Migalhas de Peso

Retroatividade da norma jurídica favorável ao acusado e a coisa julgada

Não há retroação da lei benéfica, quando se cuidar de infrações e sanções que ‘não sejam criminais’.

18/3/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Em artigo recente, publicado em 09 de março, no Migalhas, abordei a retroatividade dos efeitos da norma jurídica posterior favorável à pessoa física, ou jurídica, que tenha cometido infração, isto é, praticado ilícito jurídico, administrativo ou penal.

Assim, os efeitos das modificações legislativas, quanto ao ‘fato típico’ (culpa; dolo), prazos prescricionais e demais situações jurídicas, a meu ver, devem retroagir em benefício da pessoa que tenha cometido ilícito penal ou administrativo

Enfatizei o ponto de vista segundo o qual a norma editada após o cometimento da infração, se, de qualquer modo, favorecer a pessoa, deverá retroagir, cujo entendimento aplica-se às modificações introduzidas pela lei 14.320/21 na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), com repercussão geral reconhecida na Suprema Corte (ARE.843.989, rel.min. Alexandre de Moraes).

Neste momento, trago à tona a questão de ter havido o trânsito julgado (esgotamento das vias recusais) da decisão judicial, ou administrativa, que tenha imposta a penalidade.

A situação seria esta: “A” comete ilícito jurídico;  a decisão que impôs a respectiva penalidade transita em julgado; no entanto, sobrevém legislação, benéfica a “A”. Pergunta-se: essa legislação posterior, benéfica ao condenado, retroagirá? “A” será beneficiado com a novel legislação?

Pelos fundamentos referidos naquele artigo, a princípio, não vi motivo para não se aplicar a retroatividade da norma favorável, mesmo após a coisa julgada da decisão que tenha imposta a sanção. Isso porque, o princípio da retroatividade da norma favorável ao infrator decorre da presunção da inocência das pessoas, válvula-mestra do regime democrático de Direito! No entanto, meditando a respeito desse tema, passei a entender de forma diferente. Em brevíssimas palavras tentarei esclarecer a minha compreensão acerca da matéria.

No Direito Penal, no qual se cristalizou o entendimento da retroatividade da norma favorável, mesmo após o trânsito em julgado (CF, art.5º XL; CPB art.2º, §2º), e no qual há, principalmente, sanções pessoais que atingem a liberdade física do condenado, isto é, a prisão (detenção ou reclusão), justifica-se tratamento jurídico favorável ao infrator.

É a hipótese da retroatividade da norma posterior favorável ao condenado, ainda quando já tiver havido o trânsito em julgado da decisão

De outra parte, nas demais áreas do Direito, inclusive na hipótese da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), o trânsito em julgado da decisão afasta a possibilidade da retroação da norma favorável.

Pois, a segurança jurídica, a estabilidade das relações sociais, o interesse público, protegido pela norma que estabelece o ilícito e a pena, conduzem a situação jurídica ao ponto derradeiro: não há possibilidade de rediscutir a matéria sub judice, devido à coisa julgada (ou a preclusão administrativa), em virtude do esgotamento das vias recursais (judiciais ou administrativas), nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição, o qual garante o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido.

Parece-me correto esse entendimento, na medida em que a retroação da norma jurídica benéfica, após a “res judicata”, é exceção no ordenamento jurídico; logo, somente no Direito Penal pode ser reconhecida: por fatores históricos – não é o caso destrinchá-los -, ante os ditames constitucionais e por conta da gravidade das sanções dessa disciplina jurídica.

No entanto, se, voluntária ou coercitivamente (determinação de autoridade), houverem sido cumpridas, em sua totalidade, as sanções administrativa ou penal, não se poderá falar em retroação da norma jurídica favorável, porquanto o ato jurídico-punitivo, neste caso, devido ao cumprimento total da pena, esgotou-se, perdeu eficácia, extinguiu-se. Trata-se, no campo prático, de fato consumado!

Em suma, não há retroação da lei benéfica, quando se cuidar de infrações e sanções que ‘não sejam criminais’, uma vez tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão que impôs a penalidade, ou esta tenha sido cumprida na integralidade. 

Heraldo Garcia Vitta
Advogado e Professor de Direito. Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Mestre e Doutor Direito (PUC-SP).

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