Por maioria, 9 a 2, vencidos o relator, ministros André Mendonça e o ministro Ricardo Lewandowiski, o STF rejeitou ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo partido novo, que visava a suspensão do expressivo Fundo Eleitoral para 2022, no montante de R$ 4,9 bilhões de reais.
Essa decisão do pretório excelso foi muito pouco debatida nos meios jurídicos, no tocante ao seu acerto ou desacerto.
O relator sufragou a tese de que esse Fundo Eleitoral atentaria contra os princípios da proporcionalidade e moralidade, posto que, por ser exorbitante, desviaria dinheiro que seria alocado em outros segmentos sociais relevantes, tais como infraestrutura, meio ambiente, saúde, educação, ciência e tecnologia, assistência social etc. Sua Exa entendeu que deveria ser aplicado ao Fundo Eleitoral de 2022 aquele previsto para 2020, no valor de R$ 2,1 bilhões de reais. Esse voto foi acompanhado pelo ministro Ricardo Lewandowiski.
Ao inaugurar a divergência, o ministro Nunes Marques, averbou que a decisão do Congresso Nacional, sancionada pelo presidente da República, foi a legítima e soberana, não sendo dado ao Judiciário invadir a competência dos outros poderes para cassá-la .
O ministro Barroso, muito embora tenha divergido do relator, aderiu parcialmente a ele, no que foi seguido pelas ministras Rosa Weber e Carmem Lúcia, na medida em que considerou inconstitucional a previsão de valor do Fundo Eleitoral estatuída na LDO, mas, de outro lado, vislumbrou a constitucionalidade da Lei Orçamentária para 2022.
O instituto do Fundo Eleitoral --- instituído em 2017 para suprir a falta do financiamento privado das campanhas eleitorais, vedado por decisão da Suprema Corte --- nos parece legítimo , vez que, ao subsidiar as campanhas eleitorais, salvaguarda o princípio democrático.
Todavia, se nos afigura, o chamado “fundão”, atentatório contra os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e moralidade, malferindo, ademais, outros sobranceiros valores constitucionais, como a proteção ao meio ambiente, saúde, educação, ciência e tecnologia, infraestrutura, assistência social etc, o que acaba por resvalar negativamente no fundamento da dignidade da pessoa humana. Aliás, não à toa, todos ou quase todos os ministros da corrente majoritária assinalaram a expressividade do valor do “fundão”.
Com efeito, num país como o nosso em que afloram a miséria, a desigualdade social e a pobreza, desalocar recursos, em especial, de programas e políticas sociais para viabilizar as campanhas eleitorais, inobstante a nobreza deste objetivo, nos parece um rematado despautério. Efetivamente, só para exemplificar, malgrado a pujança do nosso agronegócio, as pessoas não têm o que comer, vivendo às custas de auxílios emergencial, auxílio brasil e quejandos.
Pensamos, com a devida vênia dos que entendem diferentemente, que o STF, no julgamento em apreço, se ateve muito mais ao aspecto formal, no que atina à separação de poderes, relegando a plano secundário outros valores constitucionais e direitos sobranceiros.
Nesse diapasão, não é demasiado assinalar que o Judiciário, notadamente a Suprema Corte, tem sido frequentemente instado, nos controles concentrado e difuso, a cassar atos dos outros poderes, em especial, o legislativo, o que o faz com proficiência e desassombro. De fato, não é incomum vermos o Judiciário invectivando contra leis e atos administrativos do Executivo, inclusive suprindo a mora e omissão dos outros poderes, num legitimo ativismo judicial, como sói acontecer nas maiores democracias do mundo civilizado. Nem por isso tem ecoado e prevalecido o entendimento de que o Judiciário, ao assim proceder, estaria invadindo a competência dos outros poderes
Nesse particular, não é ocioso frisarmos que o governo da razão, exercido pelos magistrados, pode sim, em determinadas situações, se opor ao princípio majoritário, que preside a atuação dos legislativo e Executivo, conforme ensina o próprio ministro Barroso, ao tratar do tema política e direito, verbis:
“A separação entre Direito e política tem sido considerada como essencial ao Estado constitucional democrático. Na política, vigoram a soberania popular e o princípio majoritário. O domínio da vontade. No Direito, vigora o primado da Lei (the rule of law) e o respeito aos direitos fundamentais. O domínio da razão”.
Omissis
Já no plano da aplicação do Direito, sua separação da política é tida como possível e desejável. Tal pretensão se realiza, sobretudo, por mecanismos destinados a evitar a ingerência do poder político sobre a atuação judicial. Isso inclui limitações ao próprio legislador, que não pode editar leis retroativas, destinadas a atingir situações concretas” (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, Saraiva, 5ª edição, pag 448)
Assim, em um cotejo axiológico entre princípios e regras constitucionais, explicitado na contenda travada entre os votos da maioria e da minoria no caso vertente, pensamos que o princípio da separação de poderes, mesmo que de sua pretensa violação se cuide, deve sucumbir em face dos outros valores constitucionais derivados do princípio da dignidade da pessoa humana, tais como a proteção à saúde, educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, assistência social, infraestrutura etc.
No presente caso, com a devida vênia, o STF afrontou os princípios da proporcionalidade e moralidade, senão vejamos.
O princípio da proporcionalidade, em duas das suas três vertentes, a saber, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, não foi obsequiado na hipótese vertente. A uma, quanto à necessidade, porque é patente que o valor do fundo eleitoral poderia ser menos gravoso e oneroso do que aquele estabelecido para 2022. A duas, no que atina à proporcionalidade em sentido estrito, porque os custos serão maiores do que os benefícios, dado que valores constitucionais estelares foram desprezados pelo STF no caso em tela, em favor do princípio da separação de poderes, que, como demonstrado, não restou violado.
Quanto ao princípio da razoabilidade, também abraçado no direito pátrio, pensamos que não é razoável o valor do “fundão”, com o fito simplesmente de financiar campanhas eleitorais, em detrimento de políticas sociais tão relevantes para um povo tão sofrido como o nosso.
A afronta ao princípio da moralidade, de seu turno, resulta, só por si, do elevadíssimo valor do fundo eleitoral.
Ademais, não se pode perder de vista que em nosso país vigora, de há muito, o presidencialismo de coalisão, expressão esta cunhada pelo sociólogo Sergio Abranches, para traduzir o toma lá dá cá entre o legislativo e o Executivo, sendo certo que nesse jogo serão prestigiados, na distribuição dos valores do “fundão”, os caciques eleitorais, como ocorre com o centrão, em prejuízo de outras siglas partidárias de menor expressão.
Por fim, como não se pode mudar, via de regra, as decisões plenárias do STF, que o presente estudo, sem muita pretensão, sirva para a reflexão dos interessados e que possa a colenda corte repensar sua posição em outras oportunidades.