Migalhas de Peso

Considerações sobre a responsabilidade civil do Estado por danos ao meio ambiente

Pode ocorrer que o Estado e um particular estejam envolvidos em uma mesma situação danosa ao meio ambiente e, da análise dos pressupostos resulte que o segundo seja responsabilizado e o primeiro não.

14/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A Constituição de 1988 estabeleceu um amplo sistema de responsabilização ambiental pelo qual as pessoas jurídicas de direito público, ou seja, a União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas respondem pelos danos causados ao meio ambiente. Há que se distinguir, entretanto, se o Estado responde sempre de forma objetiva e também sobre quais são os pressupostos do dano ambiental para fins de responsabilização do Estado.

No que pertine à responsabilidade civil do Estado por dano ambiental este só responde se sua omissão concorreu em concreto para criar ou aumentar um risco específico e não aqueles danos que resultam no “risco geral da vida”. Deste modo, nas grandes cidades é comum a instalação de pessoas pobres em áreas públicas, criando os chamados conglomerados habitacionais. As pessoas que aí passam a habitar correm os riscos decorrentes de sua própria conduta. Ao Estado cabe o dever genérico de cuidar do meio ambiente daquela localidade, em conexão com todos os seus outros deveres, mas não a defraudação da confiança social de ter criado ou aumentado um risco específico. Deste modo, não é passível de responsabilização porque sua omissão, embora contrária à ordem jurídica, não é elemento constitutivo causal dos efeitos daquela situação1.

Quanto ao pressuposto da prova na responsabilidade ambiental como acima descrita, o que se exige do tribunal não é acerca da verificação da conditio sine qua non, mas sim sobre a criação/aumento do risco, o que é bem menos2. Ou ainda, em outras palavras, se exige a convicção sobre a realidade do fato da criação/aumento do risco, rejeitando-se a suficiência de um nexo causal meramente provável ou possível.

Para tanto importam nesse âmbito as regras sobre a repartição do ônus da prova. Ao lesado exige-se a prova da criação ou aumento do risco pela instalação; feita essa demonstração, o juiz deve presumir (iuris tantum) a materialização do risco.

Ou seja, no primeiro passo do juízo de imputação (criação/aumento do risco), não deve inverter-se o ônus da prova — relevam sim, com especial relevância, v.g. as regras de probabilidade estatística, etc. Só uma vez convencido o juiz de que a instalação pode ter causado o dano (porque criou/aumentou o risco da sua verificação) é que se justifica a presunção. Ou seja, a presunção é legítima porque tem em conta a dificuldade objetiva de prova da vítima fundamentando-se, em geral, nos princípios de tutela do ambiente (que valem também na responsabilidade ambiental) e, em especial, no risco criado ou aumentado pela instalação3.

Assim sendo, no âmbito da multicausalidade do dano ambiental4, na hipótese de causalidade cumulativa, cada agente, por definição, aumenta o risco de verificação do fato total: assim sucede no exemplo em que cada sujeito, por si e independentemente dos demais, faz determinadas descargas poluentes no rio. É claro que cada um dos referidos sujeitos aumentou o risco da verificação da morte dos peixes.

Em segundo lugar, ainda que se considere de exigir o conhecimento do contributo dos demais, os princípios ambientais, e designadamente o princípio da prevenção, obrigariam a entender essa exigência no sentido de uma mera consciência (difusa) da aptidão danosa potencial do fato seja de forma isolada, seja conjugadamente com o fato de terceiros. Em síntese, quando haja causalidade cumulativa, todos são responsáveis: todos aumentaram o risco que se materializou no resultado5.

No caso de causalidade aditiva, potencializada ou sinergética se todos aumentam o dano, seja através da linear adição do respectivo contributo, seja multiplicando ou acelerando o evento danoso então, por definição, todos aumentam o risco não permitido ou previsto da norma legal. Logo, todos são responsáveis6.

Na eventualidade de uma causalidade alternativa, se não é possível apurar em concreto a quem é imputável o dano, e não é possível provar quais os concretos contributos causais de cada qual, todos os sujeitos são responsáveis, desde que, todos os agentes tenham praticado uma ação potencialmente lesiva e exista uma conexão causal potencial entre essa ação e o dano, exigindo-se ainda que o contributo de cada sujeito seja, por si só, susceptível de ter causado a totalidade do dano7.

Desta maneira, nessa perspectiva, na causalidade alternativa ressalva-se a responsabilidade daqueles apenas remotamente associados ao dano que não criaram ou aumentaram o risco juridicamente relevante de verificação do efeito lesivo, como é, em geral, o caso do Estado e o dos pequenos emitentes de poluição. Como esclarece Ana Perestrelo de Oliveira, frequentemente, o resultado lesivo resulta de contribuições causais muito diversas de alguns “grandes emitentes” e de muitos “pequenos emitentes” (v.g., automóveis). Ora, admitindo a solução da responsabilidade solidária, poderíamos ser conduzidos à absurda conclusão de que um “pequeno emitente” seria responsabilizado por um dano para o qual só em termos ínfimos contribuiu. Mas nem por isso se deve afirmar, pelas razões expostas, o caráter conjunto da responsabilidade. O problema é prévio ao da repartição da responsabilidade e resolve--se perguntando se o sujeito verdadeiramente criou ou aumentou um risco juridicamente relevante de verificação do efeito lesivo. Se o seu contributo para o dano existe mas é insignificante no contexto do processo poluente global, não é possível afirmar-se que ele aumentou o risco não permitido ou previsto pela norma. Em suma, o “pequeno emitente” mantém-se na esfera do risco permitido, não podendo, consequentemente, ser responsabilizado civilmente8.    

O que se conclui dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais aqui trazidos, é que a responsabilização do Estado por dano ambiental é tarefa complexa e não pode ser deduzida de referências apressadas a uma suposta responsabilidade integral, mas exige sim o estudo acurado dos pressupostos dessa responsabilidade, nomeadamente, a efetividade do dano, sua quantificação econômica, sua individualização em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas, a antijuridicidade, o nexo de causalidade, a imputação ao Estado e  a repartição do ônus da prova.

A responsabilidade do Estado sob regime de direito público, ademais, é distinta e independente da alcançada pelo particular. Assim, pode ocorrer que o Estado e um particular estejam envolvidos em uma mesma situação danosa ao meio ambiente e, da análise dos pressupostos resulte que o segundo seja responsabilizado e o primeiro não.

_____

1 BRASIL. STJ. 1ª turma. Administrativo. Processo civil. Ação civil pública. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos. Impossibilidade do juiz substituir a Administração Pública determinando que obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. Recurso provido. Recurso Especial 169.876/SP. Recorrente: município de São Paulo. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Ministro José Delgado. Brasília, 16 de junho de 1988. Disponível em www.stj.gov.br.

2 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental. Coimbra: Almedina, 2007, p. 89.

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit., p. 95.

STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil por dano ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 198.

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit., p. 106.

6 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit., p. 107.

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit., p. 107.

OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. oit.. p. 112.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. Recurso Especial nº 169.876/SP. Recorrente: Município de São Paulo. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Ministro José Delgado. Brasília, 16 de junho de 1988. Disponível em www.stj.gov.br . 

10 MOTA, Mauricio. Responsabilidade civil do Estado por balas perdidas In: Mário César Bucci. (Org.). Revista de Responsabilidade Civil. Campinas: Mizuno, 2000, v. 2, p. 134-139.

11 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental. Coimbra: Almedina, 2007.12 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil por dano ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

Mauricio Mota
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil pela UERJ e Procurador do Estado do Rio de Janeiro

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