado a agentes públicos especialistas na matéria regulada, a produção normativa, fiscalização e controle de um dado setor econômico. Esta especialidade conforma-se com o reconhecimento de certa discricionariedade técnica justamente em face da especialidade técnica presumida do regulador, de modo que a Lei deixa maior espaço de atribuição de significados pela via infralegal, confiante na capacidade deste de obter a melhor norma por intermédio de sua capacitação”(A Nova Administração Pública E O Direito Admiministrativo, RT, 2ª ed, pags. 90/91)”.

A realidade é que a relação jurídica de consumo é calcada por regras sem ligação com o sistema público, razão pela qual a lei 13.460/27, intitulada de Lei do Usuário Público, prescreve em seus artigos 5º ao 8º quais são os direitos e deveres do usuário de serviço público.

É importante lembrar, ainda, que as empresas que exercem o importante papel na concessão de serviço público e estruturadas pelo regime de concessão e permissão previstos na lei 8.987/95 e no art.175 da C.F., não podem ter suas eventuais questões solucionadas sob a lente do direito privado, mas sim sob a visão irrestrita do direito público.

Determina o art. 25 da lei 8.987/95 que incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros e o poder concedente.

O aludido dispositivo deixa claro a ligação entre a concessionária de serviço público, o usuário e o poder concedente, não pairando dúvidas no sentido de que a eventual controvérsia a ser dirimida é de caráter público e deverá ser resolvida pelo órgão técnico legimitado.

Determina o inciso VI do art. 29 da lei 8.987/95 que incumbe ao poder concedente cumprir e fazer cumprir as disposições regulamentares do serviço e as cláusulas contratuais pertinentes e do contrato.

Preceitua o parágrafo único do art. 30 do aludido diploma legal que a fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgão técnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e, periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissão composta de representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários.

Mais uma vez, convém observar as palavras da Ministra do STF Carmém Lúcia quando Relatora da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADIn 2.649/DF (Tribunal Pleno, DJe. 17.2008):

“A titularidade do serviço público de transporte coletivo é do Poder Público. Por isso, tal atividade volta-se para o bem-estar da sociedade. Aponta que, mais que o interesse particular, o que marca o regime jurídico da prestação dos serviços públicos é o interesse público, pois é o Estado que está atuando, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão: “O que define, portanto, o regime de prestação dos serviços públicos é a necessidade da sociedade, a demanda que com eles busca o Estado responder, a fim de aperfeiçoar os fins afirmados no sistema”.

Nessa direção é a jurisprudência do STJ:

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECURSO ESPECIAL EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CONSUMIDORES. INTERRUPÇAO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. REGIME DE CONCESSÃO. DIREITO PÚBLICO. COMPETÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO.

I – Conflito de Competência instaurado nos autos do Recurso Especial interposto nos autos de recurso especial interposto nos autos de ação civil pública intentada em face de empresa fornecedora de energia elétrica, pretendendo a condenação ao pagamento de indenização pelos danos materiais e morais causados aos consumidores diante da interrupção pelos danos ma

teriais e morais causados aos consumidores diante da interrupção no fornecimento de energia elétrica.

II – Embora a relação jurídica estabelecida entre a empresa prestadora do serviço e o consumidor regida por regras de direito privado estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor – lei 8.078/90, cujos dispositivos reportam-se expressamente a serviços públicos, não há alteração do tema central da controvérsia, que trata da suspensão do fornecimento de energia elétrica, esta que se encontra incluída no regime de concessão e permissão de serviço público essencial e não do contrato celebrado entre as partes.

III – Em cumprimento ao disposto no parágrafo único do art. 175 da Constituição Federal, a lei 8.987/95 dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos, arrolando os direitos dos usuários, dentre os quais se incluem o recebimento de serviço adequado com regularidade, continuidade, eficiência, segurança.

IV – A natureza jurídica controvertida não é de direito privado, mas sim, de direito público, regida pela Constituição Federal e pelas regras de direito administrativo, matéria de competência da Primeira Seção desta Corte, nos termos do artigo 9º, parágrafo 1º, inciso XI, do Regimento Interno.

V – Precedentes das turmas que compõe a Primeira Seção que têm decidido questões dessa mesma natureza em ações ajuizadas em face de atos de suspensão de fornecimento de energia elétrica.

VI – Conflito conhecido para declarar a competência da Primeira Seção desta Corte. (Relator Ministro Gilson Dipp, Julgado em 16.09.2013, Corte Especial, CC 122559 DF 2012/0098291-4)”.

Registre-se que a lei 13.460/17 apresenta em seu artigo 2º as seguintes definições: a) usuário, pessoa física ou jurídica que se beneficia ou utiliza, efetiva ou potencialmente, de serviço; e b) serviço público – atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública.

O que se depreende é que as regras consumeristas devem ser aplicadas apenas quando houver lacuna e subsidiariamente, devendo ser prestigiado o princípio da especificidade.

Aliás, entendimento análogo já foi apresentado pelo do STJ, quando enfrentou a discussão a respeito da juridicidade do corte no fornecimento de energia com relação ao usuário inadimplente. O conflito entre os arts. 22 e 42 do CDC e o art. 6º, § 3º da lei 8.987/95 foi afastado, para se aplicar o artigo 6º da legislação especial dos serviços públicos.

Por tratar-se de um sistema jurídico específico devidamente regulamentado, com as devidas resoluções ou portarias de setor de concessão de serviço público, deve ele prevalecer sobre as regras de direito consumidor.

ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, em sua obra DIREITO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS, editora Forense, páginas 519/520, leciona que:

“o CDC não pode ser aplicado indiscriminadamente aos serviços públicos, já que eles não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação de manutenção de um sistema prestacional coletivo.

Os serviços públicos, ao revés, constituem atividades de prestação de bens e serviços muitas vezes titularizadas pelo Estado com exclusividade, só podendo ser prestados por particulares enquanto delegatários (res extra commercium). A razão para tais atividades econômicas serem retiradas da livre iniciativa e submetidas a um regime jurídico tão especial se explica pelo fato de visarem a assegurar os interesses dos cidadãos enquanto integrantes de uma mesma sociedade, não como pessoas individualmente consideradas”.

Na mesma linha de raciocínio, manifesta-se MARÇAL JUSTEN FILHO, em sua TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERVIÇO PÚBLICO, editora DIALÉTICA, página 560:

“Isso significa reconhecer a preponderância do regime de Direito Administrativo sobre o direito do consumidor. A disciplina do direito do consumidor apenas se aplicará na omissão do Direito Administrativo e na medida em que não haja incompatibilidade com os princípios fundamentais norteadores do serviço público. Em termos práticos, essa solução pode gerar algumas dificuldades. O que é certo é a impossibilidade de aplicação pura e simples, de modo automático, do Código de Defesa do Consumidor no âmbito dos serviços públicos”.

       CESAR A. GUIMARÃES PEREIRA, em seu livro USUÁRIOS DE SERVIÇOS PÚBLICOS, editora Saraiva, página 218:

“O primeiro deles já foi examinado e corresponde à disciplina da atuação dos prestadores no exercício da liberdade que eventualmente lhes for conferida pela regulamentação do serviço público. Neste ponto, o CDC atua plenamente, mas com caráter provisório. Aplica-se apenas na ausência das leis a que alude o art. 37, §3º, da Constituição e o art. 27 da EC 19/1998. Como se disse, isso confirma a distinção entre consumidor e usuário: no momento em que houver a disciplina própria do usuário, será impossível aplicar por qualquer via o CDC. É o que se passa no Estado de São Paulo. Com a edição da Lei Estadual de proteção ao usuário, não há fundamento para a aplicação do CDC. É irrelevante determinar se a proteção própria do usuário é mais ou menos ampla ou abrangente que a oferecida pelo CDC. Trata-se de figuras distintas, que recebem disciplina diversa baseada nas suas especificidades. Se a proteção da Lei própria é julgada insuficiente em face da determinação constitucional, isso deve ser argüido – se for o caso – como fundamento para o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Somente nessa situação – de invalidação da Lei própria do usuário – é que se poderia cogitar de um retorno à aplicação (limitada) do CDC.

Desse modo, a disciplina própria do consumidor, contida no CDC, somente é aplicável aos usuários de serviço público (a) nos espaços de liberdade deixados pela regulamentação do serviço público e (b) provisoriamente, enquanto não editadas as leis pertinentes ao serviço público em questão (pelo ente político que titulariza o serviço público em questão ou, no caso do art. 22, XXVII, da Constituição, pela União)”.

Por tais razões, não é necessário se gastar rios de tinta para se concluir que nas determinações específicas concernentes ao usuário de serviço público devem ser utilizadas para dirimir eventuais conflitos envolvendo as concessionárias de serviço público e o usuário, não sendo aplicadas as regras concernentes ao Código de Defesa do Consumidor.

Márcio Vinícius Costa Pereira
Advogado com 30 anos de experiência. Procurador da ANP durante a gestão de David Zilberstein. Advogado Sênior do Escritório Tozzinifreire durante 7 anos. Sócio do Escritório Villemor Amaral por 11 anos. Durante os últimos 20 anos, foi responsável pela conta de grandes clientes, com destaque no setor aéreo, consumidor e energia. Atualmente, é sócio do escritório PFA - Pereira França Arantes Advogados.

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