Migalhas de Peso

Decisões hediondas: o perigo de um judiciário legiferante

Há inconstitucionalidade nas decisões que vinham comparando o crime de tráfico de drogas como equiparados a hediondos para imposição de sanções mais gravosas.

8/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A famigerada lei 13.964/19, popularmente conhecida como Pacote Anticrime, trouxe à tona velha discussão há muito debatida: a equiparação dos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes aos crimes hediondos para fins de progressão de regime prisional. O debate, que não é novo, tinha um posicionamento favorável à equiparação, tendo em vista a antiga redação do art. 2º, §2º da lei 8.072/901.

Com as alterações promovidas pela lei 13.964/19, o parágrafo segundo do referido artigo foi revogado, não havendo, portanto, a manutenção dessa contagem diferenciada de tempo para a progressão de regime no que tange aos crimes oriundos do tráfico de drogas ilícitas.

Como era de se esperar, houve uma polvorosa no mundo jurídico, com a adoção dessa nova postura legal, e logo começaram, acertadamente, os pedidos de progressão de regime, os quais passaram a serem devidamente aceitos por alguns juízes.

No entanto, alguns Tribunais Estaduais têm revisto esse posicionamento dos juízes de piso, mostrando que, mesmo com a mudança legislativa, essa celeuma está longe de chegar à uma justa e acertada solução definitiva.

A equiparação entre os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e os crimes hediondos, mesmo no regramento legal antigo, não tinha razão para existir. O que acontecia antes, e parecem querer manter esse status quo agora, é uma confusão de conceitos e raciocínios lógicos, com o claro objetivo de tentar saciar a sanha punitivista estatal.

Percebe-se que mesmo na redação antiga a norma legal não fazia a equiparação dos institutos (crime de tráfico ilícito de drogas e crimes hediondos), mas sim a mesma cominação legal, o que são coisas totalmente diferentes.

Por ausência de previsão constitucional sobre o que seriam os tais crimes hediondos, ficou a cargo do legislador derivado estabelecer esses parâmetros, o que foi feito através da Lei n. 8.072/90.

Após essa previsão inicial, no ano de 2007, houve uma significante alteração legislativa na lei de crimes hediondos, promovida pela lei 11.464/07, que, indo além e, ao nosso sentir, equivocadamente normatizando um comando constitucional, estabeleceu um agravamento da progressão de regime para os ditos crimes hediondos e equiparáveis.

Por fim, mais recentemente, veio a lei 13.964/19, que ficou conhecida como Pacote Anticrime, e, alterando novamente a lei 8.072/90, acabou por revogar o parágrafo segundo do artigo segundo desta lei. Importante observar também que, o legislador infraconstitucional, nesta inovação legal, foi – mais uma vez – omisso na obrigação que tinha de definir o até hoje abstrato e difuso conceito e definição do que seriam os tais crimes hediondos equiparados.

Ao cumprir o comando constitucional e definir as punições mais severas aos crimes hediondos e os a ele equiparados, o legislador infraconstitucional esquivou-se de definir e delimitar explicitamente quais seriam os tais crimes equiparados. Ao agir dessa forma, o Poder Legislativo deixou a cargo do Poder Judiciário, a definição legal desse importante instituto jurídico.

O desempenho da atividade judicante, por este Poder mostrou-se, no entanto, que foi um erro daquele deixar conceito tão importante desnudo de quaisquer balizas legais. O que se viu, pela omissão do Legislativo, foi o Judiciário assumindo uma função que não lhe cabia, definindo tal conceito “por equiparação” da forma mais gravosa aos réus, o que é constitucionalmente vedado pelos princípios constitucionais da legalidade e da anterioridade penal.

Poderíamos dizer que crimes hediondos são aqueles que mais causam repulsa em nossa sociedade, ou seja, aquelas condutas mais moralmente reprováveis.

Não é difícil imaginar algumas condutas que poderiam ser aqui inseridas. Na verdade, foi exatamente isso o que fez o legislador infraconstitucional, ao estabelecer expressamente os crimes hediondos no artigo primeiro da lei de crimes hediondos.

Mas essa definição legal cria um problema para o nosso sistema jurídico o qual os nossos legisladores não se prestaram até os dias atuais a resolver: se os crimes hediondos seriam aquelas condutas ilícitas mais moralmente reprováveis, como definir quais seriam os crimes que – apesar de não serem os mais moralmente reprováveis – ainda assim mereciam ser a ele equiparados?

Fazer a distinção entre o que é crime hediondo, crime equiparado ao hediondo e “crime comum” é o cerne e a tarefa principal do Poder Legislativo, enquanto representante eleito da “vontade popular”. Ao se furtar de sua obrigação constitucionalmente imposta de elucidar essa questão, o Legislador deixou um vácuo que vem sendo, ao longo de todos esses anos, deficitária e prejudicialmente preenchido pelo Poder Judiciário.

Pensando na lógica de tripartição dos Poderes, elaborada por Montesquieu, temos que ao Poder Judiciário coube o papel de julgar imparcialmente os conflitos de interesses da sociedade. É o Poder Judiciário que decide, em última instância, o “certo e o errado” em nossa sociedade. No entanto, para tomar essa decisão, o judiciário precisa de balizas para os valores sociais sobre os quais se fundamentarão as suas decisões. E aqui reside o grande ponto: o Poder Judiciário não é, ou pelo menos não deveria ser, um “representante da vontade popular”.

Com relação aos crimes equiparados aos hediondos, a nossa Constituição Federal de 88 não deixa qualquer margem interpretativa para a determinação de quais seriam estes. Ela apenas se limita a determinar um rigor maior na punibilidade, não estendendo a eles os institutos da fiança e a impossibilidade de anistia e graça.

No âmbito infraconstitucional, a omissão legal é a mesma. Em ambos os casos, há apenas a previsão de sanções penais mais gravosas para essa espécie de delitos, sem, no entanto, deixar qualquer parâmetro para defini-los.

Por razão lógica, havendo lacunas na lei – e elas sempre existem – não cabe ao Poder Judiciário decidir, inovar, ou alargar preceitos legais para fazer valer a sanção penal, atribuindo à norma uma amplitude maior que aquela originalmente definida em seu texto, especialmente quando o resultado for mais gravoso ao indivíduo.

A Constituição Federal autoriza que lei ordinária defina quais crimes deverão ser considerados hediondos e a eles equiparados. Foi o que ocorreu com a regulamentação legal proposta na lei de crimes hediondos, lei 8.072/90. No entanto, ao se analisar a referida lei, seja a versão original, seja a atual, é fato notório que em nenhum momento o legislador igualou ou deixou pelo menos indícios dessa vontade de equiparação.

O pensamento contrário, de que o legislador infraconstitucional nunca teve a intenção de equiparar o tráfico de drogas aos crimes hediondos, no entanto, é perfeitamente plausível.

Ao exercer o seu papel constitucional, e regulamentar essa importante questão, o legislador derivado não inseriu o crime de tráfico ilícito de entorpecentes no rol taxativo de crimes hediondos. Se fosse essa a intenção, o legislador a teria feito, ainda que em apenas uma de suas vertentes.

Outro argumento é que o legislador, em todos esses anos desde a promulgação da Constituição e da lei de crimes hediondos, nunca se preocupou em delimitar legalmente quais seriam os ditos crimes equiparados aos hediondos.

Não havendo menção legal expressa que identifique o tráfico de drogas como crime hediondo, e não havendo qualquer tipo de definição legal quanto a quais seriam os crimes equiparados a hediondos é perfeitamente lógico, racional e gramaticalmente falando, inferir que não foi determinado ainda, por nosso Poder Legislativo, os ditos crimes equiparados aos hediondos.

Inexistindo tal determinação legal, é mais lógico ainda concluir que não há motivos racionais que justifiquem a tergiversação do Poder Judiciário ao exercer atividade legiferante de forma transversa. Trata-se de verdadeira inconstitucionalidade que deve ser veementemente rechaçada por nossa sociedade.

A Constituição Federal não trouxe parâmetros constitucionais suficientes para balizar decisões judiciais no tocante à definição de quais seriam os ditos “crimes equiparados a hediondos”. Limitou-se tão somente a trazer uma série de agravamento das sanções que a eles deveria ser imposta.

O que temos, no atual cenário legal brasileiro, em termos concretos, é que a Carta Magna concede ao Poder Legislativo derivado a possibilidade de definir quais seriam os crimes equiparados aos hediondos, e, portanto, sujeito às mesmas sanções. O legislador secundário, por seu turno, não exerceu ainda essa prerrogativa.

Não há, seja na Constituição, na lei de crimes hediondos, ou ainda em qualquer lei esparsa, qualquer disciplina legal que defina – expressamente – a equiparação por muitos pretendidas. Logo, se não há equiparação legal, feita pelos representantes democraticamente eleitos do povo, não há que se cogitar interpretações quaisquer que sejam nesse sentido. Percebe-se, neste ponto, uma invasão de competências.

Podemos concluir que, se as decisões que antes sustentavam a equiparação dos crimes de tráfico ilícito de drogas aos crimes hediondos já poderiam ser tidas como inconstitucionais, agora, com a expressa revogação do parágrafo segundo do artigo segundo da lei de crimes hediondos pelo Pacote Anticrime, mais razão ainda há para se reconhecer a inconstitucionalidade dessas decisões.

O nosso ordenamento é uno e indivisível, devendo ser interpretado conforme os princípios e preceitos previamente estabelecidos na Constituição. Fugir disso, em último grau, é fugir sorrateiramente do campo das leis para ingressar na seara dos abusos de poder.

Felizmente nosso Estado Democrático de Direito parece caminhar, a duras penas, para uma nova fase, cada vez mais de Direito, deixando cada vez menos espaços e lacunas para que interpretações e silogismos sejam feitos. O império da lei parece reinar triunfante mais uma vez, sobre o império das vontades pessoais.

__________

1 Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

I - anistia, graça e indulto;

II - fiança.

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.

§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (lei de Execução Penal).

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira
Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

Luciana Barros Duarte
Advogada criminalista. Fundadora do Escritório Barros Assessoria e Consultoria Jurídica. Especialista em Direito Penal pela PUC/SP. Graduada pela USJT em 2003. Atuante na área criminal

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

O Direito aduaneiro, a logística de comércio exterior e a importância dos Incoterms

16/11/2024

Encarceramento feminino no Brasil: A urgência de visibilizar necessidades

16/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024

Gestão de passivo bancário: A chave para a sobrevivência empresarial

17/11/2024