Migalhas de Peso

Limites do direito de expressão pela ótica do contrato de trabalho

O amparo constitucional do livre direito de expressão não é absoluto, e não irá prevalecer de forma insofismável em caso de atitudes grotescas e sem amparo social.

7/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Por vezes nos deparamos com palavras, gestos, expressões que já foram tolerados pela sociedade em dado momento histórico, inclusive, nos deparamos com diversos atos discriminatórios (misóginos, racistas, por exemplo) em nossas mídias ou redes sociais. Com mais ou menos repercussão, fato é que estas condutas impingem sofrimento àqueles para os quais o discurso de “ódio” é dirigido.

Casos recentes, como de um famoso “Podcast” ou de uma Alta Executiva que pediu demissão por não concordar com o posicionamento da empresa1, são situações que demonstram, ainda que uma quantidade ínfima, um pouco ao que me refiro.

Considerando que boa parte da sociedade e dos consumidores não aceitam esse tipo de atitude, um questionamento específico se faz importante: quais os limites legais (ou contratuais) do direito de expressão dos trabalhadores (as) durante a vigência do contrato de trabalho?

Isso porque, para salvaguarda daqueles que exercem tais condutas “discriminatórias”, tem sido comum a “vulgarização” da garantia constitucional do direito de livre expressão ou de opinião.

É verdade que a Constituição nos ampara com esta importante garantia, que server para proteção de toda a sociedade, não do indivíduo tão somente, de modo que a coletividade não tenha a sua voz silenciada. Vejamos:

(...)
Art. 5º.
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Entretanto, a mesma Constituição que nos garante essa liberdade, também nos alerta que essa “livre expressão” não pode ser em detrimento dos outros e que, se assim o for, haverá o dever de reparação aos ofendidos, conforme o inciso X do artigo 5º, in verbis:

(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Em suma, não podemos utilizar “palavrões”, xingamentos ou impropérios aos “quatro ventos”, tampouco praticar atos racistas ou misóginos sem ter a consciência de que poderá existir, em contrapartida, o dever de arcar com tais atitudes - civil e criminalmente.

Assim, para retomar a pergunta central dessa minha sucinta divagação, sobre os limites da liberdade de expressão, imaginemos uma situação especial, em que um empregado(a), um alto executivo(a), nos exercício do seu direito de opinião ou de livre expressão venha causar um prejuízo à empresa que o contratou, inclusive danos à sua imagem, reputação no mercado ou perda de clientes.

Esta situação poderia ser preventivamente regulada por contrato ou por normas internas da empresa contratante? Quais os limites?

É inegável que existem pessoas nas organizações empresariais – notadamente com cargos de gerência ou diretoria - que se confundem com a própria empresa quando externalização gestos e opiniões. Fato é que suas condutas têm – no mínimo – potencial para causar danos irreparáveis e de grande repercussão (por vezes com dimensão global).

Neste ponto, sob a ótica trabalhista, entendo que a imagem do empregador - pura e simples - já possui um respaldo legal, posto que o art. 482 da CLT, dispõe que:

Art. 482. (...)
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
(...) –

Ou seja, é garantindo ao empregador a possibilidade de rescindir o contrato de trabalho por justa causa, caso as atitudes do empregado prejudiquem ou atinjam a imagem corporativa. Notem que a alínea “j” é específica para atos praticados em serviços, enquanto a alínea “k” para toda e qualquer ofensa ou ato lesivo a honra do empregador fora do trabalho.

Todavia, talvez o dano já tenha ocorrido e a mera rescisão contratual não seja suficiente para reconstituir o patrimônio do empregador, pois também será necessário um ressarcimento em razão desse possível dano.

Quanto ao ressarcimento, o art. 462 da CLT, §1º, dispõe a possibilidade de desconto em caso de prejuízos causados pelo empregador, por dolo ou culpa e desde que haja essa previsão em contrato em contrato de trabalho, vejamos:

§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.  

No entanto e especialmente aos que militam no âmbito da Justiça do Trabalho, é de senso comum que a justa causa deve se amparar em provas robustas para ser ratificada por referida Justiça Especializada. Aqui a atuação preventiva da empresa, elaboração de políticas claras, treinamentos e orientações podem ser o diferencial entre perder ou ganhar a batalha judicial, ou manter os clientes que se sentirem ofendidos pelas condutas indignas de algum preposto(a) da empresa.

Ademais, também não devemos esquecer que a CLT é de 1943 e, apesar das reformas que tentou atualizá-la, muitas de suas premissas e princípios ainda são de referida época.

Logo, entendo que caberá ao empregador tratar de tal tema em seus contratos e regulamentos, especialmente, para aqueles profissionais que possam expor a imagem da empresa, bem como deverá apresentar sua cultura de forma imperativa a seus empregados, por palestras e outros meios, demonstrando que adotou posturas educativas em relação as premissas de uma agenda social. Esta conduta das empresas é fundamental não só para defesas na esfera judicial, mas para deixar claro ao seu público externo (clientes, fornecedores, etc.) que a empresa não compactua com eventuais abusos praticados por indivíduos de sua organização.

Ou seja, caberá a empresa demonstrar aos seus colaboradores(as) quais são seus valores e ideais. Conscientizar é dar a noção ao trabalhador da dimensão que certas atitudes podem gerar danos ou prejuízos a todos que dependem da empresa, mais do aderir aos padrões “ESG”, é necessário aculturar seus colaboradores, parceiros e demais profissionais que possam de alguma forma expor socialmente a empresa.

Pela ótica pós contratual, importante destacar que, se o antigo(a) empregado(a) cometer um ato que cause danos ao ex-empregador, salvo melhor juízo, entendo que a responsabilização deve ser avaliada na esfera cível, salvo se esse ex-empregado tiver se utilizado de documento proveniente de sua condição anterior.

Todavia, seja para danos contratuais ou pós-contratuais, a empresa deve adotar todas as cautelas, especialmente, negociando cláusulas que prevejam a dissociação das opiniões pessoais do empregado da imagem e do posicionamento oficial da empresa, primordialmente para altos executivos(as).

Não se trata aqui, ao contrário do que alguns possam entender, de proibir o empregado de colocar em seu histórico a sua posição, cargo e carreira na empresa. Na verdade, o que busca é impedir ou coibir a associação indevida do nome ou marca da empresa em atos, ações midiáticas, ou manifestações públicas que sejam consideradas discriminatórias, inclusive, misóginas, racistas, antidemocráticas e outras.

Ainda que a primazia da realidade prevaleça nas relações de trabalho, é dever das empresas demonstrarem de forma clara que tomou as medidas legais preventiva e que alertou o empregado de que determinadas condutas não seriam toleradas.

Não basta ter uma cultura forte, que valorize a boa governança, as boas práticas de gestão e o respeito à diversidade se não houver transparência e publicidade dentro da organização empresarial. É necessário treinar e conscientizar todas as pessoas da sua necessidade e adequação.

Conclusão

Em um mundo cada vez mais informatizado em que somos expostos diariamente, principalmente de forma digital, e onde nossos atos podem alcançar centenas, quiçá, milhares de pessoas, devemos ponderar nossas atitudes e posições ideológicas, também diante do cargo que ocupamos.

O amparo constitucional do livre direito de expressão não é absoluto, e não irá prevalecer de forma insofismável em caso de atitudes grotescas e sem amparo social.

E neste ponto, os(as) empregados(as) e principalmente os altos executivos(as) deverão se atentar para suas atitudes e posturas, o que impõe uma posição mais ativa das empresas na seleção de tais profissionais, na contratação e especialmente no aculturamento dos novos contratados(as).

Isto porque, devemos ressaltar que a imagem ou a marca da empresa é um bem precioso e que devem ser preservados ao máximo com a colaboração de todas as pessoas da organização.

Portanto, cabe a empresa atuar de forma firme, clara e objetiva para prevenir e afastar situações que possam prejudicar sua imagem. Neste tema, ainda vale a máxima: prevenir é melhor que remediar.

__________

1 https://oglobo.globo.com/economia/alta-executiva-da-levis-pede-demissao-por-se-opor-restricoes-nas-escolas-contra-covid-25394460

Ricardo Trajano Valente
Mestre em Direito e Processo do Trabalho pela USP/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Mackenzie. Advogado com atuação na área trabalhista do escritório Queiroz e Lautenschläger Advogados.

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