Está em curso perante o plenário virtual do STF o julgamento das ADIns 6.581 e 6.582 (com finalização designada para dia 8, próxima terça-feira), ajuizadas pelo PTB - Partido Trabalhista Brasileiro e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que apontam a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal (com redação dada pela lei 13.964/19 – “Pacote Anticrime”)1, cujo texto impôs a revisão do decreto de prisão preventiva a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de se tornar ilegal.
Já votaram os ministros Edson Fachin (relator), Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, cujas decisões divulgadas, com sutis diferenças entre si, contrariam o texto expresso da nova regra legal. As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, por sua vez, acompanham a divergência com o relator, mas convergem, todos eles, no essencial. Curiosamente, o resultado prevalente até aqui, apesar de não fazer reparos à constitucionalidade do dispositivo, nega que a prisão se torne ilegal “automaticamente” ante a inércia judicial após 90 dias, e ainda enfatiza que o juiz competente que não decidir sobre a manutenção da prisão dentro do prazo deverá ser “instado” a fazê-lo, sem prejuízo da medida cautelar anteriormente decretada.
Todavia, a interpretação literal do artigo em julgamento não permite tal conclusão, pois desde sempre, como se sabe, in claris cessat interpretatio. Quando a lei diz que o ato revisional se dará mediante decisão fundamentada e de ofício, não cabe, nem mesmo à mais alta Corte, interpretar tal comando no sentido de que o juiz deverá ser provocado ou instado a assim agir, meio juridicamente inconcebível de contornar o sentido da expressão “de ofício”, de modo a desvirtuar o que foi claramente definido pelo Parlamento, respeitada a independência entre os poderes e as regras de um sistema democrático.
De outra parte, se a segregação cautelar não renovada no prazo de 90 dias torna-se ilegal, como se extrai do dispositivo vergastado, que outra consequência poderia advir que não fosse a imediata revogação e consequente soltura do preso? A regra do parágrafo único art. 316 do CPP, que obriga o juiz a adotar a iniciativa de elaborar novo juízo sobre a prisão preventiva dentro do prazo legalmente estipulado tem como sanção, para o caso de descumprimento, a inviabilidade da sua manutenção, inclusive por imposição constitucional (art. 5º, LXV, da CF/88: a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária). E isto deve ocorrer, pela interpretação conforme a Constituição, sem remédio que a possa reconstituir pelos mesmos fundamentos. Não há como tergiversar nessa matéria.
Estabeleceu-se, ademais, maçante discussão nos tribunais sobre quem deverá promover a revisão, embora ninguém tenha referido alguma dificuldade para instar o juiz a prolatar o despacho revisional. Ora, isto também é literal no artigo apontado: a autoridade judiciária que deve decidir pela eventual manutenção da segregação cautelar é o “órgão emissor”, que se trata, obviamente, do juiz que a decretou, o que não impõe os percalços que se imagina pela má vontade de cumprir a lei. Mas também pode ser o tribunal, pelo relator do recurso. O que importa, aqui, é que a revisão seja realizada dentro do prazo assinado em lei, sob pena de imediata revogação.
É igualmente insólito o debate jurisprudencial sobre o momento de aplicação da regra, havendo quem julgue que seus efeitos perdurem apenas em sede de jurisdição singular ou até o julgamento da apelação. Mas, o certo é que a obrigatoriedade de revisão da prisão preventiva – nesse caso, pelo silêncio de diversa determinação legal – não há de cessar enquanto for mantida a cautelar de força, pouco importando a fase processual. Ou alguém imagina que o preso provisório poderá permanecer esquecido no cárcere, enquanto se examinam seus recursos com a costumeira lentidão dos tribunais? Aliás, essa é parte da realidade que impulsionou o legislador a criar a muito salutar regra obrigatória de revisão periódica, a qual merece ser cumprida assim como foi escrita para diminuir o risco de prisões preventivas excessivamente prolongadas, disfuncionais, desumanas e, por tudo, injustas, como é comum encontrar.
Sabe-se que, do enorme contingente de presos em território nacional, entre 30 e 40% são provisórios, percentual que na grande maioria dos países é bem inferior. Trata-se de mais uma entre tantas distorções do nosso sistema de Justiça criminal. O novel parágrafo único do art. 316 do CPP veio em socorro dessa população de mais de 250.000 presos sem condenação definitiva, e perderá completamente seu efeito se o Supremo Tribunal Federal transmudar o conteúdo expresso da norma sob julgamento de controle constitucional, mas não de conveniência.
Ainda há tempo de fazer cumprir a lei.
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1 Art. 316 (...). Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.