Migalhas de Peso

A retroatividade da norma posterior favorável ao acusado

A nova valoração, firmada na lei, se favorável ao suposto infrator, deve ser considerada pelo Judiciário e pela Administração Pública, nas suas respectivas áreas de atuação, por conta das novas concepções da sociedade, contempladas no Legislativo, ao aprovar o projeto de lei, e no Executivo, ao sancioná-lo. Haverá respeito à Constituição e à lei!

9/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Recordo-me, nos anos 80 e 90, na Promotoria de Justiça, no Estado de São Paulo, quando solicitava ao Juiz da Vara arquivamentos de inquéritos policiais sem lastro probatório para o oferecimento da denúncia; ou a absolvição de acusados, inclusive perante o Tribunal do Júri, conforme o adágio in dubio pro reo. Depois, na Magistratura Federal, segui a mesma linha, em diversos setores do Direito. Finalmente, na nobre função de Advogado e na honrosa atividade de Professor, nesse tempo todo (1986-2022), tenho destacado, de maneira intuitiva, ou de forma técnica, os princípios jurídicos na interpretação e aplicação do Direito.

Possivelmente, ao longo desses anos, obtive resultados proveitosos, em benefício dos cidadãos e das pessoas jurídicas, inclusive o próprio Estado, devido à interpretação das regras a partir dos princípios, base e fundamento da ordem jurídica!

O Direito, sob o aspecto normativo, contém regras e princípios; apesar dessa ‘dicotomia’, há uma hierarquia normativa: princípios conferem a estrutura jurídica às regras; visam, numa última análise, dar sentido e alcance às regras (interpretação), conferindo à ordem jurídica ‘alguma’ estabilidade (nunca será total).

Também o Direito é ciência prática. É preciso verificar a aplicação dos princípios e das regras em consonância ao caso concreto, mediante ‘critérios práticos’, cuja ‘referência’ será a razoabilidade, ou a proporcionalidade. Não se pode deixar de lado a hipótese concreta, com suas múltiplas variantes, sob pena de violação à praticidade do Direito.

Logo, a experiência da pessoa é crucial na interpretação e aplicação da ordem jurídica, na medida em que ela detém melhores condições para perscrutar a situação concreta, em virtude de fatores psíquicos, sociais, econômicos e políticos que circundam a situação jurídica e, assim, valorar, adequadamente, os ‘diversos aspectos’ dos fatos sob julgamento. A vivência do jurisconsulto é a melhor forma de chegar-se ao resultado prático pretendido pela ordem jurídica!

Apesar disso, os direitos e garantias fundamentais, expressos e implícitos, contidos no Texto Constitucional, estabelecem lindes de interpretação jurídica, mesmo em situações em que o intérprete esteja determinado, ou forçado, à análise ‘percuciente e pragmática’.

Pois, fruto de anos de lutas e considerações de ordem prática, os direitos fundamentais consagraram-se na ordem jurídica, inclusive internacional, amoldando, assim, a interpretação das regras normativas.

O profissional do Direito não pode vilipendiar direitos fundamentais, e nem restringir o alcance e sentido dos princípios, exceto em casos específicos, quando houver ‘confronto’ entre princípios, bens ou valores, ou naquelas hipóteses em que a própria lei excepciona, de forma adequada, a aplicação de um ou outro. Mesmo assim, a técnica do Direito apresenta ‘critérios apropriados’ para esses casos, os quais, neste momento, não me cabe apreciar.

Isso posto, tenho certa a ideia de que a norma posterior favorável ao ‘acusado’ (art.5º, XL, CF), deve sempre retroagir; trata-se de princípio geral de Direito, o qual advém de outro princípio, conhecido no Direito Penal, favor rei, ou mesmo àqueloutro, de envergadura absoluta, a presunção de inocência das pessoas (art.5º, LVII,CF).

Esses e outros princípios correlatos estão imbricados, porque decorrem do regime Democrático de Direito (art.1º, “caput”,CF), cujo fundamento está na dignidade da pessoa humana (art.1º, “caput”, III, CF) e nos direitos fundamentais; dentre outros vetores, na liberdade empresarial e na proteção à atividade econômica (art.3º, II; 5º, XIII; 170, CF).

Com efeito, não apenas pessoas físicas ‘sofrem’ as consequências da violação da ordem jurídica (penalidades); pessoas jurídicas podem cometer infrações penais e administrativas e, desse modo, ser penalizadas, em ambas as instâncias. Logo, tudo o que afirmo quanto à retroatividade da norma posterior favorável aplica-se a pessoas físicas e jurídicas, e açambarcam os âmbitos penal e administrativo.

Nessa área, há o precioso voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no Recurso Extraordinário (ARE843.989), no qual reconhece a Repercussão Geral da retroatividade da lei 14.230/21, cuja legislação introduziu mudanças significativas na lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92). A manifestação do eminente Ministro fora acompanhada, até o momento, pela maioria necessária da Corte para o julgamento da questão.

No fundamentado voto, o ilustre Relator menciona posições jurisprudenciais e doutrinárias antagônicas, inclusive - para minha grata satisfação -, trabalhos de minha autoria, em que defendo a tese da retroação da norma favorável à pessoa acusada!  

Portanto, a nova valoração, firmada na lei, se favorável ao suposto infrator, deve ser considerada pelo Judiciário e pela Administração Pública, nas suas respectivas áreas de atuação, por conta das novas concepções da sociedade, contempladas no Legislativo, ao aprovar o projeto de lei, e no Executivo, ao sancioná-lo. Haverá respeito à Constituição e à lei!

Heraldo Garcia Vitta
Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Advogado e Consultor. Especialização Direito Processual Civil, Civil e Empresarial (ITE, Bauru,SP). Mestre e Doutor Direito Público (PUC-SP).

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