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Nulidades dos contratos da nova lei de licitações e contratos administrativos: eureka do legislador ou positivação do entendimento consolidado pelos órgãos de controle?

"Eureka” – para os que assim entendem –, ou não – como aqui sustentado –, certamente que o novo diploma legal vem em boa hora, na medida em que dá respaldo legal aos gestores públicos em suas decisões.

7/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Reza a história que no século III a.C, o cientista grego Arquimedes de Sicarusa gritou “eureka1 ao descobrir a solução para um complexo problema que lhe tinha sido apresentado pelo Rei Hierão: qual seria o volume de ouro utilizado em sua coroa?

Tantos séculos depois, surge o recentíssimo art. 147 da nova lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei Federal 14/133/21), que introduz, dentre outras normas jurídicas afetas à matéria, regra que permite a manutenção da vigência do contrato administrativo ainda que a irregularidade identificada no processo licitatório ou em sua execução contratual seja grave o suficiente para gerar a sua nulidade, desde que se revele uma medida de interesse público, em face da avaliação de aspectos de cunho econômico/financeiro, social, ambiental, dentre outros nele indicados.

A nova disposição legal faz saltar aos olhos a seguinte pergunta: o legislador pátrio gritou “eureka” nos campos do Planalto Central, mais precisamente em Brasília, ao introduzi-lo no sistema jurídico pátrio, ou sua contribuição buscou positivar um entendimento que já vinha sendo aplicado pelos órgãos de controle, que passaram a enfrentar as questões submetidas ao seu exame de forma mais concreta, albergado pelas novas diretrizes traçadas pela lei 13.655/18, que introduziu dispositivos na lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-lei 4657/42)2?

Não há dúvidas de que mudança legislativa é de extrema relevância jurídica, isto porque a lei 14.133/21 claramente rejeita a concepção tradicional contida no artigo 49 e artigo 59, ambos da lei federal 8.666/933, os quais exigem a pronúncia da nulidade da licitação e do contrato por parte do gestor público quando constatada a existência de uma ilegalidade, para adotar a dinâmica de sobrepor o conteúdo sobre a forma.

Em razão dessas novas disposições legais, vícios considerados insanáveis, ou seja, graves o suficiente para levar a invalidade do processo licitatório ou contratação, passarão a ser avaliados sob a ótica do prejuízo, e em prestígio ao princípio da proporcionalidade, ainda que impactem a competividade. A invalidação passa, assim, a figurar como última ratio na decisão a ser adotada pelo gestor público.

Há diversos precedentes4 na jurisprudência do TCU, entretanto, que revelam que a concepção adotada pela lei 14.133/21 segue a sua orientação, que há muito tempo já admitia o saneamento de falhas formais e irrelevantes sob a égide da lei federal 8.666/93, caminhando, mais hodiernamente5, para a manutenção da licitações e dos seus consequentes contratos maculados de ilegalidades supostamente insanáveis, quando avaliadas as vantagens e desvantagens de proclamar a nulidade de uma contratação em plena execução.

O legislador ordinário também acompanha o posicionamento das Cortes de Contas, ao registrar que a manutenção do vínculo contratual, em face da autorização contida no art. 147 da lei 14.133/21, não afastará a imposição de medidas de cunho indenizatório, quando cabíveis, e de apuração de responsabilidades dos envolvidos nas irregularidades então identificadas.

Além disso, a análise das disposições contidas no precitado artigo 147 mostra a compatibilidade de seu conteúdo com as normas recentemente editadas na lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro6, em especial com as estabelecidas em seus artigos 20 e 21, que exigem um juízo de ponderação das circunstâncias fáticas e jurídicas para definir a correta aplicação do Direito, assim como a indicação das consequências de uma decisão de invalidação e, quando o caso, das condições para que a regularização se dê de forma proporcional e equânime, e em prol do interesse público.

Em matéria de nulidades, portanto, o legislador pátrio não esbravejou “eureka”, tal como Arquimedes de Sicarusa, inaugurando uma legislação disruptiva. Do exposto infere-se que, na verdade, o ideário de buscar prima facie a preservação do contrato, ainda que não seja possível o saneamento de falhas detectadas, para somente declarar a sua nulidade como última ratio, não é uma novidade no ordenamento jurídico, mas sim uma forte tendência doutrinária e jurisprudencial que foi apropriadamente acolhida no ordenamento jurídico licitatório e contratual posto, de modo a bem concretizar o interesse público.

Eureka” – para os que assim entendem –, ou não – como aqui sustentado –, certamente que o novo diploma legal vem em boa hora, na medida em que dá respaldo legal aos gestores públicos em suas decisões, sejam estas destinadas a declarar ou não a invalidade dos contratos administrativos, além de trazer um mínimo de previsibilidade para os players do setor privado que atuam contratualmente junto aos órgãos da Administração Pública, prestigiando os princípios da boa-fé contratual e segurança jurídica.

__________

1 O termo “eureka”, em grego, significa “descobri”. O Rei Hierão de Saracusa desejava saber se o volume de ouro em sua coroa era o mesmo destinado ao artesão para sua confecção. Arquimedes, contratado para essa finalidade, sabia que para chegar à solução dessa questão deveria determinar a densidade da coroa do Rei e compará-la com a densidade do ouro. Todavia, o método tradicional não se afigurava possível, pois jamais a coroa do Rei poderia ser derretida para verificar a densidade do ouro. Eis que Arquimedes descobriu a solução quando entrou numa banheira com água e observou que o nível da água subia quando ele entrava. Concluiu então que para medir o volume da coroa bastava mergulhá-la em água, calculando o volume de água deslocado e a densidade do ouro. Empolgado com a sua descoberta, gritou: EUREKA! Disto surgiu o “princípio de Arquimedes”. Fonte: < https://mundoeducacao.uol.com.br/matematica/a-descoberta-arquimedes.htm>. Acesso em 18/10/2021.

2 Veja, nesse sentido, as disposições contidas nos artigos 20, 21, 22 e 24 da lei de Introdução às Normas de Direto Brasileiro.

3 Ainda em vigor, por força do disposto no artigo 193, inciso II, da lei 14.133/2021.

4 Acórdão 1904/2008-Plenário| Relator: RAIMUNDO CARREIRO/Acórdão 3344/2012-Plenário| Relator: ANA ARRAES/ Acórdão 2789/2013-Plenário| Relator: BENJAMIN ZYMLER/ Acórdão 637/2017-Plenário| Relator: AROLDO CEDRAZ

5 Acórdão 1473/2019 - Plenário – Relator: Ministro-Substituto André Luís de Carvalho| Acórdão 1737/2021-TCU-Plenário – Relator: Ministro Weder de Oliveira| Acórdão 2075/2021 – Plenário – Relator: Ministro Raimundo Carreiro.

6 Cabe lembrar que o art. 5º da nova lei das Contratações Públicos expressamente se reporta à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

Ana Cristina Fecuri
Advogada no escritório Dal Pozzo Advogados.

Leandro Moraes Leardini
Advogado no escritório Dal Pozzo Advogados.

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