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ADIn 4.980/DF e o uso do Direito Penal - Tributário como ferramenta arrecadatória

Reconhecer a desnecessidade de encerramento do procedimento administrativo tributário representaria o uso, por mais uma vez, do Direito Penal como instrumento coercitivo de cobrança tributária.

3/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde que o Supremo Tribunal Federal incluiu a ADIn 4.980/DF na pauta de julgamento para este ano, especificamente dia 10/3/22, iniciaram-se discussões na área do Direito Penal-Tributário, mormente no tocante à possibilidade de consideravelmente aumento repentino de persecuções penais.

A fim de contextualizar o tema, trazemos breve histórico da questão. Em 2013, a Procuradoria Geral da República, por intermédio da então vice procuradora, dra. Deborah Duprat, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a alteração promovida no art.831, caput, da lei 9.430/96, pela MP 497/10, posteriormente convertida na lei 12.350/10.

Em suma, a PGR suscita que a MP 497/10 padeceria de inconstitucionalidade formal, pois inexistiria relevância e urgência, bem como material, por tratar de direito penal e processual penal, matérias expressamente vedadas pela Constituição Federal em seu art.61, §1º, I, “b”2.

Alega a PGR, ainda, que a exigência de esgotamento do procedimento administrativo acarretaria ofensa ao princípio da proporcionalidade em sua vertente da proteção insuficiente, uma vez que a eficácia da atuação acusatória ficaria prejudicada pela demora no envio das informações pelos órgãos fazendários.

Ao final, a PGR requer a declaração de “inconstitucionalidade do art.83 da lei 9.430/96, com a alteração promovida pela lei 12.350/10, no que se refere aos crimes formais, especialmente o de apropriação indébita previdenciária (art.168-A do CP)”. Em caráter subsidiário, “requer seja dada interpretação conforme para declarar que os delitos formais, sobretudo o de apropriação indébita previdenciária, consumam-se independentemente do exaurimento da esfera administrativa”. 

Em outras palavras, a ação visa à declaração de inconstitucionalidade do artigo 83 da lei 9.430/96, na redação dada pela lei 12.350/10, regra que exige o esgotamento das instâncias administrativas para o envio de representação penal relativamente a crimes contra a ordem tributária e contra a Previdência Social. O que se pede na ADIn não é a declaração da inconstitucionalidade do artigo na íntegra, mas apenas da sua aplicação aos crimes que, embora ali listados, seriam meramente “formais” e, por isso, não poderiam ter sido abarcados pelo art. 83.

Quanto aos argumentos de ausência dos requisitos autorizadores da edição de Medida Provisória, a jurisprudência do STF entende que somente pode haver o controle dos requisitos formais pelo Poder Judiciário de forma restrita, limitando-se a verificar se “as razões apresentadas na exposição de motivos pelo Chefe do Poder Executivo são congruentes com a urgência e relevância alegadas, sem adentrar ao juízo de fundo que o texto constitucional atribui ao Poder Legislativo3”.

Em relação à alegada inconstitucionalidade material, por se tratar de questões de direito penal e processual penal, a discussão já foi objeto da ADIn 1571-1/DF, ajuizada justamente pela PGR sob argumentos similares à da comentada ADIn, tendo sido discutida a redação original do art. 83 da lei 9.430/96.

Naquela ação, o pedido foi julgado improcedente, constando expressamente do acórdão que a norma do dispositivo legal em questão se destinaria aos servidores da Fazenda, inexistindo qualquer relação com a atuação do Ministério Público4. Não se pode olvidar que este resultado implica na declaração de constitucionalidade da norma questionada, em razão da natureza dúplice da ADIn. Neste passo, a matéria tratada é de natureza administrativa, e não penal/processual penal.

Superadas estas questões, nota-se que a discussão levantada pela PGR se direciona basicamente a 2 pontos: (i) possibilidade de representação dos agentes fiscais ao MP antes de findo os processos administrativos e (ii) discussão acerca da natureza formal/material do crime de apropriação indébita previdenciária.

Quanto ao início da percussão criminal antes mesmo de finalizado o processo administrativo tributário, anotamos que, além de pouco producente, tal conduta implica em desconsideração absoluta do direito de contraditório e ampla defesa.

É sabido que os Tribunais Administrativos de nosso país são reconhecidamente técnicos, inclusive há muito o STF já reconhecera a relevância dos órgãos administrativos com funções decisórias5, muito semelhantes à jurisdicional, em razão não apenas de certas decisões tomadas nesse âmbito exigirem conhecimentos técnicos altamente especializados.

Isso porque os julgadores do processo administrativo exercem uma função de redução do arbítrio na aplicação da lei, aprimorando a segurança jurídica nas relações entre Estado e administrado.

Ato contínuo, a composição das turmas de julgamento a partir da 2ª instância é paritária, composta por conselheiros representantes da Fazenda e por conselheiros representantes dos contribuintes, com exigência de notório conhecimento técnico e experiência prática nas áreas de Direito Tributário e processo administrativo fiscal.

Nota-se, pois, que a especialização no trato de questões tributárias, aliada à sucessiva repartição da matéria em seções temáticas, implica o tratamento especialmente qualificado na resolução das questões, o qual somente é viabilizado por um corpo de julgadores altamente técnico.

Somado à relevância técnica dos Tribunais Administrativo, um fato importante é que, muitas das vezes, o contribuinte sai vencedor nos processos administrativos, o que a grosso modo evidencia que qualquer persecução criminal precipitada é no mínimo equivocada.

Segundo levantamento do CARF, instância administrativa de julgamento de processos tributários federais, no ano de 20166, foram julgados 5.996 recursos no período, sendo que o contribuinte restou favorecido em 52% dos casos  para o fim de cancelar a autuação fiscal lavrada pela Receita Federal do Brasil.

Assim, imperioso notar que o desfecho do processo administrativo é absolutamente imprescindível para adoção de qualquer providência que vise afetação do patrimônio do contribuinte e, mais ainda, qualquer reflexo de ordem criminal como se pretende a ADIn em análise.

Após demonstrada a importância do procedimento administrativo tributário e as possíveis repercussões negativas de não aguardar seu término, é importante ainda pontuar que, em se tratando de crimes formais, não há qualquer óbice para a atuação ministerial, conforme já decidido na mencionada ADIn 1.571: “O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita "representação tributária", se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. ”

Percebe-se, então, que a discussão restante é quanto à natureza do crime de apropriação indébita previdenciária. Aliás, da leitura da peça inicial da PGR, aparentemente este é o principal objetivo da ADI. Nos próprios pedidos, são feitas menções expressas a este tipo penal.

Como é de conhecimento na área penal-tributária, há longa discussão acerca da natureza do crime previsto no art.168-A do Código Penal. Contudo, não parece acertado se utilizar de instrumento de controle concentrado de constitucionalidade para travar esta discussão, pois, ainda que entendido o referido tipo penal como crime material, inexistiria inconstitucionalidade na norma atacada.

Assim, verifica-se o uso do controle concentrado de constitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para ver reconhecido entendimento de matéria penal.

Além disso, independentemente da natureza do crime do art.168-A do Código Penal, a comunicação pelos agentes fiscais, antes do encerramento do procedimento administrativo, aumentaria consideravelmente a possibilidade de ações penais precipitadas, representando constrangimento desnecessário em face do contribuinte.

Cabe, ainda, relembrar que tanto STJ7 quanto STF8 entendem pela impossibilidade do uso de “sanções políticas” como meio coercitivo de cobrança de tributos. Assim, admitir o uso do Direito Penal, regido pelos princípios da intervenção mínima (ultima ratio), como instrumento de cobrança representaria verdadeiro contrassenso à jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Portanto, reconhecer a desnecessidade de encerramento do procedimento administrativo tributário representaria o uso, por mais uma vez, do Direito Penal como instrumento coercitivo de cobrança tributária, servindo de instrumento de pressão e de constrangimento do Estado para o encerramento de litígios tributários e para o aumento da arrecadação.

_____________

1Art. 83.  A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. (Grifo nosso – parte incluída pela MP 497/2010, ratificada pela Lei 12.350/2010)”.

2   Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

I - relativa a: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

(...)

b) direito penal, processual penal e processual civil; (Incluído pela Emenda Constitucional 32, de 2001)

3 (ADI 5599, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280 DIVULG 25-11-2020 PUBLIC 26-11-2020)

4 EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 83 da Lei no 9.430, de 27.12.1996. 3. Argüição de violação ao art. 129, I da Constituição. Notitia criminis condicionada "à decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário". 4. A norma impugnada tem como destinatários os agentes fiscais, em nada afetando a atuação do Ministério Público. É obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa da notitia criminis ao Ministério Público. 5. Decisão que não afeta orientação fixada no HC 81.611. Crime de resultado. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal. O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita "representação tributária", se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 7. Improcedência da ação (ADI 1571, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 30-04-2004 PP-00029 EMENT VOL-02149-02 PP00265)

5 No julgamento do Agravo de Instrumento 62.811/RJ.

6 https://carf.economia.gov.br/noticias/2016/carf-divulga-relatorio-das-decisoes-proferidas-de-janeiro-a-agosto-de-2016 - Fonte: CARF

7 Súmula 127, STJ: É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado.

8 Súmula 70, STF: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo

Súmula 323, STF: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

Súmula 547, STF: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais

Ricardo Henrique Rodriguez de Andrade
Advogado da área de Contencioso Administrativo e Consultoria Tributária do escritório Magro Advogados. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários- IBET/RJ.

Marcus Romao
Graduado em 2007 pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela PUC-SP (2010) e em Business Enterprise pela Nelson Marlborough Institute of Technology (2019), com experiência de mais de 10 anos na iniciativa privada e no setor público atuando na área criminal e interesses difusos coletivos. integrante da equipe Criminal do Magro Advogados de São Paulo.

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